Ciências Sociais,
A revolução começa no lar
Após publicação de 'Calibã e a bruxa', Silvia Federici discute o papel das atividades domésticas no sistema capitalista
24set2019 | Edição #27 out.2019No atual contexto político, a Editora Elefante acerta em cheio ao escolher o livro O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista, da italiana Silvia Federici, para tradução e publicação. A autora já é conhecida por muitos brasileiros por Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulaçao primitiva, obra que oferece uma imagem vívida do sistema feudal e uma narrativa coerente sobre a transição do feudalismo para o capitalismo do ponto de vista da mulher. O livro, publicado no Brasil em 2017 também pela Elefante, apresenta uma importante releitura do conceito de acumulação primitiva em Karl Marx e argumenta que o autor alemão teria ignorado certas condições necessárias para a formação do sistema capitalista que possibilitaram — e ainda possibilitam — a não remuneração do trabalho reprodutivo, majoritariamente exercido pelas mulheres.
A capacidade da autora de retratar o período medieval em uma narrativa ao mesmo tempo familiar aos críticos do capitalismo e absolutamente distinta da imagem da Idade Média formada a partir de livros didáticos e interpretações tradicionais faz de Calibã e a bruxa uma experiência imersiva, carregada de violência, realismo e, paradoxalmente, aspectos fantásticos. A exposição do sistema feudal a partir da mesma lógica da exploração capitalista aproxima o leitor das personagens históricas e produz uma rara possibilidade de empatia e de percepção da continuidade entre passado e presente.
Apesar de não poder contar com a fluidez que a narrativa histórica oferece a Calibã e a bruxa, O ponto zero da revolução é de fácil compreensão. A recorrência de temas mais amplos e o modo de organização da obra tornam a leitura natural, mesmo para quem não é familiarizado com o assunto e a obra de Federici. O livro consiste em uma coleção de catorze ensaios, organizados em três partes, escritos entre 1975 e 2011. A primeira parte é composta de cinco ensaios escritos nas décadas de 1970 e 1980. Em parte em tom panfletário, em parte como resposta a críticas, sobretudo vindas da esquerda, os primeiros três ensaios esclarecem as ideias básicas e fundamentos teóricos por trás do movimento Wages for Houseworks [Salários para o trabalho doméstico], originado na Itália e transplantado para os Estados Unidos com a participação central de Federici. Os dois outros ensaios que compõem a primeira parte são aplicações das teorias fundamentais para o Wages for Houseworks: o primeiro deles desmistifica a entrada das mulheres no mercado de trabalho e o segundo oferece uma leitura dos movimentos feministas e de sua relação com o movimento sindicalista.
Essa primeira parte é resultado do rico encontro entre a carreira acadêmica e o ativismo político de Federici. Ela escreve de forma sincera a partir de sua posição de mulher, mas, sobretudo, do ponto de vista de mulher ativista, que compartilhou experiências com mulheres de diferentes classes e etnias e participou de lutas coletivas pela melhora da situação material dessas mulheres. Federici desenvolve sua interpretação do papel crucial, porém invisível que o trabalho doméstico exerce dentro do capitalismo. Para a autora, o trabalho doméstico é parte integral e essencial da reprodução do trabalhador, que é a mão de obra e, portanto, o principal ativo e criador de lucros dentro do sistema capitalista. O conceito de trabalho doméstico abrange não apenas atividades como lavar roupa e cozinhar, mas também suporte emocional e sexo. Segundo essa teoria, a mulher foi responsabilizada, no capitalismo, por cuidar do corpo e da mente dos trabalhadores após o expediente e prepará-los para o retorno ao trabalho dia após dia.
Essa responsabilidade, no entanto, veio sem nenhum reconhecimento financeiro e a partir da atribuição desse trabalho à natureza feminina. Federici acredita que a desvalorização do trabalho doméstico e a da posição da mulher na sociedade são partes de um mesmo fenômeno. Ao lutar por salários pelo trabalho doméstico, ela afirma que tornar visível a exploração que as mulheres sofrem é o primeiro passo para a revolução. Também rebate críticas que diriam que o pagamento pelo trabalho doméstico apenas incorporaria este à lógica capitalista, argumentando persuasivamente que esse trabalho nunca esteve fora do escopo do sistema. Seria, pelo contrário, central para seu funcionamento.
Federici cita o Welfare Mothers Movement [Movimento das mães pela assistência social], comandado nos anos 1960 por mulheres afro-americanas nos Estados Unidos como um dos primeiros exemplos da recusa das mulheres a trabalhar no lar sem remuneração. Ao traçar o paralelo entre o Wages for Houseworks e a luta por políticas de Estado para donas de casa, a leitura de Federici no Brasil sugere as possibilidades de reinterpretar programas como o Bolsa Família a partir de uma perspectiva feminista. Dados de 2016 mostram que 92% dos titulares das famílias beneficiadas pelo programa eram mulheres. A ajuda, em vez de simples assistencialismo, pode ser entendida como uma recompensa às mulheres que trabalham não apenas fora de casa, mas também cuidando de suas famílias. Há críticas feministas a respeito do favorecimento de mulheres dentro do Bolsa Família: a discussão é se o programa aumenta a autonomia das mulheres beneficiárias ou reforça o papel da mulher como responsável pela família, já naturalizado dentro da sociedade. Àqueles interessados nesse debate, a primeira parte do livro é leitura fundamental.
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Mulheres em resistência
A segunda parte, composta de quatro ensaios, trata da cooptação dos movimentos feministas e desenvolvimentistas por instituições ligadas ao capital internacional. Sua leitura crítica, inclusive ao eurocentrismo e ao sexismo de Marx e de seus sucessores, é familiar para o leitor latino-americano, e mais especificamente para os leitores iniciados nas teorias da dependência e teorias anticolonialistas. Nesses ensaios, a autora nos apresenta diversos problemas das políticas internacionais do Banco Mundial à Organização das Nações Unidas (ONU), entre outras instituições do “primeiro mundo” responsáveis por ajudar a desenvolver o “terceiro mundo”. Em “A reprodução da força de trabalho na economia global e a revolução feminista inacabada”, ensaio que encerra essa parte, Federici expõe os limites da teoria marxista para o feminismo e para a luta anticolonialista e trata das consequências da globalização e das políticas neoliberais para a situação material das mulheres, sobretudo do “terceiro mundo”, e a consequente crise da reprodução social.
A desvalorização do trabalho doméstico e da mulher, o empobrecimento do Sul global, as crises de imigração e a continuidade do processo colonial são, segundo a autora, indissociáveis. Toda a obra é permeada, ainda, por uma análise perspicaz sobre o efeito que o processo de desvalorização da mulher e do trabalho doméstico tem sobre a capacidade de atuação política e formação de movimentos ativistas pelos grupos explorados. Ela apresenta historicamente mudanças de paradigmas e suas implicações para a criação de solidariedades.
A leitura dos textos da segunda parte nos remete às discussões em torno da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) das domésticas em 2012 e à ferrenha oposição por parte de mulheres da classe média à sua aprovação. Essa aparente ausência de solidariedade entre mulheres de diferentes classes se origina na essencialidade do trabalho doméstico e no fato de seu fardo ser dado às mulheres sem recompensa. Mulheres que entram no mercado de trabalho formal o fazem como forma de recusa à negligência que sofrem como trabalhadoras domésticas. No entanto, ao ingressarem no mercado, passam a arcar com o peso de uma carga de trabalho dobrada.
No Norte global, esse problema tem sido “solucionado” por uma rede mundial de cuidados, com mulheres do Sul migrando e tornando-se mão de obra barata para o trabalho doméstico. Analogamente, no Brasil esse vácuo é preenchido por milhões de mulheres cujo trabalho desvalorizado ainda está associado à herança da escravidão tardiamente abolida e nunca reparada. Federici mostra que o trabalho doméstico remunerado tem cor, classe e status imigratório, e que o capitalismo desloca estrategicamente o eixo da luta anticapitalista para lutas intraclasses que opõem sexos ou etnias de forma a dificultar a criação de redes de solidariedade.
A terceira e última parte do livro, composta de cinco ensaios, é dedicada à discussão dos “comuns”, em inglês commons. Estes são espaços ainda não regulados pela propriedade privada e disponíveis para usufruto da sociedade. Segundo Federici, as mulheres são as principais dependentes da existência dos comuns e de recursos naturais acessíveis, e portanto têm sido as principais agentes de resistência contra privatizações e captura das terras comunais pelo capital.
É ainda nessa parte que aparecem os ensaios mais recentes da autora, que evidenciam a sua evolução como acadêmica e sua atual inserção na tradição ecofeminista. Federici mostra aqui sua face mais otimista quanto às possíveis formas de resistência e seu potencial transformador para o futuro. Para a autora, o fortalecimento de comunidades e pertencimento ao coletivo são essenciais para rompermos com o capitalismo. Temas de interesse mais atuais também são contemplados. Em “Sobre o cuidado dos idosos e os limites do Marxismo”, fala da crise global de cuidado com os idosos e critica os movimentos radicais de esquerda por não tratarem mais frequentemente desse tema. Esse texto é de extrema importância para os interessados nas consequências da reforma da Previdência.
Embora pareça que O ponto zero da revolução possua sobretudo valor acadêmico e interdisciplinar — a autora fala com desenvoltura sobre economia, história, ciência política, ciências sociais e filosofia —, o grande trunfo do livro é o seu potencial formador para feministas engajadas em movimentos políticos. Federici traz uma visão anticapitalista radical consistente com um caminho de solidariedade entre os grupos que sofrem nas mãos do sistema atual. Seguindo a tradição feminista materialista e marxista de forma crítica, ela nos convence de que apenas um feminismo anticapitalista pode ser bem-sucedido.
Como mulher, a leitura de O ponto zero da revolução é ao mesmo tempo desconfortável e empoderadora. Federici nos permite sentir na pele o desconforto de ser sujeito explorado e o potencial transformador de entender-se como tal. Ao demonstrar que a mulher foi sempre o alvo prioritário do sistema capitalista, a autora nos posiciona à frente da resistência à interminável acumulação de capital. E cumpre, assim, sua promessa de retratar a luta das mulheres como a única capaz de romper com o sistema — como o ponto zero da revolução.
Matéria publicada na edição impressa #27 out.2019 em setembro de 2019.