Economia,
Os senhores das nossas decisões
A teoria econômica que nasceu da parceria acadêmica entre Daniel Kahneman e Amos Tversky
08nov2018 | Edição #2 jun.2017Vamos jogar cara ou coroa com uma moeda. Nas primeiras três vezes deu cara. Que lado vai sair na quarta tentativa? De imediato você pode pensar: é mais provável que saia coroa! Mas, se uma moeda tem dois lados, por que acreditar que depois da sequência de caras deveria sair coroa? Seriam as moedas dotadas de um senso inerente de justiça ou essa conclusão se deve simplesmente à forma pela qual a mente humana compreende a realidade?
A ideia de que o ser humano toma decisões com base em juízos racionais foi contestada por diversas áreas do conhecimento na segunda metade do século passado. Subjetividades e enganos da mente foram expostos, ao mesmo tempo que cresceu a nossa capacidade de coletar, armazenar e tratar informações. A combinação desses dois fatores foi o motor de um notável avanço na investigação científica e na compreensão sobre como a mente funciona.
Os desenvolvimentos da economia comportamental estão por toda parte: eles são responsáveis pelo interesse crescente em entender como as pessoas tomam decisões e como isso pode ser explorado para vender um produto, selecionar um filme, exibir uma notícia ou mostrar um candidato no período eleitoral.
Os estudos publicados pelos psicólogos Daniel Kahneman e Amos Tversky estão no centro desse movimento. O enorme impacto de suas pesquisas acadêmicas e, em especial, a relação de amizade que nasceu entre os dois é o tema do novo livro de Michael Lewis, O projeto desfazer.
Lewis se tornou mundialmente conhecido com o seu livro Moneyball: o homem que mudou o jogo. O livro conta como o time de beisebol Oakland Athletics conseguiu aprimorar o seu desempenho com o auxílio de um método que privilegiava dados estatísticos em vez de percepções subjetivas sobre os jogadores.
O livro foi o catalisador de uma mudança sensível na gestão das equipes esportivas. Ao colocar a ênfase na análise estatística, Lewis punha em xeque o saber arcano dos olheiros e confrontava os especialistas. Para prever se um jovem jogador seria um sucesso ou um fracasso, agora havia parâmetros objetivos. Quanto mais esses parâmetros eram usados e aprimorados, menor o espaço para subjetividades e enganos.
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Uma das críticas a Moneyball veio de Richard Thaler, da Universidade de Chicago, e de Cass Sustein, de Harvard. Eles alertaram que a história de Moneyball era uma aplicação prática da construção teórica desenvolvida a partir dos anos 70 por Kahneman e Tversky. Lewis decidiu investigar a ideia e o resultado acaba de chegar às livrarias.
Ao descortinar as ideias e a amizade da dupla Danny e Amos, Lewis conta uma história empolgante de parceria intelectual e de investigação sobre as razões pelas quais pensamos da forma como pensamos.
Os avanços da ciência nos últimos séculos terminaram por reduzir o aspecto mágico do corpo humano. Hoje se sabe muito sobre o seu funcionamento. A física tratou de regrar o universo e suas forças. A visão do mundo e do homem como um mecanismo é poderosa e não é nova. Todavia, quando se investiga a mente, o processo de tomada de decisão e seus consequentes equívocos, é fácil notar a fluidez dos conceitos. É nesse campo de batalha acadêmico que os estudos de Kahneman e Tversky impulsionaram uma revolução.
Os dois protagonistas do livro na verdade tinham pouco em comum: ambos eram judeus e descendentes de rabinos (embora não acreditassem em Deus). Tiveram passagens pelo exército israelense e, em certo momento, lecionaram na Universidade Hebraica de Jerusalém. Foi lá, na primavera de 1969, que Kahneman e Tversky iniciaram a parceria que mudaria as suas vidas.
Lewis constrói as narrativas de seus protagonistas de forma separada até o momento em que se encontram. Se, de um lado, isso ajuda a montar um quebra-cabeça sobre semelhanças e diferenças nas suas trajetórias, o relato partido reforça a impressão de que todos os caminhos levariam para a reunião em 1969.
Kahneman e Tversky não poderiam ser mais diferentes. Kahneman se mostrava inseguro, pessimista, frequentemente afetado pela opinião dos alunos, e sua sala era uma bagunça. Tversky era a segurança em pessoa, sempre otimista, acostumado a ser o mais inteligente da sala, e sua mesa de trabalho não tinha mais que o necessário para escrever.
No exército, Kahneman foi designado para o Departamento de Psicologia, onde desenvolveu um método que procurava identificar qual soldado se sairia melhor em qual função. Ali já estavam as bases de seus estudos futuros, procurando descortinar os enganos nos quais os avaliadores poderiam cair. Tversky, por sua vez, era um líder nato no campo de batalha, chegando a ser condecorado por salvar um colega instantes antes de uma bomba ser detonada.
Como colegas de universidade, os dois começaram uma estranha parceria em 1969, depois que Kahneman convidou Tversky para apresentar uma pesquisa em sua aula. Acostumado a dominar os debates, dessa vez as refutações de Danny calaram fundo em Amos. Tão diferentes, os dois professores passariam mais de uma década pesquisando e escrevendo em conjunto. A simbiose na produção acadêmica era tamanha que a decisão sobre a ordem de autoria dos artigos se deu num lance de cara ou coroa. Amos ganhou, e a partir dali foram alternando.
Economia comportamental
As publicações de Kahneman e Tversky foram fundamentais para desvendar os enganos da mente e consagrar teorias que alicerçam a economia comportamental. Com o sucesso, surgiram oportunidades e convites de universidades estrangeiras. Tversky vai continuar sua carreira nos Estados Unidos, e Kahneman, no Canadá. A distância e a colaboração com outros coautores foi reduzindo a frequência com que os amigos podiam produzir a quatro mãos. Em 1984, quando Tversky recebeu um financiamento da Fundação MacArthur por pesquisas desenvolvidas em dupla (e Kahneman, na época, não era elegível ao prêmio), a amizade começou a se deteriorar.
Nos anos 90, quando Tversky, em estado terminal, foi diagnosticado com uma doença fatal, a amizade foi reatada. Os dois voltaram a trabalhar juntos pelo curto tempo de vida que restava a Amos. Ele morreu em 1996, aos 59 anos. Em 2002, Kahneman recebeu o Prêmio Nobel de Economia por suas pesquisas na área da economia comportamental.
Kahneman afirmou, na introdução de seu célebre livro Devagar e rápido: duas formas de pensar, que, caso Tversky estivesse vivo, certamente o reconhecimento seria dados aos dois. Lançado em 2011, Devagar e rápido se tornou um sucesso mundial. Juntamente com Moneyball, e agora com O projeto desfazer, compõem uma introdução apaixonante a um tema que poderia ser dos mais herméticos: compreender o julgamento e a tomada de decisão.
A ideia central do livro de Kahneman descreve dois sistemas de pensamento que, de forma distinta, formam a nossa apreciação do mundo. O primeiro é ágil, rápido, atuando por instinto e comandado pelas emoções, ao passo que o segundo é lento e pondera as diversas circunstâncias antes de decidir, não raro corrigindo os enganos do primeiro sistema. Precisamos das duas formas de pensar, mas a reação inicial é aquela desempenhada pelo primeiro sistema. Entender como ele se engana e reage aos mais diferentes fatores é crucial.
A pesquisa de Kahneman e Tversky descortinou como a mente se engana. O produto imediato dessa constatação é a valorização da estatística como uma forma de conhecimento mais profunda. Essa revolução atingiu da medicina aos esportes, da política ao direito. Ao evidenciar como podemos nos enganar, as teorias de Kahneman e Tversky auxiliam na melhor tomada de decisão por profissionais nas mais diversas áreas e por indivíduos em seu dia a dia. O projeto desfazer consiste justamente em reverter os enganos iniciais, de modo que as pessoas possam viver melhor.
Entender como a pessoa pensa é um desafio que passa pela coleta, pelo armazenamento e pelo tratamento de dados gerados por um indivíduo. Como um verdadeiro corpo digital, esses dados servem para os mais distintos propósitos e são utilizados por diferentes atores para identificar o seu titular. Você é o que o banco de dados pessoais diz que você é. Considerando o tempo que passamos on-line, pode-se dizer que você é o que clica, o que você curte e o que você compartilha.
Quanto mais dados são coletados, mais sabemos sobre nós. Aplicativos de controle de saúde medem os nossos passos, o número de lances de escada que subimos e o rendimento dos exercícios. Mas quem acessa esses dados, além de nós mesmos?
Se dados comportamentais estão sendo cada vez mais coletados, existem terceiros que talvez conheçam melhor do que nós a nossa rotina, os nossos hábitos e preferências. E, se isso for verdade, essa informação pode ser usada para os mais diversos fins de manipulação e indução de comportamento. Aqui, a economia do comportamento, aliada ao fenômeno do big data (tratamento de grande volume de dados), ganha novos contornos no mundo digital.
Graças à análise de dados, hoje uma loja descobre que uma garota está grávida antes de seus pais
A Target, rede de varejo americana, desenvolveu um projeto de big data que, após processar os hábitos de compras de seus clientes, tornou possível identificar quais padrões indicavam que, no futuro, a cliente teria um bebê e passaria a comprar o enxoval. Um dos padrões descobertos foi a compra de loção hidratante sem perfume e, por volta das primeiras vinte semanas, um aumento na compra de suplementos de cálcio, magnésio e zinco. A empresa montou uma lista de 25 produtos que, combinados, geravam uma nota de expectativa de gravidez.
Mas o que a empresa gostaria de fazer com essa previsão sobre a gravidez das clientes? A resposta é muito simples: se antecipar aos concorrentes e enviar cupons de desconto para a casa das clientes, com foco em produtos para bebês.
A empresa enviou o cupom para a casa de uma adolescente de dezesseis anos e o pai dela interceptou a mensagem. Furioso, ele foi a uma loja reclamar que a filha tinha recebido um e-mail com ofertas para montar o enxoval de bebê. Explicou que ela era muito jovem e estava no colégio. Pouco tempo depois, o mesmo pai ligou para a loja, desta vez pedindo desculpas: “Estavam acontecendo coisas aqui dentro de casa das quais eu não tinha ideia”.
Bem-vindos ao mundo em que a análise de dados faz com que a loja de departamentos saiba antes do pai que a sua filha está grávida.
Política
Para além da manipulação com fins comerciais, os dados coletados podem ser usados (e cada vez mais o são) para fins políticos. A campanha vitoriosa de Donald Trump se valeu de análise de big data para direcionar a propaganda conforme o perfil ideológico dos eleitores. Aparentemente, o mesmo se deu com a aprovação do Brexit, no Reino Unido.
Na busca pela customização das mensagens, até mesmo o jornalismo se viu alvo da escalada das notícias falsas, disseminadas na internet. Nos Estados Unidos, o presidente resolveu escolher quais veículos são confiáveis e quais não são (esses seriam os responsáveis pelas fake news).
O fenômeno está ligado à observação de comportamentos on-line e sua exploração. As notícias falsas geralmente têm títulos chamativos e não revelam muito. O segredo é fazer o internauta clicar. A economia do clique na rede termina assim por fomentar as notícias falsas. A pessoa pode até não concordar, mas ao clicar e ler a matéria, acaba de fomentar o ciclo de notícias falsas.
Colocada nessa perspectiva, um tanto distópica, a investigação sobre como pensamos teria levado a um destino duplo: ela pode tanto melhorar a compreensão sobre a tomada de decisão como servir justamente de ferramenta para estimular a decisão em determinada direção.
Além do Big Data, um segundo campo de estudo se abre a partir dos estudos de Kahneman e Tversky. Ao desenvolver teorias que descortinam as razões do engano, os autores criaram as condições para que a análise estatística pudesse ser percebida como a antítese do equívoco gerado pelos subjetivismos. Os números revelariam uma verdade incontestável, descobrindo padrões que até mesmo a pessoa que os repete não perceberia. Os números não mentem.
Assim, quem controla os números e os dados poderia também nos controlar? Um passo adiante na pesquisa de Kahneman e Tversky é a sua aplicação no desenvolvimento de inteligência artificial. Se a mente humana erra e a inteligência artificial é programada para tomar decisões com base em dados, será que as máquinas tomarão sempre as melhores decisões? Ou será que preferimos persistir no erro como uma condição própria do entendimento humano?
Ao ser questionado se sua teoria poderia ser aplicada nesse promissor campo de pesquisas, Tversky teria dito: “Olha, na verdade, não”. Depois de uma pausa, completou: “A gente estuda a estupidez natural, não a inteligência artificial”. Curiosamente, é a “estupidez” que nos faz humanos e traz constantes dúvidas sobre os rumos da inteligência artificial.
Você preferiria confiar numa pessoa ou num robô? Imagine que, ao final do dia, seu parceiro ou parceira fizesse uma análise numérica sobre as vantagens e as desvantagens de continuar junto com você. Grandes são as chances de que você prefira ser julgado por um ser humano, que erra, que gosta de você por razões subjetivas (e que podem até contradizer a lógica racional), que por uma inteligência autônoma, que a partir dos números decide que o relacionamento está fadado a terminar.
Ninguém decide com base em números; todos precisam de uma história. Essa história, essa narrativa que nos faz humanos, será cada vez mais desafiada pelo processamento de um grande volume de dados e pela inteligência artificial. Na Europa já existe o “direito à explicação”, que pode ser acionado toda vez que uma decisão sobre questões como a renovação do seguro de vida são tomadas por algoritmos. Em estudo recente, o Parlamento Europeu debateu o direito de idosos e pacientes de não serem tratados exclusivamente por robôs.
O trabalho de Kahneman e Tversky nos leva ao mundo dos números, mas sua amizade nos conecta ao demasiadamente humano
De onde viria essa desconfiança do julgamento emitido por robôs ou dispositivos com inteligência artificial? Parece que existe algo fundamentalmente humano em desconfiar de um julgamento que pretende ser absolutamente racional e calculista. Não parece bastar então que as máquinas façam um julgamento racional. Parece que desejamos que esse julgamento seja proveniente do mesmo processo que baseia a nossa tomada de decisão, ou seja, ancorada em sentimentos, reações emocionais típicas do primeiro sistema, conforme descrito por Kahneman.
Kahneman e Tversky nos levam ao mundo dos números, ao passo que a sua amizade nos conecta ao que há de mais demasiado humano. Na ponta do lápis, será que valeu a pena romper anos de amizade e parceria acadêmica? Quando a iminência da morte bateu à porta, reatar a amizade não foi uma escolha racional. Seremos capazes de ensinar às máquinas a subjetividade humana?
Até lá, parece que viveremos sempre na tensão entre os dois lados da moeda: a análise estatística, que permite o julgamento mais racional, revela o engano e torna o futuro mais previsível, aumentando assim o bem-estar; e o controle do humano pela programação de suas reações, explorando os equívocos e as reações pouco refletidas. Quais são as chances de cada um dos lados prevalecer?
Cara ou coroa?
Matéria publicada na edição impressa #2 jun.2017 em junho de 2018.
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