Filosofia,

Sociedade sem freio

Filósofo alemão estuda cinco séculos de aceleração técnica, social e do ritmo da vida

01dez2018 | Edição #19 dez.18/fev.19

Quanto tempo leva para que um boato ou uma mentira descarada se espalhem pelo mundo? Quanto tempo para estragar a vida de uma pessoa ou o futuro de um país? Qual é o intervalo entre um escândalo midiático e o seguinte, para que pulemos de indignação em indignação? Com que frequência nos dizemos, cansados por tantas novidades frenéticas, que não conseguimos acompanhar e que acabam parecendo todas iguais?

Se um único objeto técnico simboliza essas perguntas todas, é provavelmente o telefone celular — quero dizer, o smartphone —, com dezenas de aplicativos instalados, recebendo sem parar notificações e atualizações. O smartphone parece feito sob medida para exemplificar as três dimensões da aceleração social de que fala o sociólogo Hartmut Rosa em Aceleração: a transformação das estruturas temporais na modernidade a aceleração técnica, a aceleração da mudança social e a aceleração do ritmo de vida.

Com essas três categorias analíticas, Rosa se dedica a pensar sistematicamente o paradigma da aceleração na modernidade. Professor na Universidade de Jena, na Alemanha, Rosa é um representante da teoria crítica, popularmente conhecida como Escola de Frankfurt, que bebe na fonte de Marx para construir um pensamento social heterodoxo e abrangente. Recorrendo a uma admirável vastidão de referências — de Weber e Durkheim a Koselleck e Lübbe —, ele analisa a sensação, muito disseminada mas raramente aprofundada, de que a marca da vida moderna é a velocidade. Sobretudo, cada vez mais velocidade. Apesar de todo o rigor analítico, Rosa consegue demonstrar seus argumentos com uma linguagem acessível e, por vezes, até divertida.

Três dimensões 

Ao smartphone, então. Nele, a dimensão técnica da aceleração é evidente: pequenos aparelhos dentro do bolso de cada um conectam as pessoas ao redor do mundo, com um mínimo de latência. Esse milagre depende de tecnologias de rádio, wifi, chips, telas sensíveis ao toque; e também de técnicas organizacionais, financeiras, comerciais; de design, marketing e assistência técnica. Tudo isso para que o gsm seja sucedido pelo 3g, depois pelo 4g, e logo pelo 5g, um mais rápido que o outro. A evolução da própria técnica acelera, argumenta o sociólogo: cada tecnologia se torna obsoleta a intervalos mais curtos do que a anterior.

Podemos dizer que o modo de trocar mensagens transforma as amizades, os vínculos familiares, as relações de trabalho, a busca de parceiros amorosos? Dificilmente alguém discordaria disso: os comportamentos e as expectativas, tijolos da vida social, são profundamente alterados a cada vez que uma nova técnica é introduzida. Mas o que Rosa investiga não é a própria mudança, e sim o aumento do ritmo da mudança. Isso quer dizer que nós, hoje, vivenciamos mais transformações no jeito de namorar e de procurar emprego do que os nossos avós.

Rosa analisa a sensação de que a marca da vida moderna é a velocidade. Cada vez mais velocidade

E provavelmente ainda não atravessamos a última dessas mudanças em nossa vida. A passagem das cartas ao telégrafo e deste ao telefone levou mais de século, mas a passagem do telefone fixo ao celular, deste ao e-mail, depois ao icq, Skype, Facebook, WhatsApp, Snapchat, Uber e Tinder foi coisa de vinte anos. Onde antes havia conflitos intergeracionais porque os jovens não seguiam os modos de vida de seus pais, agora há conflitos intrageracionais, à medida dos novos modos de comportamento que vão surgindo a cada poucos anos, exigindo de todos uma readaptação.

Por fim, também dificilmente alguém negará a aceleração do ritmo de vida. Por mais que as tarefas levem cada vez menos tempo para serem cumpridas, parece que temos cada vez mais tarefas a enfrentar. E parece que temos menos tempo disponível para cada uma delas — sem falar no proverbial tempo livre, sempre prometido e cada vez mais distante. Como apontou Jonathan Crary, caminhamos para estar disponíveis 24 horas por dia, sete dias por semana, a vida inteiramente subsumida às obrigações.

Os nossos ancestrais levavam horas escrevendo uma carta, que levava semanas para chegar. Quem nunca, na adolescência, irritou os pais ao passar a tarde pendurado no telefone? Mas é hoje, quando as mensagens são escritas (ou gravadas) e enviadas em frações de segundos, chegando ao destinatário onde quer que esteja, que nos vemos soterrados por solicitações impossíveis de satisfazer.

Essas três dimensões se alimentam reciprocamente e formam um ciclo: a aceleração da mudança social implica uma aceleração dos ritmos, que só pode se realizar graças à aceleração técnica, que por sua vez produz mudanças sociais, e assim por diante. Rosa procura escapar de determinismos em que alguns de seus antecessores caíram, em particular aqueles que leram Marx apressadamente e fundam todo esse processo exclusivamente no imperativo econômico.

Modernidade

Rosa não inventou a sociologia da aceleração ou da velocidade. Esse é um tema que, como ele mesmo mostra, se confunde com a própria modernidade. Foi tratado extensamente por Paul Virilio, que chegou a cunhar a expressão “dromologia” para se referir ao estudo dos tempos modernos pela ótica da rapidez. Marx e Engels, Baudelaire, Georg Simmel, Walter Benjamin, Marcuse, Marshall Berman, todos colocaram o imperativo da pressa crescente no coração das leituras de nossos males e nossos triunfos.

Reclamamos da aceleração com as mensagens do mesmo jeito como, há vinte anos, houve quem reclamasse de ter um celular e estar acessível constantemente, e há cem anos reclamavam do ritmo da comunicação telefônica ou por rádio. A destruição de modos de vida tradicionais com a chegada das ferrovias e da navegação a vapor, no século 19, foi tratada por muitos observadores como uma hecatombe. Hoje, a noção de hecatombe só fez ampliar: a intensificação da atividade econômica ameaça não a vida tradicional, mas a vida no planeta.

O que há de diferente em Rosa é que ele examina o próprio fato de que a modernidade é lida como uma era fundada na aceleração. Todo um tempo histórico, abarcando cinco séculos, é compreendido nessa chave, o que por si só já é um enigma. Assim, Rosa ambiciona encontrar um paradigma que explique a aceleração das estruturas temporais como marca distintiva das sociedades modernas.

Por “estruturas temporais”, o sociólogo se refere ao modo como a realidade social — as atividades, a produção, as relações familiares, em suma, “a vida” — se desenrola regularmente no tempo. Aceleração é mais do que velocidade. A velocidade deve também aumentar sempre; é preciso que tudo seja cada vez mais rápido.

Sem surpresa, a ênfase na aceleração conduz a vida moderna a dois paradoxos, ambos muito conhecidos. O primeiro é que a aceleração pode ser tamanha que causa uma sensação de paralisia, semelhante à do mito de Sísifo resgatado por Camus. Trabalhando com determinada função, acordamos a cada dia para descobrir que as mesmas tarefas devem ser repetidas, com a mesma urgência e irrelevância.

O segundo paradoxo é uma decorrência do primeiro. A sensação de que tudo se acelera constantemente vem muitas vezes com a desconfiança de que, na verdade — ou melhor, no essencial —, nada muda. Mas como é possível dizer que nada mudou, se a vida hoje é completamente diferente do que era há cem anos, as comunicações foram completamente transformadas, os gostos, as máquinas, as cidades, absolutamente tudo?

Da lista de contratendências à aceleração, Rosa destaca uma que é esclarecedora: a mera constatação de que tudo o que acontece (e tanta coisa acontece!) não se fixa em nada, não gera resultados estáveis, e o pior: acaba produzindo mais e mais repetições de todos os processos, sem falar nos resíduos, no lixo, na poluição. 

Quando se pensa que a democracia está consolidada ao redor do mundo, uma nova onda de autoritarismo se levanta. Quando se pensa que o “fim da história” de Fukuyama é fato consumado, a história não só volta a dar o ar de sua graça, como o faz com os mesmos problemas e os mesmos personagens de outras épocas.

Não é por acaso que sentimentos muito associados à modernidade são o tédio, a crise existencial, a frustração. Não dá tempo de fazer nada, o tempo voa, não conseguimos tempo para projetos mais encorpados, falta tempo para aproveitar todas as opções disponíveis, tempo é dinheiro, tempo, tempo, tempo. Tudo isso são sintomas daquilo que Rosa denomina “rasender Stillstand”, uma paralisia frenética.

Dissincronia

Voltando ao exemplo dos boatos que se espalham: quantas mensagens, memes, vídeos, áudios uma pessoa recebe por dia em cada uma de suas redes sociais, incluindo os aplicativos de mensagem? Quem quer ficar constantemente conectado com os amigos e familiares — isto é, próximo, acessível imediatamente — corre o risco de ser soterrado pela avalanche de solicitações, imagens, áudios e notificações. A capacidade de distinguir entre o relevante e o mero ruído, até mesmo entre o real e a mentira deslavada, muitas vezes óbvia, se desvanece. 

A capacidade de distinguir entre o relevante e o mero ruído, até mesmo entre o real e a mentira muitas vezes óbvia, se desvanece

Perdemos até mesmo a noção do que é “imediato”. Para o transformarmos em sinônimo de “instantâneo”, fechamos os olhos para todas as mediações necessárias para produzi-lo. Rosa nota que a revolução informacional das últimas décadas tem um funcionamento oposto ao da revolução dos transportes de períodos anteriores: em vez do deslocamento ampliado e acelerado de pessoas e bens, a transmissão aperfeiçoada de dados e sinais, para pessoas que não precisam se deslocar.

Onde trabalham incessantemente sistemas complexos de transmissão de dados ao redor do planeta, usando cabos submarinos e satélites que, vale lembrar, se encontram fora do planeta, vemos apenas a chegada das notificações em nossas telas. Mensagens enviadas há frações de segundos atravessam servidores e outros aparatos técnicos, são codificadas e decodificadas, mas nos maravilhamos com a possibilidade de um contato imediato.

Quais são os efeitos disso? A atuação da empresa Cambridge Analytica na eleição dos Estados Unidos em 2016, assim como a fábrica de notícias falsas no processo eleitoral brasileiro, são apenas os exemplos mais recentes. A guerra de drones é outro exemplo, já que as máquinas de morte são comandadas a um continente de distância, por jovens que não têm outro contato com aqueles que são alvejados por suas balas senão as manchas desfocadas na tela.

Esses fenômenos se ligam tecnicamente ao das crianças que, meio século atrás, preocupavam os pais por passarem a tarde inteira paralisadas na frente da televisão. Psicólogos, pedagogos e pediatras já alertavam desde então que o senso do espaço, do tempo e da realidade ficava prejudicado. Mas esse efeito mal se compara à profusão de telas em metrôs, bares, elevadores, bolsos, bombardeando o passante com imagens e sons desconectados.

Os diferentes sistemas em que a vida se desenrola têm capacidades diversas para se adaptarem à aceleração, produzindo dissincronia: entre tecnologia e ritmo de vida, entre economia e política. O ano ainda tem doze meses, a gestação ainda dura nove. Muitas estruturas temporais resistem ao imperativo da aceleração, muitas vezes ao custo de exclusão da esfera social.

Rosa expressa com particular acuidade o impacto político da aceleração, ao dizer que “a política está fora de compasso”. A democracia é fundada na deliberação e em processos institucionais intencionalmente lentos. Mas quem tem condições para deliberar e seguir esses ritos na era do frenesi virtual? É preciso seguir os avanços tecnológicos de perto: não há tempo para debatê-los; é preciso alcançar os instintos mais primitivos do eleitorado — não há tempo para argumentar e convencê-lo.

O processo político não consegue mais ser propositivo e, na esperança de manter alguma relevância, deve constantemente correr atrás da máquina aceleradora. A quebra do senso de realidade, da relação espaçotemporal, chega assim às decisões sobre o futuro comum. Quando a sucessão dos escândalos soterra a lenta deliberação, o resultado é que a “paralisia frenética” da vida cotidiana acaba tomando as rédeas e, em seguida, o poder.

Quem escreveu esse texto

Diego Viana

É jornalista e doutorando em filosofia.

Matéria publicada na edição impressa #19 dez.18/fev.19 em novembro de 2018.