Ciências Sociais, Política,
As bases sociais da nacionalidade
Autor que viu na solidariedade um princípio estruturante da humanidade se debruça sobre os países e suas relações
09nov2018 | Edição #3 jul.2017Marcel Mauss (1872-1950) é o principal pilar da sociologia e da antropologia modernas. Não só por ser um pensador original e criativo, tendo formulado conceitos até hoje utilizados, mas também porque aí o puseram autores como Lévi-Strauss (1908-2009). Não fosse por sua noção de “fato social total” — que corresponde à “amarração” por dentro de todas as instituições de uma sociedade, dando-lhe sentido único —, provavelmente ainda hoje estivéssemos entregues ao empirismo inglês, que prevaleceu até que ele tratasse dados etnográficos de uma maneira nova. Mauss é desses autores cultuados por “especialistas” e sem grande presença no mainstream da sociologia, talvez porque esta privilegiou o estudo dos conflitos sociais, considerando em segundo plano a solidariedade social.
A nação é obra póstuma, que apareceu em 2013, graças ao cuidadoso trabalho editorial da editora Presses Universitaires de France, compilando textos provisórios e manuscritos, lançado agora no Brasil em tradução igualmente cuidadosa de Dorothée de Bruchard. Trata-se de livro que foge ao curso principal de sua obra, mas não por isso desimportante.
Nele revela-se o pensador político, socialista, preocupado com o futuro. Um futuro que passa pelo entendimento da nação como um processo social moderno, distinto do nacionalismo, quando os povos já se movem no território do direito público, incluindo o impacto da Revolução Russa sobre a concepção das sociedades e suas perspectivas. Embora fragmentária, é uma interpretação de fôlego mesmo para estudiosos afeitos ao tema. Antes do surgimento de A nação, eles deviam se inspirar no estudo clássico e pioneiro de Eric Hobsbawm (Nações e nacionalismo desde 1780). Enfim, é uma nova perspectiva analítica que aparece.
O que é uma nação? Pessoalmente, Mauss se envolve com o tema em 1920, convidado para um colóquio em Oxford, onde fala sobre o “problema da nacionalidade”. A pergunta, porém, dominou o último quartel do século 19, em especial depois de uma célebre conferência em que Ernest Renan, na Sorbonne, em 1882, procurou defini-la como expediente para entender a derrota da França perante a Prússia em 1870.
Diferentemente de Renan — que a tomou como uma espécie de “vontade de estarmos juntos”, fundamento da vida das nações de fato —, Mauss considera a nação como um processo ainda não acabado, distinto do conceito de Estado e criado no terreno da erudição de filósofos e juristas. Trata-se, pois, de um fato de existência simbólica. O que vemos em Mauss é o esforço para perseguir o seu curso desde as sociedades de parentes até o advento do ideário socialista e sua encarnação na Rússia.
O que é uma nação?
Mas a nação não é uma sociedade qualquer e, sim, um tipo de sociedade que “demorou muito para nascer”, embora o conceito já estivesse presente no século 16. O ideário de nação tomou impulso em 1789, com a Revolução Francesa, quando “uma nação procura tomar consciência de si mesma […] e manifestar-se perante o poder do Estado”. Esse espírito apresenta-se especialmente como um ideal no século 19, e “só é encontrado entre os doutrinários liberais, entre os filósofos como Fichte, e entre os socialistas”. A velha formação do Estado, inglês, francês ou alemão, será, a rigor, um contraponto seu, pois uma “nação completa é uma sociedade suficientemente integrada, com poder central democrático em algum grau”.
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A distinção entre nação e Estado não é mero capricho analítico. “A noção de pátria simboliza o total dos deveres que tem um cidadão perante a nação e seu solo. A noção de cidadão simboliza a totalidade dos direitos (civis e políticos) que tem o membro dessa nação em correlação com os deveres que nela deve cumprir”. Portanto, o fato essencial é a correlação entre as ideias de pátria e cidadão, e “só existe a nação onde o cidadão participa da administração do Estado por delegação parlamentar”.
Assim, Mauss fixa um outro objeto de análise: enquanto o Estado é o governante encarnado, a nação é um processo de afirmação de uma “sociedade material (com) relativa unidade moral, mental e cultural dos habitantes”. No horizonte de Mauss, além das relações entre classes, o espaço da nação é o internacionalismo, a paz e harmonia entre os povos, e portanto “uma nação sinceramente pacifista não deve ser dirigida por capitalistas rapaces, de que outras nações temeriam o império econômico”.
Inspirado na solidariedade orgânica conceituada por Durkheim, para Mauss as nações estão vocacionadas para o internacionalismo, pois nenhuma delas está isolada, mas se relacionam por meio de diversas trocas
Talvez o tema mais interessante da obra seja a análise do internacionalismo, ao qual estão vocacionadas as nações, numa espécie de extensão da “solidariedade orgânica” — conforme conceituou seu tio, Émile Durkheim, nos primórdios da sociologia — e como continuidade da integração interna alcançada com a nação.
Internacionalismo
A análise do internacionalismo começa com a constatação de que nenhuma nação do mundo está isolada. Tomando-se as nações como individualidades, estamos diante de um fenômeno inteiramente ideal, sem limites, sendo que na verdade só temos que mostrar “qual ponto dessa evolução a humanidade alcançou hoje”. Ora, enquanto individualidades, as relações entre as nações são de troca ou empréstimos: econômicas, religiosas, estéticas, técnicas, linguísticas, jurídicas — expansões que correspondem à “intensificação da civilização humana”, reforçando a unidade do gênero humano.
No estudo sobre o socialismo, Marcel Mauss dá uma guinada de perspectiva, abandonando o plano do internacionalismo e detendo-se sobre as relações internas para ver, na experiência prática única da Rússia, “as ideias que antecipam os fatos que preparam a organização futura das nações”. Partirá das aulas de Durkheim sobre o socialismo, que o analisou sob o aspecto doutrinário, sem considerar o “socialismo de Estado” nem sua vinculação específica ao operariado.
Mauss seguirá Durkheim, tomando o socialismo como doutrina ou “teoria política” e identificando suas fases: utópica, panfletária, partidária, desembocando na bolchevista. Como pano de fundo, Proudhon e Marx. Mas essa “doutrina das classes trabalhadoras das grandes nações democráticas do Ocidente” vive momentos cruciais na Rússia, e seria desejável que as grandes nações democráticas garantissem à Rússia a liberdade para levar a cabo essa “realização nacional”, que respeita o direito das demais nações e seus nacionais.
Mauss não deixa de reconhecer que a trajetória é problemática: os sovietes foram reduzidos à “ditadura pessoal dos diretores de indústria”; não se acabou com o livre mercado e a especulação, pois não houve a “nacionalização” das empresas com menos de dez operários; tampouco os camponeses reconheceram a direção daqueles que lhes deram as terras. Assim, foi-se criando uma nação econômica, a trancos e barrancos, mas não sob o aspecto democrático.
Em A nação, Mauss se revela, mais uma vez, o grande formulador sobre a solidariedade humana, num universo de contradições que, aparentemente, contrapõem os homens.
No seu magnífico Ensaio sobre a dádiva, que acaba de ganhar reedição no volume Sociologia e antropologia, pela Ubu, ele havia mostrado como, por trás da diversidade empírica das trocas, um mesmo princípio de reciprocidade move cada ato em particular, dando um só sentido às sociedades humanas. Em A nação, por trás dos conflitos dos movimentos nacionalistas do século 19, verá em ação a ideia solidarista, agindo passo a passo, apontando um futuro mais generoso para a humanidade.
Matéria publicada na edição impressa #3 jul.2017 em junho de 2018.
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