Economia,
Eurocentrismo à esquerda
Alemão constrói narrativa sedutora sobre a crise do capitalismo democrático, mas ignora alterações estruturais na economia
28fev2019 | Edição #20 Mar.2019Tempo comprado — A crise adiada do capitalismo democrático, do sociólogo alemão Wolfgang Streeck, é uma obra nostálgica e pessimista. “Capitalismo democrático”, essa figura híbrida, inerentemente conflituosa no modo como é apresentada no texto, sintetiza o fio da narrativa: o choque, nas últimas quatro ou cinco décadas, entre o modo de produção capitalista, de um lado, e a democracia, de outro. O livro é nostálgico porque o conflito entre o poder das massas, pelo voto, e o poder do capital, que não desejaria ser contido pela política, já encontrou sua melhor solução de convivência possível, segundo Streeck, no passado: no período entre o fim da Segunda Guerra e a primeira crise do petróleo, em 1973. É pessimista porque acredita que essa contradição tem sido resolvida, desde então, em prejuízo do poder político dos cidadãos, cada vez mais afastados dos processos decisórios relevantes. Streeck é um marxista que acha mais provável a sobrevivência do capitalismo do que a manutenção da democracia.
A nostalgia é compreensível. Nascido no imediato pós-guerra, o autor de Tempo comprado chegou à idade adulta naquele que talvez tenha sido o melhor dos mundos possíveis: os chamados trinta anos gloriosos, entre 1945 e 1975, quando os países ricos europeus cresceram em ritmo acelerado, construindo sociedades de classe média capazes de conciliar relativa igualdade, empregos estáveis e uma sensação de segurança econômica e existencial compartilhada pela maioria dos seus cidadãos.
Nessa época, segundo o sociólogo, “as relações de poder entre as classes estiveram contrabalanceadas como nunca outrora no capitalismo”. O planejamento estatal da produção durante a guerra teria preparado o terreno para a contenção do capital no pós-guerra. De resto, o capitalismo encontrava-se então numa “posição defensiva em todo o mundo”, temeroso do avanço comunista e, portanto, disposto a fazer concessões.
Com o arrefecimento do ritmo de crescimento nos países ricos, a partir dos anos 1970, o capital desfez o acordo do pós-guerra e começou a pressionar pela liberalização econômica, “a redução do Estado intervencionista e o regresso ao mercado enquanto mecanismo primário de alocação”. O capitalismo social-democrático do pós-guerra se tornava caro demais, escreve Streeck. Nessa lógica, a exigência, por parte dos capitalistas, de melhores condições de lucro significou inevitáveis perdas para a classe trabalhadora: ataques ao poder de negociação dos sindicatos, flexibilização dos postos de trabalho, maior mobilidade do capital. Os Estados que não seguissem as suas imposições estariam sujeitos a “greves de investimentos”.
Europeu, Streeck chegou à idade adulta no melhor dos mundos: os trinta anos gloriosos, entre 1945 e 1975
De lá para cá, muita coisa mudou — mas sempre na mesma direção, de afastamento da época de ouro europeia. No caso dos países ricos, é difícil discordar que a classe trabalhadora parece ter sido expulsa do paraíso. Ao mesmo tempo, os governos, responsáveis por garantir a legitimidade do sistema, por manter a adesão social ao capitalismo, não podiam descuidar dos eleitores-trabalhadores. “Uma vez que o capitalismo não é um estado natural, ele só pode existir à base de reciprocidade em alguma forma”, argumenta o alemão. “Se ela não se perfaz, a questão inevitável que emerge é: ‘Por que alguém deve trabalhar quarenta ou mais horas pelo enriquecimento?’.”
O “equilíbrio sociopolítico”, da década de 1970 em diante, uma vez perdida a colaboração do capital, só seria possível à custa de um “desequilíbrio econômico”: segundo a narrativa de Streeck, os Estados primeiro aceitaram o aumento da inflação, para tentar mitigar conflitos distributivos; depois se endividaram, para manter o que podiam do Estado de Bem-Estar Social; e, finalmente, estimularam seus cidadãos a se endividarem, para que conservassem alguma ilusão de prosperidade.
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A crise financeira de 2008 seria só um capítulo a mais, resultado do endividamento privado, nessa sequência de crises em que sempre um pouco mais de tempo foi comprado para o difícil equilíbrio entre os interesses do capital e a manutenção da paz social.
O preço desse tempo comprado também teria se refletido no enfraquecimento da democracia. A combinação entre Estados endividados e maior mobilidade do capital fez com que os governos passassem a responder cada vez mais aos interesses dos “mercados”, limitando as escolhas dos cidadãos. A união monetária europeia é um dos principais exemplos desse processo, segundo o sociólogo, que lamenta os graus de liberdade de política econômica perdidos pelos países europeus: ao se associarem num mercado comum com moeda única, eles abriram mão, por exemplo, de poder desvalorizar o câmbio ou optar por déficits orçamentários maiores. Nada disso pode mais ser decidido nas urnas. A tendência, ele diz, é a de que essas restrições aumentem, em nome da estabilidade, da saúde financeira dos Estados, de algum crescimento econômico.
Sedução organizada
A narrativa de Streeck é sedutora. Cumpre a promessa de todo bom trabalho explicativo: dali onde parecia haver apenas uma massa confusa de dados e eventos, ele extrai ordem, lógica, uma totalidade bem organizada. Ocorre que, para cumprir essa tarefa, o autor deixa de fora processos fundamentais do período que analisa — e que, se considerados, colocariam em dúvida a justeza de sua síntese.
É curioso que escapem à análise de alguém tão atento à economia, por exemplo, os ganhos de produtividade da indústria na segunda metade do século passado, que em última instância representaram a diminuição da participação desse setor no conjunto da economia -— as fábricas passaram a fazer uma quantidade cada vez maior de bens, a um custo cada vez mais baixo, com uso cada vez menor de mão de obra. Uma parcela crescente do pib se concentrou no setor de serviços. Foi essa inescapável alteração estrutural das economias dos países ricos que determinou boa parte das mudanças — para pior — na vida da classe trabalhadora europeia, e não decisões políticas do capital de se libertar do acordo social-democrata do pós-guerra ou estratégicas “greves de investimentos”.
Com a crise das grandes indústrias, escassearam os empregos de nível médio de renda, com relativa segurança ao longo da vida ativa de seus empregados. Era muito mais fácil organizar sindicatos poderosos quando boa parte da mão de obra francesa ou alemã fabricava aço, automóveis, eletrodomésticos — ou cuidava da administração burocrática dessa produção. Não foi apenas, ou principalmente, uma guinada ideológica na política dos países ricos que enfraqueceu o poder de barganha da classe trabalhadora. Margaret Thatcher só pôde enfrentar as organizações sindicais inglesas porque as condições materiais e as novas relações de produção lhe permitiram isso.
No mesmo período em que a desigualdade aumentou nos países ricos, ela caiu em todo o globo
A outra grande ausência na história contada por Streeck é o comércio. Se uma parte da produção industrial passou a ser feita com menos gente na própria Europa, outra parte grande foi transferida para fora do continente — para a Ásia, sobretudo. Com uma consequência que deveria ser tida como desejável para qualquer pessoa de esquerda: a melhoria de vida material de enormes parcelas da população mundial. No mesmo período em que a desigualdade aumentou nos países ricos, ela caiu em todo o globo, resultado da saída de milhões de chineses, coreanos e indianos, entre outros, da pobreza.
Wolfgang Streeck não se ocupa disso. Europeu, saudosista, ele fala do seu continente e de alguns outros poucos países ricos. Apesar de todas as suas boas intenções, recai num vício antigo de boa parte dos privilegiados habitantes daquela parte do planeta: o de usar palavras universalizantes — capitalismo, pobreza, injustiça —, quando estão preocupados sobretudo com as questões de suas tribos.
Matéria publicada na edição impressa #20 Mar.2019 em fevereiro de 2019.
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