

Encontro de Leituras,
Humor filosófico
Saltitando entre anedota, papo cabeça e mitologia, o português Ricardo Araújo Pereira serve um banquete ensaístico sobre a comédia
06maio2025 • Atualizado em: 07maio2025No segundo capítulo de Coisa que não edifica nem destrói, Ricardo Araújo Pereira menciona a entrevista de Umberto Eco em que o pensador e romancista italiano, indagado sobre qual livro gostaria de ter escrito e não conseguiu, responde que sonhou por décadas escrever sobre a teoria da comédia. “Cada teórico da comédia, de Freud a Bergson, explica algum aspecto do fenômeno, mas não tudo”, diz Eco. Em seguida revela que, tendo quebrado a cara como todo mundo no ambicioso plano (“cada livro sobre o assunto tem fracassado”), seu sonho de tratado universal da comédia se transformou no romance O nome da rosa — o que me parece bom negócio.
Seja como for, talvez Eco fosse menos pessimista sobre a teoria da comédia se pudesse ter lido (verbo, entre tantos outros, que já não conjuga desde 2016) o livro em que o comediante, escritor, roteirista e intelectual português o cita. Não é que Coisa que não edifica nem destrói teorize de forma abrangente sobre o tema, como sonhou fazer o autor italiano. O que o livro faz é pegar os pedaços do fracasso da filosofia rigorosa do humor — coisa mais sem graça, vamos combinar — e preparar com eles um banquete ensaístico que é ao mesmo tempo saboroso e nutritivo, leve e denso, além de muito engraçado. E, sim, triste, melancólico, tenebroso e desesperador também — não existiria comédia sem isso.
O humor é uma das grandes obras do espírito humano. O fato de que incomoda tanta gente só o prova

A estratégia que garante o sucesso da empreitada é ela mesma humorística: diante da gravidade suprema de um desafio intelectual que humilha a humanidade desde Aristóteles — como nos humilha a consciência da morte —, o comediante, o bobo, o malandro, o trickster, o bufão realiza uma brusca operação de linguagem, uma espécie de drible simbólico que inverte a lógica do mundo, provocando o riso. O que faz o comediante, argumenta o rap (a partir deste momento tornado sigla):
Não é o contrário da filosofia, é uma filosofia do avesso. É diferente. Uma camisola do avesso não é o contrário de uma camisola. Continua a ser uma camisola, está é do avesso.
Seu novo livro pode ser lido como o sonho de Eco do avesso.
A frase da camisola surge a propósito de um subversivo cômico — entre os muitos que o livro garimpa nas histórias da Terra — chamado Nassredin. Todo mundo já ouviu a piada do sujeito que procura na rua a chave que perdeu dentro de casa e, quando lhe perguntam por que faz isso, responde: “Aqui há mais luz”. O que menos pessoas sabem é que o protagonista dessa história, mistura de idiota e gênio, teria vivido de verdade entre 1208 e 1284, antes de se tornar “figura importantíssima do folclore do Médio Oriente” e ganhar estátuas em sua homenagem “desde Bruxelas, na Bélgica, até Astana, no Cazaquistão”.
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O livro é baseado no podcast homônimo que o RAP criou e apresenta. Com seu título deliciosamente machadiano — tirado de Memórias póstumas de Brás Cubas, obra-prima da comédia —, aprofunda uma especialidade e uma obsessão do autor de A doença, o sofrimento e a morte entram num bar e Estar vivo machuca: fazer a metalinguagem do humor, regada a bastante humor metalinguístico. Talvez ele ainda não tivesse empregado nisso repertório de referências tão vasto e concentrado.
Cronista
Em quinze capítulos curtos, o autor vai saltitando com uma irresponsabilidade de bom cronista que é (como sabem os leitores de sua coluna na Folha de S.Paulo) entre a anedota e o papo cabeça, a mitologia grega e a fofoca hollywoodiana de ontem à tarde. Não é piada. O humor que é comparado ao escudo de Perseu — que, impedido de olhar diretamente para a Medusa, se guia por seu reflexo para matá-la — é o mesmo que, com uma saraivada devastadora de golpes morais, o autor defende do tapa com que Will Smith reagiu a uma piada de Chris Rock no Oscar de 2022.
De repente, voltamos alguns séculos para acompanhar o debate teológico — tão mais hilariante quanto mais sério — sobre se Jesus teria intestino e, caso o tivesse, se o usaria para fazer cocô. “Apolinário de Laodiceia responde que não. Jesus fez-se homem mas era, apesar de tudo, diferente de nós. Santo Eustácio de Antioquia responde que sim”, ensina o autor. Afinal, o “cocó” (na forma lusa) sempre foi matéria de comédia. E por que não seria? “Nós lá chegaremos também”, lembra o RAP, prestativo, “porque somos excrementos adiados, estamos pacientemente à espera de ser excrementos. Ora, aqui está outra ideia bem bonita”.
Saímos da leitura nos sentindo mais inteligentes. Mesmo que o efeito passe logo, é bastante agradável
A prosa é reconhecível por ser mais seca e antissentimental do que a praticada pela média de seus conterrâneos, mas vai além disso: tem um sabor distintivo, uma certa cara de pau brusca que funciona ao ouvido brasileiro. Sem prejuízo dos saborosos lusitanismos, claro, como “rábula” (esquete), que a edição preserva intactos. Desse modo vamos pulando de piada em piada, com citações matadoras de entremeio, e cobrimos territórios amplos entre Falstaff e o modo como brincam os cães, entre a seleção brasileira tricampeã e o massacre dos humoristas do Charlie Hebdo.
Não se trata de mero exibicionismo. Quer dizer, talvez haja exibicionismo envolvido, porque escritores não valem nada mesmo, mas ele não tem nada de mero, isto é, de banal. Pode parecer que o autor borboleteia, mas, como bom comediante, seu movimento está mais para o voo obsessivo de uma mosca — outra das formas encarnadas que o humor assume no livro (“a obsessão pelo que é insignificante é uma estratégia humorística eficaz”). O plano afinal filosófico mesmo — ora veja — do autor se deixa decifrar aos poucos, sem grandiloquência, nas brechas entre as histórias de todas as épocas que desfilam velozes.
O humor é uma das grandes obras do espírito humano, uma de nossas maiores riquezas. O fato de que incomoda tanta gente, a ponto de haver certa tolerância social à violência exercida contra humoristas, só o prova. A artilharia política é pesada, a religiosa mais ainda: Jesus Cristo nunca foi visto rindo. A crítica literária torce o nariz para o humor, fingindo que Shakespeare e Machado não foram dois de seus geniais praticantes. No entanto, quando se busca uma última possibilidade de refúgio para a afirmação do humano diante da dor inevitável, da derrota certa, da humilhação absurda, não há dúvida de que é o humor, e só ele, que lá nos leva.
O livro do sócio-fundador do grupo português Gato Fedorento — que alguém já apresentou como primo mais velho do Porta dos Fundos — é daqueles de que saímos nos sentindo mais inteligentes. Mesmo que o efeito passe logo, é bastante agradável. “Ou defendemos que é possível rir de tudo ou defendemos que não é possível rir de nada”, escreve o RAP. “A partir do momento em que abrimos uma excepção (‘podemos rir de tudo excepto disto’ ou ‘não podemos rir de nada excepto daquilo’) deixa de ser possível sustentar a posição”. O cara não está para brincadeira, ou melhor, está. Não está. Está. Etc.
Se alguém duvida que humor é coisa séria, mais séria do que a própria seriedade, vai se surpreender ao ler que:
Há muitas pessoas convencidas de que rir é o contrário de chorar. Não é. Rir e chorar são vizinhos, talvez mesmo parentes. Por vezes, até ocorrem ao mesmo tempo. Ambos funcionam como a válvula da panela de pressão. O contrário de rir é não rir. Estar sério. Acumular tensão. É bastante importante entender isso.
Se é. E, como o humor aprecia um bom paradoxo, quanto menos se entende, mais importante fica.
Nota da redação: A Tinta-da-China Brasil é o selo editorial da Associação Quatro Cinco Um
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