Edição,

Autobiografia do editor

Livro expõe os bastidores da produção editorial e critica o esvaziamento da experiência individual da leitura

01out2020 | Edição #38 out.2020

Roberto Calasso ocupa uma posição peculiar no contexto cultural italiano e também mundial. Na condição de ensaísta, já publicou trabalhos de impressionante fôlego erudito, como As núpcias de Cadmo e Harmonia e A literatura e os deuses. É reconhecido também pela amplitude de seus interesses, tendo escrito sobre Baudelaire (A Folie Baudelaire), Kafka (K.), a Bíblia (O livro de todos os livros, ainda sem tradução no Brasil) e a Índia védica (O ardor). Em paralelo, Calasso atua como editor desde 1962, incorporado à equipe inicial da Adelphi pelos fundadores Luciano Foà e Roberto Olivetti. 

Desde então, tem observado e atuado sobre o mercado editorial de uma posição privilegiada, definindo diretrizes para coleções, selos, capas e projetos gráficos, contratando traduções de novidades e retraduções de clássicos, além de contribuir decisivamente para o resgate de obras e autores por vezes isolados em seus contextos de origem (como o húngaro Sándor Márai, que Calasso redescobriu no início da década de 1990, em Paris, lendo livros lançados em tradução francesa na década de 1940 por uma editora havia muito falecida).

Seu livro mais recente a sair no Brasil, A marca do editor, reúne uma série de textos de ocasião preparados por Calasso em torno desse tema. O primeiro e mais longo, intitulado “Os livros únicos”, é exemplar de sua capacidade de articular subjetividade e erudição, apresentando seu próprio percurso como editor em confronto com outros casos históricos representativos. Três figuras se destacam e retornam continuamente na exposição de Calasso: Roberto Bazlen (1902-1965), intelectual italiano que foi uma espécie de mentor para Calasso e que ele define como “uma das mentes mais rápidas que já vi”; Kurt Wolff (1887-1963), editor de Kafka, Werfel, Kraus e Walser e que também falou de seu ofício no livro Memórias de um editor (lançado pela Âyiné em 2018); e Aldo Manúcio (1449-1515), tipógrafo e editor da Renascença que Calasso singulariza como um visionário, criador do “arquétipo do livro único”. 

Ao lado dessas figuras preeminentes, Calasso incorpora uma série de textos de homenagem a editores, organizados como perfis. Encontramos Giulio Einaudi, Luciano Foà, Roger Straus, Peter Suhrkamp e Vladimir Dimitrijević, cujas trajetórias são apresentadas em diálogo com seus contextos específicos (italiano, estadunidense, alemão, francês) e algumas casas editoriais importantes (Gallimard, Einaudi, Suhrkamp e Farrar, Straus & Giroux). 

Calasso é habilidoso em sua evocação tanto do “dentro” quanto do “fora” do livro, remetendo continuamente às práticas e às ideias. Um bom exemplo está no momento em que se pergunta: “Como seguem trabalhando os bons editores?”, trazendo como parte da resposta “as correspondências de Flaubert e dos Goncourt com seu editor Lévy, por volta de 1860”, que mostram “que se discutiam então coisas idênticas às que se discutem hoje entre autor e editor” (contratos, erros nas provas, publicidade, resenhas, prêmios, “o entorpecimento crônico do público”). 

Calasso apresenta uma série de argumentos contra a euforia da ‘biblioteca universal digitalizada’

O mesmo ocorre com relação ao aspecto visual dos livros. “A capa é a pele daquele corpo que é o livro”, escreve Calasso, afirmando que com os anos e a prática, por meio dos erros e acertos, “alguns critérios foram ficando mais precisos” na busca de imagens adequadas para os livros da Adelphi. Uma das coisas a evitar, afirma, é o uso de imagens muito divulgadas, as dos antigos mestres e as de pintores excessivamente identificáveis. A surpresa, portanto, é um valor buscado no texto literário e em seu invólucro material. Com isso, apresenta-se ao público também um conjunto de artistas visuais que pouco circulam, criando por vezes “uma espécie de clube de afins” — caso das imagens de George Tooker para Kundera e Nabokov e das de Meredith Frampton para Muriel Spark e Henry Green, por exemplo.

Boa parte do fascínio despertado pelo livro de Calasso está em sua revelação dos bastidores de produção de um livro, tudo aquilo que deve ocorrer para que ele se transforme, depois de um complexo processo, em um objeto passível de circulação. É por respeito a esse trabalho de bastidores — que Calasso não por acaso remete a uma tradição, resgatando o exemplo de Manúcio na Renascença — que encontramos em A marca do editor uma série de argumentos contra a euforia da “biblioteca universal digitalizada”. O que se “está tentando impor com certo rigor”, escreve Calasso, “é a destituição de um modo inteiro de conhecimento que é estreitamente ligado ao uso do livro”, um esvaziamento da experiência individual em prol de um desenvolvimento financeiro impessoal e acrítico. 

O cérebro que lê

Ao falar da edição de livros, Calasso alcança questões cognitivas e comportamentais que tocam a todos. O “perceptivo e silencioso pensamento do cérebro individual que lê”, escreve ele, “foi substituído pela sociedade: um imenso e capilar cérebro constituído por todos os cérebros, quaisquer que eles sejam, desde que ajam na rede e falem entre si”. O resultado é “um palavreado muito denso, que cria um novo ruído de fundo” dentro do qual se diluem as especificidades. 

O primeiro “cérebro individual que lê” levado em conta na argumentação de Calasso é, sem dúvida, o seu. Sua trajetória é, ao mesmo tempo, exemplar e irrepetível, e ele faz questão de frisar o paradoxo. No capítulo intitulado “A edição como gênero literário” (originalmente uma conferência feita em Moscou, em 2001), ele aprofunda o paradoxo ao afirmar que o bom editor busca “livros únicos” e que a reunião desses livros em um catálogo de peso é “o melhor livro de todos”. E vai além: esse catálogo não é apenas a reunião de obras únicas, mas é também a autobiografia do editor, símbolo de sua “capacidade de dar forma a uma pluralidade de livros como se eles fossem os capítulos de um único livro”. 

Além dos vários detalhes sobre o mundo da edição, ricos e informativos, o livro de Calasso está carregado dessa perspectiva insólita diante da história da materialidade da literatura e do pensamento. A marca do editor faz rever e repensar o fenômeno tão naturalizado da leitura, atualizando sua potência e sua urgência para os tempos atuais.

Quem escreveu esse texto

Kelvin Falcão Klein

Professor da Unirio, é autor de Cartografias da disputa: entre literatura e filosofia (Editora UFPR).

Matéria publicada na edição impressa #38 out.2020 em setembro de 2020.