Divulgação Científica,
Tanto tempo
Pensador francês transita entre a filosofia e a física para abordar a questão do tempo em sua magnitude e complexidade
01abr2020 | Edição #32 abr.2020Encerrar num livrinho tão etéreo um tema oceânico supõe um pacto entre quem lê e quem fala, ambos desprovidos de ilusões ou de quaisquer conclusões a priori. Étienne Klein sabe disso, e seu respeito à incerteza — nossa ignorância ontológica primária e virtude primeira de todo cientista — é um atributo que ele assume com modéstia.
Klein discorre sobre o tempo. Alude ao infinito, portanto. E conjuga seu verbo presente, com tato e quase intimidade. Flexiona o raciocínio ora no modo indutivo, ora no dedutivo, aqui apoiado em axiomas aceitos, ali em hipóteses razoáveis, sem firmar ponto-final ou fechar proposição única. Como método, seu discurso evoca, num termo caro a platônicos e socráticos, a antiga prática da maiêutica, a arte de “dar à luz o espírito” pela indagação, de parir o aprendizado via perguntas, sem impor respostas prontas ou sofismar soluções acabadas, proibitivas em ciência. Todo vigor dialético Klein demonstrará apenas quando instado por questões alheias mais ou menos cândidas. Bom orador, ele sabe argumentar, é persuasivo. Sobretudo, sua retórica é dotada de éthos — logo, de credibilidade.
Estamos no terreno da complexidade. Mais precisamente, em um universo paralelo: o mundo da pesquisa, da especulação e das descobertas, onde é dado a esses loucos-poetas operar no pleno uso da razão, da intuição e (eureca!) da sorte, cujo nome respeitoso em ciência, aliás, é serendipidade. Impossível não se render à volúpia de um exercício mental de confrontar premissas e teorias, no propósito de desvendar um dos maiores objetos do desejo da ciência: o Tempo. (“Todas as ciências começam pela perplexidade”, lê-se em Bruno Latour, o sociólogo francês que agudizou a agenda política e estratégica da ciência mundial contemporânea.)
Sendo o Tempo uma pergunta física e metafísica sem fim, deduz-se o grau de magnetismo do problemão abordado
Objeto do desejo? Sim. Porque, primeiro, o Tempo é um problema científico enorme; segundo, porque cientistas fazem seu ninho com estoques de problemas — dúvidas, lacunas, paradoxos, anomalias, enigmas, dilemas, controvérsias. Tudo o que move, enfim, a paixão intelectual pela pesquisa de que falava Einstein. E sendo o Tempo uma pergunta física e metafísica sem fim; e sendo toda pergunta proporcional à importância do problema; logo, deduz-se, com uma dose elementar de lógica aristotélica, o grau de magnetismo do problemão abordado.
Entidade intátil
Étienne Klein, cientista, francês, 62 anos, sumariza nesse livro de bolso seu tortuoso caminho de reflexão em uma sessão de oratória (o texto reproduz uma conferência sua para jovens). Sua fala é clara, abreviada e muito inspirada na grande tradição retórica aplicada ao exercício de propedêutica, palavrinha generosa que significa iniciação a um ramo do conhecimento. Posto o Tempo como emaranhado geral, seu recorte de pesquisa tem por tema espinhoso (ou objeto problematizado, no dizer científico) “a natureza do tempo”. E do Tempo (“seja lá o que isso for”, bem ironizou Stephen Hawking no best-seller Uma breve história do tempo), pouco se sabe.
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O fato de essa entidade intátil nos tratar com igual indiferença na tolice e na sabedoria, no senso comum e no incomum, no conhecimento tácito e no explícito, no corpo e na alma (“… e a temporalidade é uma característica da existência humana, não da divina”, dirá Zygmunt Bauman); e de plasmar toda sorte de reflexão, representação e expressão humanas (mitos, artes, crenças, sonhos) pouco contribui para o progresso da ciência. Errático, nem sequer em ambiente empírico o Tempo faz morada. Escapa a qualquer paradigma (os consensos científicos), varia entre teorias provisórias (mesmo a quântica e a da relatividade refletem correntes epistemológicas diferentes) e complica o sonho de todo físico (e de quebra de todo mundo): o de uma teoria unificada do universo.
Klein é filósofo da ciência, é físico teórico e é dito, vulgarmente, um “especialista no Tempo”. Humm, direis. Afinal, embora realidade universal sensível, o Tempo não é bem o que se usa designar “fenômeno” (evento observável, na acepção literal). Logo, escapa à fenomenologia. Como escapa a tudo o mais. Tempus fugit, apontam velhos relógios, a imagem proverbial lembrada pelo cientista, feito legenda implacável. Sed fugit interea fugit irreparabile tempus… (É a voz de Virgílio, o poeta-guia.) “Mas ele foge, irreversivelmente o tempo foge…”
Em resposta, a preleção de Klein vaga sem sem direção linear (começo, meio, fim), lógica formal (introdução, desenvolvimento, conclusão) ou análise teórica (tese, antítese, síntese). Como a refletir a ideia da quadridimensionalidade de que o tempo não é flecha, mas tangência, uma inflexão radical. “Tudo muda” (Heráclito) com o tempo. E essa é a única evidência que importa.
Em tese, o livro de Klein poderia ser indexado como obra de introdução à filosofia ou à física teórica, as duas classificações pertinentes a esse pesquisador e catedrático cuja trajetória (trabalhou no projeto cern — Organização europeia para pesquisa nuclear), áreas de interesse (física quântica, ciências da matéria, filosofia da ciência) e de concentração (bósons, colisores e outras nano-maxi-monstruosidades admiráveis) o autorizam o suficiente para evocar o pensamento de Einstein, Kant, Heidegger et al. Contudo, se “a tarefa da filosofia é descrever aquilo que é”, como quer Hegel, a tarefa da física teórica é explicar tudo o que é: o universus, nada menos. Estamos na linha fina entre a filosofia clássica grega e o que a Renascença europeia chamou de filosofia natural, hoje dita ciência. Como, porém, descrever o Tempo? Como explicar o Tempo? A qual epistemologia recorrer?
No caso de Klein, o duplo escopo de sua formação — humanidades e ciências naturais — já seria por si um desafio cognitivo e de interdisciplinaridade, uma vez que exige coadunar duas posturas metodológicas, se não antagônicas, por certo divergentes. Pois, enquanto as “ciências duras” priorizam o objeto, a realidade, os dados e a análise quantitativa, prevalecem nas “humanas” o sujeito, a vivência, a análise qualitativa e o mais imponderável dos fenômenos: o Homo Sapiens e suas tantas versões — indivíduo, ser social, agente histórico, pessoa humana…
São muitas as variáveis
É possível imaginá-lo, Étienne Klein, equacionando Cronos e Cosmos em duas chaves epistemológicas: 1) pela chave mecanicista do mundo físico, o que só é possível pela via abstrata dos números e dos cálculos; e 2) pela chave subjetiva do mundo intelectivo e da pura ideia, por vias, ainda mais abstratas, da razão metafísica (o saber para além da natureza). Complexo exercício, o seu. Que ele compensa, como qualquer mortal de nós compensaria, com doses pessoais de lembranças ou de estesia, a poesia que resta, a arte que resta, alguma metáfora que reste, enfim, intrínseca a esse Tempo-mor e capaz de diluir a anestesia diária do tempo cronológico, o vilão que Walter Benjamin combateu com toda beleza e toda força.
Não à toa, Klein deu ao título uma interrogação e parênteses: O tempo que passa(?). Com isso ele põe em cena um oximoro — a “passagem do tempo” — e aquilo a que se pode chamar de Lei nº 1 de Descartes: o fator dúvida. Pratica assim a ciência no cerne: por questionamento. Mais: traz dúvida sobre dúvida (durante a exposição ele desfiará coisa de sessenta perguntas). Talvez uma forma de fazer referência indireta a um dos gigantes de seu tronco: o austro-britânico Karl Popper, o filósofo da ciência que formulou o princípio prevalente e genial da falseabilidade (o qual rege que toda teoria só será crível se puder ser falsa, falível ou refutável, posto certezas ditas absolutas serem indicativo de pseudociência ou de dogmas, ponto).
Em ciência, duvidar não é contingência, é imperativo. E qual melhor propulsor no jardim das delícias intelectuais do que aquilo que Bruno Latour denominou, em bom latim, de libido sciendi (“furor pelo conhecimento”)? Pois é debruçada sobre o fascinante mundo da dúvida que a ciência progride, toma impulso e dá saltos. Na certeza ela se deixa distender os nós e se aquietar, numa navegação em calmaria, sem sobressaltos, por inércia. A esta, o físico alemão e filósofo da ciência Thomas Kuhn deu o nome de “ciência normal”, nela implicado um consenso da comunidade acadêmica. Já à primeira, chamou “ciência revolucionária”, aqui subentendida a tensão dos momentos em que convulsões conceituais estremecem parâmetros tidos como certos — até que se faça validar uma nova ordem científica e se institua nova normalidade provisória. Um ciclo, em eterno retorno.
Coube a um notável da escola francesa a distinção mais imagética, extraída de substância literária e própria de um savoir-vivre. Para François Jacob, geneticista e Nobel de medicina, uma é “ciência da noite”, outra é “ciência do dia”. Sendo esta a ciência consolidada, bem resolvida e segura de si, cumpridora das obrigações diárias, no jus ao descanso e a boas noites de sono; e aquela, a que não dorme, insone, inquieta, em eterna vigília e busca incansável — categoria sempre citada com especial apreço por cientistas de ímpeto, esses estranhos funâmbulos vocacionados ao risco e às alturas, dotados, conforme Latour, de “esprit de geométrie” e “esprit de finesse”.
Ora, alguma dúvida de que estudar o Tempo é dar-se ao inefável prazer de praticar a mais alta “ciência da noite”? Que digam as olheiras fundas de uma vigília sem fim. Em essência, é o que se infere do campo de pesquisa de Klein. O tempo que passa(?) é um livro de muitas leituras, uma rede delas. Grandes mistérios são assim, raciocínios elegantes são assim. Experiências estoicas de passagem, seja via razão científica (passus), seja via impasse humano (passio, conforme Didi-Huberman), adivinhe, também são assim. E teorias inconclusas, sendo as obras abertas que são, nem se fale, são muito, muito assim. E o Tempo, ai.
Estes textos foram realizados com o apoio do Instituto Serrapilheira
Matéria publicada na edição impressa #32 abr.2020 em março de 2020.