Divulgação Científica,
A internet da floresta
Por meio de suas raízes, as árvores definem estratégias de sobrevivência e criam redes de defesa diante das ameaças externas
07nov2018 | Edição #1 mai.2017O que enxergamos de uma árvore adulta, a parte acima do solo, com frequência é igual à parte que cresce para dentro da terra, podendo até ser menor. Quanto mais velha for a árvore — muitas, aos cem anos, ainda estão na flor da idade —, maiores serão as extensões da raiz, que é o órgão mais essencial de seu corpo, caracterizado por existir em dois mundos. Mesmo cortado rente ao chão, o toco que sobrar de uma árvore voltará a brotar e a formar nova copa, desde que a raiz tenha ficado ilesa para seguir manifestando seus impulsos vitais.
“O essencial é invisível para os olhos”, como a raposa ensinou ao pequeno príncipe. E as principais revelações de Peter Wohlleben em A vida secreta das árvores dizem respeito à intimidade da raiz que não vemos e “onde possivelmente”, diz ele, “se situa algo como o cérebro” dos vegetais.
Sendo uma árvore capaz de aprender e de armazenar informações úteis para se manter com saúde, o autor admite que essas funções se concentram na raiz, lembrando circunstâncias simples para ilustrar a tese: se ela encontrar substâncias tóxicas, rochas impenetráveis ou terra úmida demais, a raiz logo impõe uma mudança de rumo a seu crescimento, desviando-o das áreas que não lhe são favoráveis para avançar em novas direções.
As pontas das raízes são rematadas por um tecido esponjoso que as torna eficientes para a absorção de nutrientes e água. Retomando pesquisas anteriores, Wohlleben explica como determinados fungos subterrâneos, que se alojam junto a raiz e a ela se associam em simbiose, contribuem para aumentar sua área de absorção da umidade, pois têm textura esponjosa.
Os fungos benéficos velozmente se expandem pelo subsolo. Ao crescerem na direção de outras árvores, conectam-se a fungos parceiros e às raízes às quais eles estão ligados, criando assim uma rede para a troca de nutrientes e até de informações sobre eventuais ataques de insetos. A essa rede de comunicação vegetal, que funciona para o autor como “a internet da floresta”, tem sido frequentemente aplicada a designação em inglês de wood wide web.
Outros estudos sobre o que ocorre nas entranhas da terra indicam que árvores da mesma espécie, vegetando em conjuntos densos, podem se unir pelas suas raízes para formar um amplo sistema emaranhado capaz de atuar em benefício de todas. Árvores-mães, por essa tática, repassariam nutrientes às mudas nascidas nas proximidades, amamentando-as com zelo paciente nos primeiros tempos de vida. Tal sistema também permitiria que árvores enfraquecidas por pragas ou por condições adversas recebessem das que estão com saúde um suplemento alimentar de emergência.
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Todas essas atividades demonstram que nas matas primárias, e em especial nos aglomerados constituídos por mudas de uma única espécie, a existência individual conta menos que a formação de um superorganismo composto por partes bem integradas. Além de acentuar a primazia de certo instinto social nas florestas, Wohlleben recorre muitas vezes a comparações entre os reinos vegetal e animal, aparentemente levado pelo desejo de enfatizar que as árvores não são autômatos: elas têm volição bem definida, sabem como proceder para sair de enrascadas e disparam mecanismos de defesa ante ameaças vindas de fora. Mas então as árvores pensam?
A fim de superar o enigma, a palavra senciência pode ser posta em lugar de consciência para falar dos processos que os vegetais utilizam ao raciocinar sensorialmente. Apesar de não constar dos dicionários, essa palavra circula desde a década de 1970, quando foi divulgada por um livro que fez enorme sucesso e tem um título semelhante ao do que agora nos chega da Alemanha — A vida secreta das plantas, de Peter Tompkins e Christopher Bird, traduzido por mim.
Tanto no livro mais antigo, onde há pontos discutíveis pelos apelos exóticos, quanto no recém-lançado, bem convincente pela sobriedade do engenheiro florestal que o assina, são numerosos os casos pitorescos de árvores taludas e até plantas de pequeno porte que resolvem problemas de sobrevivência pela aplicação prática e metódica de seu raciocínio sensorial.
Mas as observações incluídas nesses dois livros se referem quase sempre a espécies do hemisfério Norte. A rigor o de Wohlleben se limita às árvores mais frequentes na Europa Central, como faia, bétula, carvalho, salgueiro. Parece-me assim oportuno mencionar um dos exemplos de inteligência vegetal em ação que eu mesmo já pude comprovar aqui nos trópicos.
Em meu sítio na serra fluminense, que na verdade é uma nesga de mata onde há mais de quarenta anos observo os prodígios realizados por animais e plantas, uma árvore nasceu na beira do rio. O barranco é abrupto e pouco sólido, no ponto em que ela se fixou, e por isso as enchentes do verão poderiam facilmente arrancá-la e arrastar rio abaixo. Prevenida, a árvore enfrentou a dificuldade.
Ao atingir cerca de dois metros, modificou toda a estrutura de seu caule retilíneo, curvando-o como se fosse de borracha em várias contorções que empregou, ao longo de muitos anos, para se agarrar e amarrar em outra, já bem maior e firmemente instalada num ponto seco da margem. Feita a soldagem, por uma trama que mais parece escultura, a árvore antes em perigo voltou a crescer em linha reta. Hoje as duas se abraçam, ambas fortes e frondosas, numa prova irrefutável de que os vegetais têm cabeça.
Um lembrete: o sugestivo sobrenome de Wohlleben, autor que trabalha na conservação de florestas e pede a todos para estar em harmonia com as árvores, pode ser traduzido por “boa vida” ou por “viver bem”…
Matéria publicada na edição impressa #1 mai.2017 em maio de 2017.