Direito,

O STF diante do espelho

Livro põe em debate as ideias de Barroso sobre a legitimidade do Supremo, que carece de urgente reforma para recobrar status moral

15nov2018 | Edição #9 mar.2018

Luís Roberto Barroso tornou-se, anos antes de ser nomeado ministro do Supremo Tribunal Federal, um dos maiores constitucionalistas do país. Autor de obra prolífica e criativa, Barroso tem a capacidade de falar de modo despretensioso sobre temas difíceis, para o público jurídico ou não. Seu tom antibacharelesco e antibeletrista, mais do que mera opção literária, revela uma virtude democrática mal percebida por seus pares. O diálogo respeitoso, focado em argumentos, não em pessoas ou biografias, tem marcado a sua trajetória como professor, escritor, advogado e juiz. Não fazem parte de seu estilo nem a linguagem pomposa e excludente nem os comentários ad hominem, cacoetes autoritários ainda muito presentes na comunidade jurídica. 

A razão e o voto: diálogos constitucionais com Luís Roberto Barroso, organizado por Oscar Vilhena Vieira e Rubens Glezer — respectivamente diretor e professor da Escola de Direito de São Paulo, da Fundação Getulio Vargas —, é um tributo a esse estilo. Reúne mais de vinte autores que se dispuseram a provocar o homenageado a refinar suas ideias. Para quem deseja conhecer os debates mais avançados sobre o STF como instituição democrática e desfrutar de um diálogo horizontal e construtivo, é referência indispensável. 

O gatilho é o ensaio teórico de Barroso intitulado “A razão sem voto: o Supremo Tribunal Federal e o governo da maioria”. O ensaio apresenta uma versão amadurecida de argumento já ventilado em outros textos e palestras do autor. No debate secular sobre a legitimidade de tribunais constitucionais na democracia, que busca encontrar justificativas para conferir tamanho poder a um colegiado de juízes não eleitos, Barroso engendrou uma resposta eclética. 

Segundo ele, a democracia não pode ser reduzida à sua dimensão eleitoral e aritmética, à contagem de votos sob o critério da regra da maioria, lógica que rege eleições e o Poder Legislativo. O ideal democrático, bem traduzido, somaria duas outras dimensões: a de proteção de direitos e a deliberativa, isto é, da tomada de decisões com base na troca de argumentos. Uma corte constitucional estaria mais bem talhada para desempenhar essas duas tarefas adicionais, pois manteria distância da barganha eleitoral. Assim, não haveria nada de antidemocrático quando uma corte enfrentasse um Parlamento eleito em nome dessas tarefas.

Os três papéis do STF

O cerne da proposta são os três papéis que atribui a uma corte constitucional: o primeiro, já um senso comum, é a função contramajoritária, aquela que autoriza o tribunal a revogar leis quando estas violam direitos fundamentais; o segundo, mais controverso, é o representativo, que permitiria ao tribunal preencher, de forma subsidiária e eventual, o vazio normativo deixados pela inação legislativa e governamental, e assim ecoar demandas bloqueadas pelos canais eleitorais; o terceiro, mais camaleônico, corresponde à “vanguarda iluminista”, que habilitaria o tribunal, em situações excepcionais, diferentes das anteriores, a ser um “agente da história” e empurrar a sociedade na direção do progresso.

Diante da suspeita de que o tribunal, com essas credenciais tão grandiosas quanto indeterminadas, possa fazer tudo que queira, faz um alerta de pragmatismo político: “Sem armas nem a chave do cofre, legitimado apenas por sua autoridade moral, se embaralhar seus papéis ou se os exercer atrabiliariamente, o tribunal viverá o seu ocaso político.” (p. 567) Mais do que especulação teórica e abstrata, os três papéis seriam compatíveis com o perfil que a Constituição de 88 desenhou para o STF.

Os capítulos que sucedem ao ensaio de abertura o miram nos mais variados flancos: a teoria democrática, o desenho das instituições políticas, a realidade histórica do STF. Impossível, aqui, fazer justiça a essa variedade de perspectivas e ao admirável esforço coletivo de mergulhar na proposta de Barroso e submetê-la a um rigoroso teste de stress analítico, no mais genuíno espírito do diálogo franco e sem concessões. Cabe ao leitor descobrir se as intuições do ensaio original sobrevivem a esse teste. E, se sobrevivem, o quanto.

A crise do Supremo

Esse diálogo está apenas começando. Sua continuidade será decisiva para que possamos construir, coletivamente, uma visão de STF que ajude a aperfeiçoar esse transatlântico tão desgovernado e despido de qualquer plano de navegação, porque sequestrado pelos poderes de obstrução de cada ministro. O STF vive hoje seu momento mais crítico em muitas décadas porque não consegue mais disfarçar seu nonsense decisório. Escancarou suas disfuncionalidades por ocasião do tema que a sociedade brasileira acompanha com maior atenção: o combate à corrupção e a operação Lava Jato. Num momento de crise constitucional aguda, no qual os ativos mais valiosos da Constituição estão em processo de liquidação, o STF foi posto diante do espelho. Resta saber se terá clarividência e desapego para reagir diante da imagem que enxerga. Segundo estudiosos da corte, ela não é bonita.

A democracia precisa de uma corte constitucional dotada da aura de tribunal respeitável, com autoridade para ser obedecido pelos outros Poderes e pelo próprio Judiciário. Autoridade é conquista, não um dado que possa ser presumido. É produto da qualidade de ações e decisões, não de maneirismos retóricos. Não vem de graça. O STF não se torna respeitável porque a Constituição manda, nem pela grandiloquência de ministros em seus pronunciamentos, mas por aquilo que o tribunal consegue fazer — e convencer de que fez com isenção. 

As técnicas tradicionais de autolegitimação caducaram. A reforma arquitetônica e a reconstrução do status moral do STF são o único caminho que lhe resta para honrar o papel que a teoria constitucional, e a própria Constituição, lhe atribuíram. A democracia brasileira não pode mais tolerar instituição tão obscurantista na condução do projeto constitucional. Mas tampouco pode abrir mão da ideia de um tribunal imparcial que controle os desvios da política.

Temos hoje a sorte de contar não apenas com uma geração de pesquisadores que vem construindo uma radiografia empírica mais precisa do tipo e do tamanho da patologia que corrói a legitimidade do STF, mas também com um ministro que tem o interesse e a abertura intelectual para participar dessa conversa de modo honesto. O próprio Barroso tem sido crítico de certos usos e costumes do tribunal. É uma oportunidade intelectual e política privilegiada, apesar da conjuntura (ou por causa dela).

Quem escreveu esse texto

Conrado Hübner Mendes

Professor de direito da USP, é autor de Constitutional Courts and Deliberative Democracy (Oxford).

Matéria publicada na edição impressa #9 mar.2018 em junho de 2018.