Crítica Literária,

A hora e a vez de Graciliano

Duas novas publicações jogam luz em aspectos menos conhecidos do autor de “Vidas Secas”

07nov2018 | Edição #1 mai.2017

Nascido em Alagoas, Graciliano Ramos foi preso pela polícia de Vargas em 1936; ao sair da cadeia, colaborou na principal revista do Estado Novo, a Cultura Política; mais tarde, filiou-se ao Partido Comunista, no qual militou até o fim da vida. Esse percurso contraditório consubstancia a dependência dos intelectuais em relação ao Estado nos anos 1930-40, mas também a louvável opção, em tempos de polarização ideológica, pela militância combativa, enfrentando dogmas à direita e à esquerda.

No âmbito da crítica, persistia certa aura hagiográfica que exaltava a “integridade absoluta” de Graciliano, neutralizando as implicações ideológicas de suas obras. Felizmente esse quadro vem se alterando, e duas publicações sinalizam tal inflexão: Graciliano Ramos e a Cultura Política: mediação editorial e construção de sentido, de Thiago Mio Salla, e Graciliano Ramos: muros sociais e aberturas artísticas, coletânea organizada por Benjamin Abdala Jr. 

O livro de Salla, baseado em exaustiva pesquisa documental, ilumina um aspecto menos conhecido do Velho Graça: a produção jornalística, incluindo crônicas de quando assinava com pseudônimos, como Soeiro Lobato, J. Calisto e Anastácio Anacleto. Supre-se assim uma lacuna bibliográfica, em especial se considerarmos o agrupamento pouco criterioso (inclusive nas edições recentes) das crônicas de Linhas tortas e Viventes das Alagoas.

No segmento mais instigante do livro, o crítico se detém nos textos da Cultura Política, de quando o escritor passou a colaborar com o mesmo governo que o prendera cinco anos antes. Sem recair no simplismo apologético ou na visada condenatória, Salla revela como Graciliano deu a seus textos uma ambivalência que lhe permitiu certa mobilidade em relação às diretrizes ideológicas a que, aparentemente, teria de se submeter. A análise de crônicas menos conhecidas torna o livro uma referência para os interessados nas interseções entre literatura, política e jornalismo.

A capacidade de Graciliano de vislumbrar “possibilidades de abertura” no interior de um universo opressor também norteia Graciliano Ramos: muros sociais e aberturas artísticas. O conjunto de ensaios, bastante heterogêneo, dialoga com diversos autores. No surpreendente “Faulkner e Graciliano: pontos de vista impossíveis”, Ana Paula Pacheco aponta as similaridades formais entre Vidas secas e Enquanto agonizo, que narram de maneira fragmentada a trajetória de camponeses pobres em meio à modernização dos anos 1930, e demonstra como, em meio às oscilações do narrador de Vidas secas — que ora se aproxima dos desvalidos, ora faz questão de reafirmar seu lugar de classe — o único ponto de vista estável no romance é o de Baleia. Aqui surge a “abertura” possível no mundo concentracionário de Graciliano: as “reflexões” da cachorrinha à beira da morte, acompanhadas de perto pelo narrador, revelariam uma noção comunitária da vida e do trabalho que prefiguraria, em negativo, o reino da liberdade.

As “reflexões” de Baleia apontam para uma noção comunitária da vida e do trabalho 

“Romance e tela: Paulo Honório, o ‘pobre-diabo’”, de Anna Carolina Takeda, ao comparar o romance São Bernardo com o filme homônimo de Leon Hirszman, conclui que o cineasta conseguiu enfatizar mais ainda do que o romance a vida miserável dos trabalhadores do campo a fim de dialogar com um contexto (o da ditadura civil-militar) em que o universo do trabalho sofria, como hoje, brutal ataque e repressão.

De modo geral, ambos os volumes apresentam discussões que iluminam o presente, quando a face do país autoritário mais uma vez se mostra a descoberto. Graciliano e sua obra, em virtude da extrema lucidez e combatividade, mas também das contradições que expõem, servem de inspiração nestes nossos tempos sombrios.

Quem escreveu esse texto

Fabio Cesar Alves

É autor de Armas de papel: Graciliano Ramos, as Memórias do Cárcere e o Partido Comunista Brasileiro (Editora 34).

Matéria publicada na edição impressa #1 mai.2017 em maio de 2017.