Desigualdades,

Quintou: economistas pelo tempo livre

De Keynes a Hayek, livro junta ideias de rivais ao defender mais lazer e menos trabalho

01abr2023 | Edição #68

“Todo mundo adora fins de semana de três dias, então por que não os tornar permanentes?” Na mesa de bar, essa ideia “boêmia” renderia debates acalorados. Por incrível que possa parecer, esse é um bordão repetido, em sóbrios seminários e artigos, pelo economista-chefe do Google, Hal Varian, professor emérito da Universidade da Califórnia em Berkeley e autor de livros-texto que apresentaram as equações de oferta e demanda a muitos estudantes de economia, inclusive no Brasil. A proposta também ganhou algum espaço em arenas políticas no exterior desde que a Covid-19 sacudiu a humanidade.

Por estas bandas, contudo, críticas ao nosso suposto excesso de feriados ainda têm sido enfrentadas nos botecos quase exclusivamente com os bons argumentos de sociólogos como o italiano Domenico De Masi, para quem o ócio pode ser criativo e não padecemos de, por assim dizer, domingos de mais. Lançando-se mais à esquerda na estante de livros, sempre é possível recorrer também à munição do revolucionário franco-cubano Paul Lafargue, genro de Karl Marx e autor de um manifesto pelo direito à preguiça, mais conhecido entre as turmas de humanas.

Razões estritamente econômicas em defesa de mais tempo livre, por sua vez, seguem em falta no mercado nacional. Essa lacuna é preenchida por um livro lançado em 2021 na Inglaterra, traduzido em Portugal no ano passado e ainda não editado por aqui. O título vai direto ao ponto: Sexta-feira é o novo sábado: como uma semana de trabalho de quatro dias poderá salvar a economia. O autor é o português Pedro Gomes, professor de economia de Birkbeck, uma das instituições que compõem a Universidade de Londres, e PhD por outra delas, a renomada London School of Economics. Seu orientador no doutorado foi um dos vencedores do prêmio Nobel de 2010, Christopher Pissarides, cujo alinhamento à causa do ex-aluno vem devidamente estampado em uma frase na capa. “Oxalá este livro faça desmoronar a semana de trabalho de cinco dias sem que seja necessária uma outra guerra ou um novo coronavírus”, roga Pissarides, premiado por seus estudos sobre economia do trabalho e macroeconomia.

Limitar jornadas de trabalho horizontalmente é uma intervenção estatal inofensiva ao mercado

A obra também foi recomendada pelo Financial Times, por apresentar “uma abordagem convincente ao tema, enraizando os seus argumentos em teorias econômicas, história e dados — para melhorar a sociedade”. Esses aspectos sinalizam o que o volume traz de mais novo ou raro, o acréscimo de um repertório analítico de economia mainstream a uma discussão normalmente dominada por teses heterodoxas. Algumas dessas últimas também aparecem no livro, porém não mais sozinhas.

O principal empreendimento de Gomes no texto é justamente reunir, em favor de sua proposta de uma semana laboral de quatro dias, reflexões de autores tantas vezes posicionados em lados opostos do ringue. Da ponta direita do espectro ideológico, Gomes saca ideias do austríaco ultraliberal Friedrich Hayek. Para os desejosos de mais Marx e menos Mises, Gomes traz do outro extremo argumentos do mais notório crítico do capitalismo. De diferentes pontos entre os dois polos, evoca ainda John Maynard Keynes, Joseph Schumpeter, Paul Samuelson, Henry Ford e, em passagens mais breves, dezenas de outros nomes de peso.

Em O caminho da servidão (1944), livro de Hayek enaltecido por Margaret Thatcher como “a mais poderosa crítica à planificação socialista”, Gomes não chega a encontrar um apoio enfático à sua campanha, mas ao menos o reconhecimento de que limitar jornadas de trabalho horizontalmente é uma intervenção estatal inofensiva ao mercado, citada pelo austríaco junto à proibição de substâncias venenosas como exemplo de medida “totalmente compatível com a preservação da concorrência”. Gomes lista oito razões para os governos instituírem uma semana de quatro dias de trabalho e, em sua livre interpretação, associa o dito libertarismo de Hayek a uma delas: ampliar o fim de semana dará às pessoas mais liberdade para escolherem como gastar seu tempo.

Invenção social

O cerne da controvérsia, entretanto, é se a economia não seria prejudicada com um pouco mais de liberdade para os empregados — e um pouco menos para os empregadores. Sobre querelas desse tipo, o livro nos recorda a constatação de Winston Churchill: “Se você puser dois economistas em uma sala, terá duas opiniões diferentes; a menos que um deles seja o Lord Keynes, caso em que você invariavelmente terá três opiniões bem diferentes.” Gomes deixa claro desde o título do que pretende nos persuadir e, obviamente, enfatiza as opiniões mais próximas à sua.

Paul Samuelson dá uma boa força nesse sentido. No mesmo ano de 1970 em que recebeu o prêmio Nobel, o norte-americano assinou o prefácio do livro 4 days, 40 hours: Reporting a Revolution in Work and Leisure, que propunha quase a mesma coisa que Gomes diz ser mais viável agora. Há 53 anos, Samuelson escreveu o seguinte: “O progresso vem da invenção técnica, e devemos ser sempre gratos ao descobridor do fogo, ao inventor do dínamo elétrico e ao aperfeiçoador do molho holandês. Mas há também invenções sociais decisivas. Com efeito, à medida que a abundância aumenta na sociedade, essas invenções tornam-se cada vez mais vitais […]. A semana de trabalho de quatro dias é precisamente uma invenção social desse tipo”.

A inovação relatada no livro não era exatamente uma legislação impondo uma semana de trabalho mais curta, mas a experiência bem-sucedida então realizada por uma empresa que compensava o menor número de dias com jornadas diárias mais longas, elevando a produtividade e os lucros. Exemplos de variadas alternativas à jornada padrão adotadas voluntariamente por empresas nunca faltaram e, também no Brasil, passaram a ser mais comuns durante a pandemia. Em muitos casos, a sexta-feira do empregado não ganhou aquela liberdade dos sábados, mas agora é passada em casa, em trabalho remoto.

Em 1926, o pioneiro em série Henry Ford surpreendeu seus colegas empresários ao dobrar o fim de semana de um para dois dias em todas as suas fábricas de automóveis dentro e fora dos Estados Unidos. Diante das previsões catastróficas de federações industriais e think tanks, asseverou que, descansados, seus empregados produziam mais e, se a moda pegasse, a economia sairia ganhando. “As pessoas consomem mais no seu tempo de lazer do que no seu tempo de trabalho. O que conduzirá a mais trabalho. E isso a mais lucros. E isso a mais salários. O resultado de mais tempo de lazer será exatamente o contrário do que a maior parte das pessoas crê que seria”, apostou Ford.

A moda não pegou senão no tranco, depois da quebra da bolsa em 1929 e da grande depressão dos anos seguintes. Ao desemprego em massa e à pressão dos movimentos de trabalhadores, os legisladores americanos e o governo Franklin D. Roosevelt responderam com o programa New Deal. Junto com o salário mínimo e o adicional por hora extra, estabeleceu-se, em 1938, uma jornada máxima de 44 horas semanais, logo reduzida para quarenta horas em 1940, quando o fim de semana de dois dias tornou-se obrigatório em todo o território norte-americano. O desemprego caiu fortemente, antes mesmo do gasto público disparar nos anos em que o país se envolveu na Segunda Guerra Mundial.

Depois de ser muito criticada e sabotada como proposta, a semana de cinco dias foi adotada, ganhou o mundo e as críticas desapareceram quase instantaneamente. Nunca houve tentativa ou proposta relevante de voltar atrás. O pós-guerra inaugurou a chamada “era de ouro” do capitalismo, com a incorporação de mais pessoas às classes médias nacionais, cuja mitologia tomou sua forma típica no imaginário coletivo nas ilustrações de Norman Rockwell para a revista semanal americana The Saturday Evening Post — título, aliás, que se referia então à noite do meio e não mais à de abertura do repouso hebdomadário.

No Brasil, onde o sistema escravista erigido pelos colonizadores europeus permaneceu legal por mais tempo, os primeiros limites às jornadas de adultos foram restritos a empregados do comércio e da indústria, em decretos de 1932 baixados por Getúlio Vargas que permitiam até 48 horas semanais naqueles setores. Em 1943, a Consolidação das Leis do Trabalho limitou as horas extras, instituiu férias anuais de trinta dias e, a partir de 1947, passou a explicitar que o descanso semanal devia ser remunerado. A Constituição de 1988 baixou o teto da jornada contratual de 48 para 44 horas semanais, posicionando o sarrafo na altura que, meio século antes, a legislação norte-americana havia estabelecido (e reduzido dois anos depois). Essa regra se mantém há 35 anos e, embora cubra empregados com carteira assinada de todos os setores, nem sempre é cumprida, tampouco alcança a enorme parcela de trabalhadores total ou parcialmente informais, característica do sul econômico do planeta.

Experimentos globais

Até o fim de 2023, Gomes vai conduzir um experimento do governo português com empresas voluntárias testando uma redução da semana de trabalho sem mexer nos salários. Em paralelo, a organização 4 Day Week Global planeja um piloto semelhante no Brasil, depois de ter encontrado bons resultados entre 61 empregadores no Reino Unido e mais um tanto espalhado por outros países. Numa escala bem maior, o governo da Islândia testou cargas semanais de 35 a 36 horas em 1% dos empregos nacionais entre 2015 e 2019, e os resultados encorajaram grande parte da iniciativa privada do país a reduzir as jornadas de forma permanente, mas não acarretaram mudanças legislativas até o momento.

Nos anos 20, Ford asseverou que, descansados, seus empregados produziam mais

Ao apresentar sua proposta a brasileiros em um webinário do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (ipea), Gomes especulou que, antes de atingir nossas praias, a semana de trabalho de quatro dias tende a virar lei em países desenvolvidos, com alta produtividade e mercados internos razoavelmente grandes, como Alemanha e França, quiçá em bloco na União Europeia. Sobretudo nessas regiões, ele sustenta que agora é possível — e isso, por si só, é um dos motivos para — adotar sua proposta.

Outras razões defendidas no livro são: o estímulo da economia via demanda por entretenimento; o aumento da produtividade; o desencadeamento de inovações desenvolvidas no tempo livre; a redução do desemprego tecnológico; o aumento dos salários e a redução da desigualdade; e, no ponto em que o otimismo impregnado em todas as páginas atinge seu ápice, a reconciliação de uma sociedade polarizada e o esvaziamento dos movimentos populistas. Não cabe detalhar aqui os melhores e piores argumentos sob cada uma dessas motivações, mas vale a pena conhecê-los nas palavras do próprio autor.

A retórica de Gomes é convincente na maior parte do livro, especialmente para quem já simpatizava com ideias parecidas antes, é claro. Em alguns trechos, dá vontade de seguir concordando, mas o ceticismo prevalece. Em outros, a vontade é de acrescentar um reforço ao ponto ou defender alternativas um pouco diferentes, sobretudo se você já tiver alguma na cabeça. Pessoalmente, concordo com a tese geral de que é viável e desejável aproveitar parte dos ganhos de produtividade e da expansão do emprego — metas mais consensuais — para reduzir o tempo que a maioria das pessoas precisa dedicar ao trabalho. Se a melhor maneira de fazer isso é necessariamente um fim de semana mais longo, obrigatório e sincronizado para quase todo mundo, já não estou tão certo.

Junto a colegas do IPEA, em 2020, propus que o Brasil não renovasse a cara e pouco efetiva desoneração da folha de salários de empregados de alguns setores específicos com lobbies muito influentes (que se apresentam reiteradamente como “os que mais empregam”, mas em certos casos são os que mais “pejotizam”). A proposta era que, para novas admissões, concentrássemos desonerações desse tipo em contratos de menor jornada, mas cobrindo horizontalmente todos os setores da economia. A ideia não era proibir jornadas longas hoje permitidas pela lei, mas incentivar uma adoção mais frequente das jornadas mais curtas, como já ocorre nos países desenvolvidos que queremos alcançar. Simplificando a história, o objetivo era reduzir a carga tributária de quem viesse a contratar, por exemplo, duas pessoas por vinte horas semanais em vez de uma por quarenta. A opção de contratar poucos dias de trabalho por semana ou poucas horas por dia ficaria a critério das partes que aderissem ao benefício.

Naquele momento, mais da metade das pessoas consideradas em idade de trabalhar estavam sem trabalho no Brasil. O governo brasileiro, como vários outros, instituiu rapidamente um subsídio à redução temporária de jornadas para evitar demissões. Contudo, a ideia de estimular a criação de novas vagas com admissões menos concentradas em jornadas tão longas ficou de lado, enquanto o subsídio a setores específicos foi prorrogado até o fim de 2023. Boa hora para voltar a discutir alternativas.

A semana de trabalho de quatro dias tende a virar lei em países desenvolvidos

A proposta de Gomes, ao contrário da que fizemos, é mais impositiva e não admite que a redução da carga semanal possa ocorrer também via menores jornadas diárias. Afinal, ele aposta alto nas “economias de coordenação”, ou seja, nas vantagens esperadas se quase todo mundo, nas empresas e famílias, trabalhar e descansar nos mesmos dias e horários, não em turnos diversos. Há também desvantagens, nem todas ressalvadas no livro.

Um dos mais famosos cartuns de Norman Rockwell é o de uma família viajando e voltando para casa de carro. A mesma capa de revista em que circulou, em 1947, promovia um debate intrigante visto em retrospectiva: “Os maridos devem ser babás?” No título interno, o viés da questão ficava ainda mais explícito: “Um homem pode ter uma família e uma carreira também?”. O “doisladismo” já se fazia presente em uma dupla resposta, com um texto assinado por uma mulher e outro por um homem, mas seus títulos não antecipavam tanta divergência. Ela sentenciava: “Maridos não são bons em casa.” Ele indagava o mesmo que acabou destacado na capa: “O que somos — babás?”

De lá para cá, a mão de obra que mais fez adições ao produto e à renda foi a feminina, não por ter deixado de ser desigualmente empregada em tarefas domésticas não remuneradas, mas por ter assumido espaço crescente no mercado de trabalho, fora de casa e dentro das contas econômicas oficiais. Um fim de semana mais longo para todos talvez ajude menos a distribuir melhor a carga de trabalho doméstico do que uma economia com mais postos de tempo parcial para homens e mulheres.

Há também uma tendência demográfica a haver cada vez mais idosos para cada pessoa nas idades atualmente mais produtivas. Como diz Varian, do Google, temos optado por produzir menos bebês e mais robôs. Ao menos para parte dessa população mais envelhecida e ainda produtiva que temos nos tornado, a opção de trabalhar menos horas por dia pode ser mais conveniente do que fins de semana mais longos.

Alternativas à parte, o melhor no livro de Gomes é nos lembrar de que não é preciso ser distópico ao imaginar futuros possíveis. Aos que preferem descartar rapidamente sua proposta como irrealista, cabe perguntar se não teriam menosprezado Ford há um século, quando as noites de sexta ainda pareciam de quinta.

Quem escreveu esse texto

Marcos Hecksher

Economista, é pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e professor da Escola Nacional de Ciências Estatísticas (ENCE/IBGE).

Matéria publicada na edição impressa #68 em março de 2023.