
Divulgação Científica,
A biologia do comportamento
Cientista norte-americano procura mostrar o que a biologia nos ensina sobre cooperação, reconciliação, empatia e altruísmo
01out2021 | Edição #50“Aquele que entender os babuínos fará mais pela metafísica do que Locke.” Não, não foi Robert Sapolsky quem escreveu a frase acima, ainda que tenham sido os babuínos, aos quais dedicou mais de vinte anos de pesquisa na savana africana, seu ponto de partida para o estudo do cérebro humano. A frase é de um caderno de Charles Darwin, rabiscada em 1838, muito antes da publicação em 1859 de A origem das espécies (Ubu, 2018) e de sua incursão pioneira sobre o componente hereditário e biológico do comportamento humano em 1872, A expressão das emoções no homem e nos animais (Companhia de Bolso, 2009). Mas são os dois fragmentos que antecedem a anotação de Darwin acima que nos permitem compreender seu significado: “Origem do homem agora provada — A metafísica deve florescer”.
Foi no final da década de 1830 que Darwin concebeu seu primeiro esboço da seleção natural, daí a singela afirmação, de efeitos bombásticos, sobre a prova da origem do homem. Mas e a metafísica, o que tem a ver com isso? Darwin dialoga com os filósofos que se interrogaram sobre a origem do conhecimento, que para o empirismo de Locke, exposto em seu Ensaio sobre o entendimento humano (Martins Fontes, 2012), consistiria em generalizações a partir da experiência. Ou seja, tudo o que conhecemos são fatos que se apresentam aos sentidos e outros fatos que possam ser inferidos por analogia dos primeiros, segundo uma síntese de Stuart Mill contemporânea aos escritos do caderno de Darwin. Não existe conhecimento a priori, prossegue Stuart Mill, não existe verdade baseada em provas intuitivas. A mente humana é, no nascimento, uma tabula rasa, uma folha em branco, para usar a expressão pela qual Locke ficou conhecido.
Ora, o que Darwin está postulando é justamente que as características do homem, e dos seres vivos em geral, são resultado de seleção natural e são, ao menos em parte, transmitidas de geração para geração. Todas as suas características, inclusive as que dizem respeito à mente humana, ao seu funcionamento e à sua apreensão de mundo.
Portanto, não cabe mais falar em folha em branco para o entendimento humano: “Podemos assim traçar a origem do pensamento […] (ela) obedece (às) mesmas leis que outras partes da estrutura”, escreve Darwin em seu caderno sobre metafísica. Ou seja, formas de pensar, e comportar-se, são moldadas pela seleção natural e transmitidas através das gerações por mecanismos biológicos. Espécies com ascendentes em comum com a humana, como os babuínos, podem compartilhar traços do seu entendimento e comportamento, além de outros aspectos de sua fisiologia. Essa interessante reconstituição da relação de Darwin, o naturalista, com a filosofia de seu tempo, particularmente no que se refere ao estudo comparativo do comportamento animal, incluída a espécie humana, está no livro Baboon Metaphysics: the Evolution of a Social Mind (Metafísica babuína: a evolução da mente social), de Dorothy Cheney e Robert Seyfarth.
Darwin, o mesmo cientista que obsessivamente acumulou evidências empíricas antes de levar a público sua teoria da seleção natural, aponta para os limites de Locke para a compreensão do entendimento humano. Dos babuínos à metafísica. Que agenda de pesquisa!
O melhor e o pior
Não menos ambiciosa é a agenda de Robert Sapolsky em seu Comporte-se: a biologia humana em nosso pior e melhor. Com a palavra o autor: “Este livro explora a biologia da violência, da agressividade e da competição — os comportamentos e impulsos por trás delas, os atos de indivíduos, grupos e Estados, e quando eles são bons ou ruins. É um livro sobre a forma como seres humanos machucam uns aos outros. Mas é também um livro sobre as maneiras pelas quais as pessoas fazem o oposto. O que a biologia nos ensina sobre cooperação, afiliação, reconciliação, empatia e altruísmo?”.
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Para enfrentar essa tarefa, Sapolsky utiliza principalmente pesquisas que testam hipóteses sobre os correlatos biológicos de comportamentos espontâneos ou experimentalmente provocados, tanto na espécie humana quanto em outros seres vivos, principalmente outros primatas. Quais regiões do cérebro são mais ativadas quando voluntários são convidados a optar por deixar que um bonde siga seu curso e atropele cinco pessoas, ou por desviar o bonde matando uma pessoa para salvar outras cinco? Como se alteram os níveis dos hormônios glicocorticoides de babuínos que sofrem uma agressão? Será que as alterações diferem com o lugar do babuíno na escala social de seu bando? O impacto de uma variante genética no comportamento adulto pode ser modulado por condições ambientais de sua infância ou pela cultura de seu grupo social?
Na primeira metade do livro, a estratégia de Sapolsky é descrever os fenômenos que antecedem comportamentos de agressão ou cooperação com escalas temporais crescentes (de segundos a milênios), que refletem uma complexidade também crescente de interação entre possíveis fatores causais.
Quais os estímulos sensoriais que antecederam em segundos o comportamento e quais circuitos neuronais e neurotransmissores foram mobilizados? Com uma vasta cultura científica e a ajuda de muitos colaboradores, Sapolsky habilmente resenha para o leitor uma miríade de pesquisas científicas, quase cem páginas de referências bibliográficas. Para tornar o texto menos pesado, faz aproximações jocosas com fatos da cultura dos Estados Unidos, gentilmente contextualizados para o público brasileiro em notas de tradução, no mesmo estilo de seu outro livro publicado no Brasil, Memórias de um primata: a vida pouco convencional de um neurocientista entre os babuínos (Companhia das Letras, 2004). Sapolsky arrisca um pouco mais quando lança mão do relato de pitorescas anedotas pseudocientíficas. Numa delas, cita que a necrópsia da terrorista alemã Ulrike Meinhof, do grupo conhecido como Baader-Meinhof no início dos anos 70, teria revelado uma amígdala muito maior do que a média. Sapolsky discute exaustivamente ao longo do livro o papel que a amígdala, uma pequena estrutura cerebral, parece ter nas emoções de medo e ansiedade e no comportamento violento.
Para o autor, a ocitocina, o ‘hormônio do amor’, é no máximo o hormônio do ‘amor paroquial’
O efeito de hormônios agindo nas horas ou dias anteriores pode modificar o grau de resposta do cérebro a um estímulo e os comportamentos que dele decorrem. Mas essa modulação hormonal está longe de ser unívoca. Na discussão que faz sobre a ocitocina, popularizada como o “hormônio do amor”, Sapolsky primeiro reproduz todas as interpretações superficiais e simplificadoras sobre seu papel pró-social para depois apresentar estudos e interpretações que contradizem ou complexificam seu papel. A ocitocina de fato está envolvida na facilitação de vínculos entre seres humanos, mas só entre aqueles identificados como parte do mesmo grupo. Níveis mais altos de ocitocina predizem reações mais excludentes e agressivas com pessoas de fora do grupo. A ocitocina é, no máximo, o hormônio do “amor paroquial”.
Um dos melhores exemplos da articulação entre dimensões biológicas, ambientais e culturais que Sapolsky defende está neste resumo de uma pesquisa que conclui sua discussão sobre a ocitocina:
Durante fases de estresse, americanos buscam apoio emocional (por exemplo, contar a um amigo sobre seu problema) com mais rapidez do que leste‑asiáticos. Um estudo identificou variantes do gene receptor da ocitocina em voluntários americanos e coreanos. Sob circunstâncias não estressantes, nem o panorama cultural nem a variante do receptor afetaram o comportamento de buscar apoio. Em períodos estressantes, a busca se intensificou nos indivíduos que possuíam essa variante do receptor, associada a uma sensibilidade aumentada para feedback e aprovação social — mas só entre os americanos (incluindo os americanos de ascendência coreana). Qual é o efeito da ocitocina para o comportamento de buscar apoio? Depende de você estar ou não estressado. E da variante genética do seu receptor de ocitocina. E de sua cultura.
Dos mecanismos biológicos da memória à neuroplasticidade e neurogênese, Sapolsky navega com brilho e senso crítico por uma enorme variedade de temas, mais amplos do que o objetivo explícito do livro. E faz ou reproduz um sem-número de hipóteses instigantes que articulam achados das diversas disciplinas das neurociências pelas quais transita. Por exemplo, para Sapolsky, o amadurecimento tardio da região cerebral conhecida como córtex frontal seria uma necessidade adaptativa para dar conta da diversidade da organização social dos grupos humanos. A demora no amadurecimento dessa região, envolvida na tomada de decisões para comportamentos que dependem de uma complexa avaliação de contexto social, permite que seu funcionamento seja moldado por mais tempo pelo ambiente, selecionando a expressão dos genes mais adaptados às diferentes formas de organização social.
No capítulo sobre genética, Sapols- ky esmiúça essa visão complexa sobre a interação do dna com o ambiente, seus mecanismos e os vieses da literatura que tende a superestimar o tamanho do efeito dos genes, em detrimento do ambiente, sobre o comportamento. Ele é bastante didático em sua descrição da regulação da expressão dos genes pelo ambiente. Genes só são expressos — ou seja, saem do silêncio de código para virar corpo (produzir proteínas) e comportamento a partir da regulação de outros genes, que por sua vez são ativados por uma variedade de estímulos ambientais externos, captados pelos sentidos e levados aos núcleos celulares, onde o dna mora — por distintos sistemas sinalizadores biológicos (para os não iniciados, o livro traz três apêndices para facilitar essa e outras leituras). Sem isso, como compreender que os genes expliquem 70% da variação em testes de funções cognitivas em crianças ricas e apenas 10% em crianças muito pobres? O ambiente pode achatar e silenciar a influência da variação genética.
Problemas sociais
Já na segunda metade de seu livro, Sapolsky retoma e articula o conjunto de conhecimento exposto nos capítulos anteriores para atacar alguns dos mais difíceis e relevantes problemas da sociedade. O resultado é desigual. Ao discutir hierarquia e adoecimento, um campo crucial da interface biologia e ambiente em cujo debate Sapolsky nos situa, e para o qual contribuiu diretamente, o texto convence. Ele demonstra como as taxas mais altas de adoecimento e mortalidade entre os mais pobres não se explicam apenas pela privação material absoluta ou falta de acesso a serviços de saúde, mas em grande parte pela desigualdade relativa entre pessoas (assim como nos babuínos que Sapolsky estudou) e suas experiências de estresse derivadas da competição desigual, da exclusão e da humilhação. Um dos mecanismos biológicos que parecem incorporar a experiência da humilhação e da desigualdade pelos corpos dos babuínos de Sapolsky, a regulação de hormônios glicocorticoides, age de modo similar entre humanos. A secreção diferenciada desses hormônios foi relacionada a uma maior incidência de hipertensão arterial e outras doenças circulatórias.
As taxas de adoecimento entre os mais pobres se explicam em grande parte por suas experiências de estresse
Já quando avança pelo campo da moralidade, do livre-arbítrio, da Justiça criminal, da guerra e da paz, Sapolsky perde tração. Parte disso talvez se deva à forma reducionista e, por vezes, francamente caricatural como dialoga com as ideias de autores do campo das ciências humanas tão distintos quanto Hobbes, Rousseau, Freud e Margaret Mead. Sapols- ky priva-se assim dos conceitos, categorias e teorias que poderiam dar sentido à profusão de achados empíricos da neurociência contemporânea. É uma postura intelectual curiosa, uma combinação de sarcasmo pela suposta inferioridade epistemológica desse conhecimento e autoindulgência com sua dificuldade confessa em compreendê-lo.
Bem antes de se conhecer os efeitos da ocitocina, por exemplo, as ciências humanas já observavam e discutiam por que grupos sociais muito fechados, coesos e solidários entre si podem ser excludentes e violentos com quem é de fora. As descobertas sobre a ocitocina apenas revelam a necessária dimensão e parte da tradução biológica desse fenômeno social.
Assim ocorre com grande parte das hipóteses testadas nos estudos neurobiológicos, que se originam das observações e inferências das ciências humanas. Isso inclui, por exemplo, todas as categorias diagnósticas da psiquiatria, que Sapolsky cita extensamente no livro. Passados vinte anos da chamada década do cérebro, o balanço que seus próprios entusiastas fazem é que faltou teoria para articular e redefinir as categorias de diagnóstico e pesquisa que poderiam transformar em conhecimento os dados brutos observados.
Os achados biológicos das neurociências, mesmo quando bem articulados, nem sempre significam causalidade suficiente e necessária para explicar os fenômenos sociais observados. Eles enriquecem nossa compreensão sobre esses fenômenos e, sobretudo, podem apontar limites que a estrutura e função biológica colocam em possibilidades de intervenção. Mas a forma como esses achados biológicos são apresentados pode enviesar o debate sobre as intervenções que a sociedade decide ou não implementar sobre comportamentos individuais (tratamentos médicos, por exemplo) e coletivos (políticas públicas). No caso da psiquiatria, isso levou à superestimação do impacto dos tratamentos biológicos para os transtornos mentais, um fenômeno impulsionado pela psiquiatria estadunidense e seu triunfalismo biológico.
Apesar de Sapolsky alertar para as consequências nefastas de leituras biologizantes reducionistas, a distância que ele toma das ciências humanas acaba por limitar o interesse de suas proposições mais abrangentes sobre a complexa sociabilidade que ele mesmo aponta ser a principal característica da evolução de nossa espécie. Sintomaticamente, Sapolsky, embora mencione extensamente os trabalhos experimentais de Cheney e Seyfarth, não cita o livro que, como vimos acima, transita melhor nessa interface, mesmo que limitado aos babuínos.
Para os naturalistas do 19, como Darwin, o diálogo com a filosofia e as novas ciências humanas era inescapável. Passado século e meio de diferenciação seletiva das disciplinas do conhecimento, esse diálogo nada tem de natural. É uma escolha difícil de ser tomada, e mais ainda de ser executada. Esse é um dos impasses da neurociência contemporânea, mas que não impede o leitor de aproveitar a gigantesca erudição científica de Robert Sapolsky e sua disposição em tornar compreensível, sem superficialidade, o ainda emergente campo das neurociências do comportamento.
Matéria publicada na edição impressa #50 em outubro de 2021.