São Paulo estava mesmo nas alturas?

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São Paulo estava mesmo nas alturas?

Raul Juste Lores analisa com rigor e paixão produção arquitetônica dos anos 50, mas constrói falsa ideia de que modelo teria salvado a cidade

19dez2024 • Atualizado em: 10jan2025 | Edição #89 jan

São Paulo nas alturas, de Raul Justes Lores, tem o mérito de trazer para o público não especializado o debate sobre arquitetura e urbanismo. Não é pouco, pois desde Brasília, quando a arquitetura brasileira estava em alta, a área vem perdendo relevância na imprensa e junto ao setor imobiliário e ao poder público.

Lançado em 2017 e reeditado em 2024, o livro é baseado em uma pesquisa não acadêmica sobre a produção imobiliária realizada entre o final dos anos 40 e o início dos 60, o período que o brasilianista americano Thomas Skidmore denominou “De Getúlio a Castello”.

O mezanino do edifício Copan (Raul Juste Lores/Divulgação)

Na primeira parte, “O capital segue a forma”, o autor apresenta um conjunto significativo de edifícios projetados e construídos nos anos 50, por ele qualificado como “revolução modernista da arquitetura e do mercado imobiliário”. Várias facetas são abordadas: o Banco Nacional Imobiliário (BNI), que teve Oscar Niemeyer como o principal arquiteto e o Copan, como ícone; a “hollywoodiana” promoção de Artacho Jurado (construtora Monções), com destaque para o edifício Bretagne; as galerias comerciais do centro, como a do Rock; a verticalização da avenida Paulista, cujo marco é o Conjunto Nacional. Destaque ainda para a trajetória de arquitetos imigrantes, como o alemão Hepp, os poloneses Korngold e Duntuch e o italiano Palanti. Acompanhado de mapas, o livro funciona como um guia, com roteiros no Centro, Higienópolis, Paulista, Jardins e Ana Rosa. 

Jornalista apaixonado por arquitetura, Lores analisa empreendimentos com linguagem acessível

Não é uma investigação original, pois os anos 50 já foram estudados com profundidade por pesquisadores como Regina Meyer, Maria Ruth Sampaio, Rossella Rossetto, Fernanda Barbara, Fernando Viégas e Nadia Somekh. O mérito de Lores, jornalista apaixonado por arquitetura, está na síntese, criando uma reportagem que analisa com rigor esses empreendimentos, com linguagem acessível, recheando o texto com as trajetórias pessoais e profissionais dos protagonistas e construindo uma narrativa que encanta o leitor, seja o cidadão comum, o estudante de arquitetura e mesmo o profissional.

É o tempo do desenvolvimentismo, do crescimento acelerado, efervescência cultural e otimismo desenfreado. De dinheiro fértil circulando na praça. Da crença de que o Brasil era o país do futuro. A arquitetura era o cartão de visitas dessa falsa impressão de grandeza.

São Paulo era a maior beneficiária do projeto nacional-desenvolvimentista de Getúlio que a elite paulista combateu. A cidade vivia uma época de euforia e autoestima, que foi às “alturas” nas comemorações do Quarto Centenário da cidade, em 1954, apogeu desse período.

Lores, sete décadas depois, parece ainda estar nesse clima de êxtase, encantado com edifícios com excepcional qualidade construídos nos anos 50, exemplos significativos do modernismo que criaram rica relação entre arquitetura e cidade. Produção que precisa ser conhecida e estudada, como o autor faz com paixão e competência.

No mangue

Se o livro tivesse parado por aí, seria impecável. Mas Lores exagera, definindo esse ciclo com uma “revolução arquitetônica e imobiliária”, construindo a falsa ideia de que “São Paulo estava nas alturas” e que esse modelo poderia ter salvado a cidade da expansão periférica, da baixa densidade e da moradia precária.

Enquanto a elite estava “nas alturas”, a cidade real estava no mangue. Apenas quem circulava exclusivamente pelos poucos bairros que receberam esses edifícios poderia acreditar que a São Paulo dos anos 50 estava neste ápice.

Raul Juste Lores (Renato Parada/Divulgação)

Inúmeros estudos sobre a metrópole, entre os quais o meu Origens da habitação social no Brasil, mostraram que a cidade vivia uma forte crise urbana, cuja solução não poderia ser equacionada por edifícios altos, promovidos pelo setor privado, com boa ou má arquitetura.

Esses edifícios eram destinados à elite ou à classe média alta com grande capacidade de poupança, pois sem um sistema de financiamento de longo prazo (criado após 1964, com o BNH, o Banco Nacional de Habitação), os compradores tinham que pagar, simultaneamente, o aluguel e a elevada prestação de um apartamento, cuja construção era bancada por eles mesmos, a preço de custo, ao longo da obra. As quitinetes eram mais acessíveis, mas a família média de seis membros não cabia no espaço exíguo.

Nos anos 50, a incorporação imobiliária para venda ainda não estava estruturada. Os empreendedores estavam tateando o mercado, e os mais ousados, como o BNI e a Monções, quebraram antes de finalizar seus empreendimentos, revelando a fragilidade desse ciclo, problema que o autor atribui apenas à inflação.

São Paulo recebeu cerca de 1,2 milhões de migrantes entre 1950 e 1962, que não podiam comprar esses apartamentos. Seu alojamento só foi viável por meio do padrão periférico, baseado no trinômio loteamento precário, casa própria e autoconstrução.

Desde os anos 40, consolidou-se um modelo baseado em verticalização em poucos bairros urbanizados, voltado para a elite, e acelerada expansão horizontal, com precárias condições de moradia. O mercado imobiliário, casado ou divorciado de arquitetos talentosos, não oferecia alternativas para os trabalhadores, fora um lote sem infraestrutura. A “São Paulo nas alturas” era um oásis que convivia com um imenso deserto urbano.

“Vila Formosa situa-se nas imediações do fim do mundo […], não tem água, não tem luz, não tem esgoto, não tem policiamento, não tem pavimentação, não tem assistência”, diz um relato dos Anais da Câmara Municipal paulistana em 1950.

Em 1950, apenas 58% dos edifícios estavam ligados à rede de água encanada e só 39% à de esgoto

Os relatos são fartos, sem espaço para transcrevê-los. Em 1950, apenas 58% dos edifícios estavam ligados à rede de água encanada e só 39% à de esgoto. As filas nos ônibus eram imensas, os trajetos demorados em ruas de terra e “paus de arara” levavam milhares de trabalhadores sem transporte.

Mas Lores constrói uma narrativa ilusória de que a São Paulo dos anos 50 era “uma cidade concentrada, onde o costume da época era andar a pé”. Ao contrário, São Paulo tinha baixíssima densidade. A desconcentração começou nos anos 20, quando a densidade caiu de 110 habitantes por hectare (1914) para 47 em 1930 e permaneceu em torno de cinquenta habitantes/hectare até os anos 70.

Falsa dicotomia

Na segunda parte do livro, “A forma segue as finanças”, o autor questiona corretamente a política urbana e a produção imobiliária a partir dos 60, como a opção pelo automóvel, a baixa densidade, as normas de zoneamento, com alguns limites à verticalização e recuos obrigatórios, a ausência de fachadas ativas, os pastiches e os bairros unifuncionais. Uma avaliação dos equívocos do urbanismo paulistano. O problema é que Lores trata esses equívocos como se eles tivessem aparecido só depois da “revolução arquitetônica”, mitificando os anos 50 e criando uma falsa dicotomia entre o antes e o depois.

De forma superficial, o autor critica genericamente tudo o que foi feito em seis décadas, sem identificar as diferentes visões no debate entre os urbanistas e entre eles e o mercado imobiliário. É como se todos estivessem com conceitos equivocados, atrapalhando a “revolução arquitetônica e imobiliária” nos anos 50, que teria equacionado a grave crise urbana paulistana.

Não há dúvida que o zoneamento de 1972 e a decadência arquitetônica dos empreendimentos imobiliários prejudicaram a cidade, mas é um enorme exagero afirmar que eles foram os responsáveis por problemas estruturais, como a extensão horizontal da mancha urbana, a opção pelo automóvel e a subutilização do solo urbano.

Na saraivada de tiros para todo lado, Lores não identifica a autoria dos planos diretores de 2002 e 2014 e não reconhece seus avanços e instrumentos, que corrigiram equívocos da legislação anterior, por ele criticados, como o estímulo a fachadas ativas, a fruição pública nos térreos, edifícios sem vagas de garagem e sem recuos, além da priorização do transporte coletivo.

Sua crítica a instrumentos como a outorga onerosa e a taxação progressiva para imóveis ociosos em áreas bem servidas de infraestrutura é injustificável — salvo por razões ideológicas. O objetivo desses dispositivos é combater problemas por ele apontados, como a desigualdade territorial, a expansão urbana e a subutilização de imóveis bem localizados.

Lores utiliza os excelentes projetos dos anos 50 para, no contexto contemporâneo, defender uma agenda liberal para as cidades que, certamente, geraria resultados ainda piores do que a atual legislação.

Quem escreveu esse texto

Nabil Bonduki

É arquiteto, urbanista, escritor e professor  da USP. Foi eleito vereador de São Paulo em 2024. 

Matéria publicada na edição impressa #89 jan em janeiro de 2025.

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