Ciências Sociais,

O progresso é divertido

Otimista inabalável, Steven Johnson atribui ao entretenimento e aos jogos um papel central no avanço da história e da economia

15nov2018 | Edição #8 dez.17-fev.18

Steven Johnson é um velho conhecido do universo da divulgação científica. Suas palestras no TED Talks já foram vistas por milhões de pessoas. Seus livros têm sucesso comercial e seu nome virou sinônimo de uma escrita leve e erudita sobre a história das ideias. Em um mundo que flerta com o obscurantismo, ter em mãos seu novo livro, O poder inovador da invenção, é um alívio. No melhor estilo do ensaísmo anglo-saxão, o livro pode ser resumido em uma única ideia: brincar e se divertir não são atividades vazias. Ao contrário, muitas das inovações que mudaram o planeta surgiram dessa característica humana tão peculiar.

Alguém poderia contra-argumentar dizendo que a necessidade, esta sim, é a força motriz de toda inovação. Quem ousar dizer isso terá em Johnson um adversário fabuloso. Ele defende e ilustra sua tese de forma apaixonada: a diversão sobrepuja a necessidade quando se trata de criar algo que ninguém nunca viu antes, fazendo girar as engrenagens do “progresso”. “As instituições da sociedade que tanto dominam a história”, diz ele, “podem dizer um bocado sobre o estado atual. Mas quando se tenta deduzir o que virá a seguir, talvez seja melhor explorar as margens da brincadeira: os passatempos, as curiosidades e as subculturas”. E cita o historiador francês Jules Michelet: “Cada época sonha com o que vem a seguir, criando-a em sonhos”.

Johnson demonstra tanto apreço por gabinetes de curiosidades que organiza o próprio livro dessa forma. Cada capítulo é, em si, um arquivo de curiosidades. Uma matriosca na qual um fato singular e aparentemente irrelevante, ligado à diversão, desdobra-se em ondas cada vez maiores até atingir escala planetária.

Vejamos, por exemplo, a história do caracol aquático Hexaplex trunculus. Esse molusco possui uma característica inusitada: para se defender de predadores, ele secreta uma tinta púrpura que, em tecidos e roupas, produz uma tonalidade incomum. Os fenícios o descobriram há mais de três mil anos. Notaram o poder de sedução desse tom a ponto de converter a cidade de Tiro em enorme polo de exploração dessa cor, conhecida ainda hoje como “púrpura tíria”.

O esgotamento dos caracóis levou os fenícios a navegar para cada vez mais longe, cobrindo o norte da África e abrindo o caminho para a conquista do Atlântico. Nas palavras de Johnson, “o primeiro canto da sereia para o mar aberto foi simplesmente uma cor”. Na visão dele, um capricho da moda, baseado na exploração de um molusco para tingimento, abriu as portas para a era das navegações.

Música contra submarinos

Minha história favorita do livro é uma outra matriosca. Ela envolve uma atriz de cinema e um rebelde da música lutando contra submarinos nazistas. Tudo começou em 1926, quando o músico e compositor de vanguarda George Antheil chocou Paris com seu Ballet mécanique. A ideia original, desenvolvida quando ele tinha 24 anos, era colocar, no principal palco da cidade, dezesseis pianos mecânicos executando uma sinfonia composta por quatro partituras diferentes, mas sincronizadas.

Antheil logo concluiu que sincronizar dezesseis pianolas não era tarefa fácil. Hoje, qualquer controlador MIDI faria isso tranquilamente. Mas, na época, era praticamente impossível. Tanto que Antheil desistiu e usou só uma pianola, acompanhada de duas hélices de avião, xilofones, carrilhões e bumbos. O resultado foi uma peça atonal que despertou a ira de boa parte do público, mas inspirou figuras como James Joyce, T.S. Eliot, Ezra Pound e Man Ray, todos na plateia.

Anos depois, a atriz austríaca Hedy Lamarr fugia da ascensão do nazismo na Alemanha em direção a Hollywood, onde se tornaria uma das mulheres mais famosas e sedutoras. Quando um submarino nazista afundou um navio de refugiados em 1940, Lamarr deu um tempo nas festas da capital do cinema e passou a se dedicar ao desenvolvimento de uma tecnologia que ajudasse a guiar torpedos por radiofrequência.

O problema que tinha diante de si era que a mesma frequência poderia ser facilmente usada pelo inimigo para interceptar o torpedo e controlá-lo. Ela, então, pensou em criar um sistema que mudasse constantemente de frequência, espalhando os sinais por diferentes canais. Lammar chamou esse sistema de “salto de frequência”.

Foi então que conheceu Antheil, com quem começou a trabalhar no projeto. O compositor propôs utilizar um sistema baseado nos mesmos princípios de sincronização de pianolas que tinha concebido para o Ballet mécanique: fitas perfuradas, sincronizadas entre o torpedo e o rádio que o controlava. Rejeitada de início, a invenção foi patenteada em nome dos dois em 1942. Em 1962, durante a crise dos mísseis de Cuba, a tecnologia foi adotada em todos os navios da marinha americana. Em 1997, recebeu o prêmio de pioneirismo da Electronic Frontier Foundation e, postumamente, entrou para o National Hall of Fame dos inventores dos Estados Unidos. Hoje, o princípio criado por Lamarr é empregado em celulares e transmissores de sinal Wi-Fi.

Como dá para ver, Steven Johnson é um otimista inabalável. O tom dessas duas histórias permeia todo o livro. Sua crença na ciência e na capacidade da invenção humana guia não só este, mas praticamente todos os seus livros. Essa é, sem dúvida, uma de suas qualidades, mas é também sua maior fraqueza. Johnson não é leviano ao tratar de questões trágicas, como as mazelas trazidas na busca por algodão e açúcar, que levaram ao colonialismo e à escravidão. No entanto, o tom geral do texto é de “tudo bem quando termina bem”.

Assim, seria possível escrever um livro exatamente inverso ao do dele, no qual a busca por diversão leva não ao “progresso” científico e social, mas à criação de desafios complexos e de difícil solução. Por exemplo, a mesma tecnologia desenvolvida por pioneiros da música eletrônica — motivados por fazer as pessoas dançarem em clubes enfumaçados — é hoje empregada em armas de “correção psicoacústica”, já utilizadas contra o ex-ditador Manuel Noriega, no Panamá, ou, mais recentemente, nos misteriosos ataques sonoros contra a embaixada dos Estados Unidos, em Havana.

A tecnologia dos videogames, que divertem crianças e jovens, é usada para controlar drones e outros armamentos remotos, tecnologia que prenuncia a chegada das armas autônomas, movidas puramente por decisões automáticas, com base em algoritmos e inteligência artificial. Esse tipo de arma promete reconfigurar de novo a ideia de détente e a geopolítica. Isto é, a diversão nem sempre acaba bem. No entanto, em um momento sombrio como o que vivemos, estou com Johnson. É melhor ser alegre que triste.

Quem escreveu esse texto

Ronaldo Lemos

Advogado, é diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (itsrio.org).

Matéria publicada na edição impressa #8 dez.17-fev.18 em junho de 2018.