Canções do exílio, Literatura,

O imigrante involuntário

Guineense relata sua travessia perigosa do Mediterrâneo central em busca do irmão que fugiu para tentar a vida na Europa

01out2024 • Atualizado em: 30set2024 | Edição #86 out
O basco Amet Arzallus Antia e o guineense Ibrahima Balde (Acervo pessoal/Divulgação)

Vítimas de uma tragédia coletiva pouco valorizada na hierarquia das notícias internacionais, os migrantes que atravessam o Mediterrâneo para chegar à Europa costumam ser apresentados ao mundo como uma massa indistinta. É como se sua trajetória começasse ali: quase nada sabemos sobre o que vivenciaram antes de embarcar em um bote inflável superlotado, em seus países de origem e na jornada que os levou até o norte da África.

Em Meu irmãozinho, uma dessas histórias é resgatada do mar de indiferença no qual ficaria submersa. O livro relata a odisseia do guineense Ibrahima Balde em busca de seu irmão mais novo, Alhassane, que fugiu de casa para seguir a perigosa rota migratória do Mediterrâneo central.

A obra é de autoria do próprio Ibrahima e do jornalista e poeta basco Amets Arzallus Antia. Os dois se conheceram em outubro de 2018, em uma estação de trem na cidade de Irun, na fronteira da Espanha com a França, onde Arzallus atuava como voluntário de uma rede de apoio a imigrantes e se oferecia para redigir um dossiê que poderia ajudar aqueles que desejavam pedir asilo a explicar seu caso à polícia espanhola.

Desde a primeira entrevista, Arzallus se impressionou com a forma peculiar com que Ibrahima se expressava. O imigrante não sabia ler nem escrever, mas tinha “uma lógica, uma sintaxe, uma poética particular”. Essa “intuição para medir a duração dos silêncios”, resíduo de uma tradição oral, impactou Arzallus, que atua como bertsolari — nome dado aos poetas populares bascos que se dedicam a recitar versos de improviso.

Depois de muitas conversas, os dois se tornaram amigos, e o que seria um dossiê destinado à burocracia governamental transformou-se em um livro “escrito por Ibrahima Balde, com a voz, e por Amets Arzallus Antia, com a mão”. Publicado em basco e em espanhol e traduzido para vários idiomas, Hermanito ficou conhecido por ter caído nas graças do papa Francisco, que o recomendou publicamente.

Negro, muçulmano e pobre, Ibrahima é a personificação do imigrante indesejado

A narrativa em primeira pessoa preserva a oralidade poética que cativou Arzallus. Um exemplo é a constatação que o jovem faz após a morte do pai: “Percebi que éramos uma casa sem esperança. E eu, o mais velho da casa. Você sabe o que isso significa”.

O texto incorpora palavras em pular, língua da etnia fula, à qual Ibrahima pertence. Uma delas é miñan, que significa irmão mais novo e foi escolhida como título da versão original, basca, da obra, publicada em 2019.

Ibrahima chamou a atenção de Arzallus não só por sua forma de falar, mas também pelo que ele contava. Diferentemente de outros imigrantes, o guineense dizia que sua intenção nunca foi ir para a Europa. O jovem era aprendiz de caminhoneiro em Conacri, capital de seu país, e lá queria ficar, seguindo a profissão e ajudando a mãe, as duas irmãs e o irmão mais novo.

Até saber que Alhassane, então com catorze anos, tinha fugido para a Líbia com a intenção de embarcar para o continente europeu. O menino de “olhos grandes para aprender muito com eles” havia abandonado a escola e percorrido milhares de quilômetros da África Ocidental até o norte do continente. Queria ajudar a família e não via futuro em seu país natal. “Eu olhei e não há”, disse ao irmão mais velho, falando por telefone do campo de refugiados onde estava.

Transformado em homem da casa ainda menino, Ibrahima se sentia responsável pelo irmão. Começou ali seu trajeto em direção à Líbia — e é assim que, sem querer, ao buscar Alhassane para convencê-lo a voltar para casa, ele se torna um migrante a mais percorrendo o tortuoso caminho que nunca o atraiu.

Clandestino

A jornada de Ibrahima por países como Mali, Argélia, Líbia e Marrocos tem todos os elementos dramáticos que povoam o noticiário sobre travessias clandestinas. Transportes insalubres, quilômetros de caminhadas sem comer e quase sem beber água, documentos roubados, extorsões, muros para escalar, cadáveres pelo caminho.

É o Saara, mas poderia ser o deserto entre o México e os Estados Unidos ou a selva de Darién, passagem da Colômbia para o Panamá. A originalidade do livro vem do fato de ser um raro testemunho sobre uma rota tão mortal quanto pouco conhecida, de autoria de um imigrante de origem africana — tratados como uma subclasse na já desvalorizada categoria dos viajantes sem papéis.

Pelo relato de Ibrahima, sabemos que a lona usada para esconder os migrantes dentro das picapes tem cheiro de carne assada; que uma floresta em Tânger, no Marrocos, vira uma pequena África, com grupos divididos por nacionalidade esperando sua vez de atravessar o estreito de Gibraltar; e que aqueles que desistem de embarcar na última hora são mortos a tiros ali na praia mesmo, para que não peçam o dinheiro de volta e não desestimulem os que esperam seu dia de viajar.

Causa espanto o grau de crueldade de golpistas e traficantes de pessoas contra os que encaram essa rota, submetidos a torturas e vendidos em mercados de escravizados. Ibrahima passou por tudo isso e contou o que conseguiu contar, com o nível de detalhe que foi capaz de suportar. Talvez por isso haja algumas lacunas na história, mas são justificadas pela decisão de Arzallus de não pressionar alguém já tão calejado.

Rota mortal

A travessia do Mediterrâneo central é considerada a mais mortal das rotas migratórias conhecidas. A OIM (Organização Internacional para as Migrações) registra mais de 17 mil mortos e desaparecidos desde 2014 — um número obviamente subestimado, dada a natureza irregular do trajeto.

A dura vida da família Balde na Guiné é um exemplo de por que tanta gente se lança nessa aventura. Com uma expectativa de vida de 59 anos e média de escolaridade de apenas 2,4 anos, o país tem o 13º pior IDH (Índice de Desenvolvimento Humano). Em 2023, a nacionalidade guineense foi a mais comum entre imigrantes que desembarcaram irregularmente na Itália.

Negro, muçulmano e pobre, Ibrahima é a personificação do imigrante indesejado. Meu irmãozinho mostra que ele também é um exímio conhecedor de caminhões e de ferramentas para consertá-los, um filho e irmão amoroso e um orador com voz própria.

Nem o livro nem a recomendação do papa foram suficientes para o guineense conseguir o asilo na Espanha. Depois de repetidas negativas, ele obteve uma autorização temporária de residência e trabalha como mecânico. Para Arzallus, é difícil classificar a obra como bem-sucedida, já que sua razão de existir foi um pedido de asilo que fracassou — como afirmou em uma entrevista à BBC: “É curioso porque o livro recebeu a bênção do papa, mas não das leis espanholas”.

Quem escreveu esse texto

Flávia Mantovani

É jornalista especializada na cobertura de migrações

Matéria publicada na edição impressa #86 out em outubro de 2024. Com o título “O imigrante involuntário”

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