Crítica Literária, Ensaio,
Poesia e sociedade
Em três ensaios, Octavio Paz reflete sobre a modernidade, o surrealismo e os poemas da solidão e da comunhão
09nov2018 | Edição #3 jul.2017“Uma torrente de beleza, reflexão e análise” foram palavras de Gabriel García Márquez sobre Octavio Paz quando do seu falecimento, em 1998. Palavras precisas porque reveladoras da trajetória de quem foi ao mesmo tempo um grande poeta e um notável ensaísta-pensador, em cuja obra convergem a criatividade da poesia e a reflexão criadora.
Octavio Paz integrou a família dos poetas-pensadores. Para ele “poesia e pensamento são um sistema de vasos comunicantes”, como escreveu na introdução de A dupla chama (1993).
Sabia, como observou em uma entrevista concedida em 1987 a Enrico Mario Santi, que poesia e pensamento vivem em casas separadas, mas contíguas, destacando no entanto que existem entre estas duas casas uma passagem secreta. Por esta passagem transitam, dizia ele, os bons poetas que frequentam o pensamento, porque a boa poesia é lucidez. É o seu caso, como é o de Valéry.
Eduardo Jardim, grande conhecedor e apreciador da obra de Octavio Paz, reuniu, com pertinente sensibilidade, três de seus ensaios ainda não traduzidos para o português, que são etapas muito significativas da sua lúcida reflexão sobre a poesia.
O primeiro texto é de 1943 e intitula-se “Poesia de solidão e poesia de comunhão”. Nele, toma como polos opostos de sua análise a experiência da comunhão de São João da Cruz e a da angústia da solidão de Quevedo para realçar “que são duas situações extremas dentre as quais move-se a alma do poeta”.
Paz lembra épocas em que a poesia “pode conviver com a sociedade” e nas quais o “seu impulso alimentou os seus melhores empreendimentos”. É o caso de Homero e de Hesíodo, que moldaram a alma grega com uma poesia de comunhão. Não é o caso da poesia da solidão que emana do sentimento e da consciência da discórdia entre a sociedade e a poesia que é, desde o romantismo, tema central da criação poética.
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Poesia da solidão/poesia da comunhão é um tema recorrente no percurso de Octavio Paz, que almejava a difícil convergência, no mundo contemporâneo, entre a palavra viva do poeta e a palavra vivida da sociedade. O arco e a lira — O poema, A revelação poética e Poesia e história (1956) parte explicitamente do texto de 1943, que ecoa em Os filhos da lama (1974) e A outra voz (1990). Numa outra vertente, O labirinto da solidão (1950), sua reflexão sobre a identidade mexicana, está permeada pela interação aberto/fechado, solidão/comunhão, apontando para a dicotomia solidão/modernidade.
O labirinto da solidão é, para valer-me de uma observação mais geral do próprio Octavio Paz, uma das expressões na sua vida do forte — mas nem sempre feliz — relacionamento do escritor com a sua pátria, vale dizer, do conflito entre a sua vocação e a sua sociedade.
O segundo texto é de 1954. Intitula-se “Estrela de três pontas: o surrealismo”. Esclarece as motivações que levaram Octavio Paz a uma convergência com o movimento surrealista. Foi próximo de André Breton, sobre quem escreveu com admiração e argúcia analítica. O “eixo tríplice da liberdade, do amor e da poesia”, que norteou os surrealistas, estava em sintonia com a sua maneira de ser.
Arte e liberdade
Octavio Paz cedo compreendeu, na condição de poeta, como disse ao receber em 1989 o Prêmio Tocqueville, que a defesa da poesia é inseparável da defesa da liberdade. Não é acidental que denominou Libertad bajo palavra (1960) a sua obra poética coligida de 1935 a 1958.
Não é igualmente por acaso que escreveu A dupla chama, tratando do vermelho do erotismo e do azul do amor. Em Salamandra (1958-1961), dedicado aos poetas André Breton e Benjamin Peret, o estímulo literário do vermelho e do azul transformaram-se em grande poesia.
“A busca do presente”, o discurso de Octavio Paz ao receber em 1990 o Prêmio Nobel, é um perfeito fecho do livro organizado por Eduardo Jardim.
A modernidade, sublinhou Octavio Paz, não é uma escola poética. É uma linhagem, uma família, dispersa em vários continentes, que se expressa em várias línguas
Articula uma decantada reflexão sobre o seu caminho: o da quête, da demanda do Santo Graal da modernidade poética. Na sua busca percorreu várias waste lands, descobrindo que a modernidade, tanto a poética quanto a política, é uma palavra em busca do significado — por vezes é ideia, por vezes miragem; pode assumir a cadência do trote da evolução ou incidir no salto da revolução.
A modernidade, sublinhou Octavio Paz, não é uma escola poética. É uma linhagem, uma família, dispersa em vários continentes, que se expressa em várias línguas, que “são realidades mais vastas que as entidades políticas e históricas que chamamos de nações”.
Entre tradição e modernidade, assim como entre poesia e pensamento, há ponte. “Isoladas as tradições se petrificam e as modernidades se volatilizam; reunidas, uma anima e a outra responde dando-lhe peso e gravidade.” Isto requer recuperar a visão crítica do pensar para enfrentar política e poeticamente no mundo contemporâneo os sinais inquietantes da ressurreição das paixões enterradas das tribos, seitas e religiões.
O poeta Octavio Paz, de maneira convergente com o pensador Octavio Paz, em A busca do presente, redescobre com lucidez a figura do mundo na dispersão dos seus fragmentos.
Matéria publicada na edição impressa #3 jul.2017 em junho de 2018.
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