As Cidades e As Coisas,
O lockdown dos combustíveis fósseis
A descarbonização da economia pode alavancar empregos verdes, mas será necessário repensar padrões de produção e consumo
26abr2021 | Edição #45Vivemos uma década decisiva. Adentramos nela em meio a uma pandemia global e precisamos agir para evitar o colapso ecológico da mudança do clima que se aproxima. Será preciso reduzir pela metade as emissões de carbono até 2030 para atingir a meta do Acordo de Paris: manter o aquecimento do planeta bem abaixo de 2° Celsius. Mas não estamos caminhando bem. O cenário menos perigoso — aquecimento de 1,5° Celsius — dificilmente será alcançado.
Aumento das ondas de calor, do degelo no Ártico, do nível dos mares, da extinção de plantas e vertebrados. Redução da capacidade de produção agrícola e declínio dos recifes de corais e de cardumes para pesca. Os impactos de uma variação de meio grau são expressivos, conforme o relatório de 2019 do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas. Se o ritmo atual de emissão de gases do efeito estufa permanecer como está, o aumento deve ser de 4,5° Celsius (ou mais). E isso seria uma catástrofe.
Green New Deal
São diversas as frentes de mobilização para evitar um colapso climático. Entre elas está o Green New Deal, movimento que se constituiu nos Estados Unidos e vem crescendo vertiginosamente, haja vista o conjunto de Pactos Ecológicos que estão sendo formulados em vários países do mundo e na União Europeia.
Com prefácio de Raquel Rolnik e introdução de Naomi Klein, Um planeta a conquistar: a urgência de um Green New Deal, de Kate Aronoff, Alyssa Battistoni, Daniel Cohen e Thea Riofrancos, é um livro-manifesto que busca dar um salto em relação às reflexões sobre a emergente substituição da matriz energética fóssil por energias renováveis. Mas os autores miram longe: apresentam uma agenda de transição que, além de massiva e rápida, também deve ser justa — à medida que enfrente as desigualdades sociais, especialmente em relação a raça, gênero, renda e localização.
A proposta parte da reinterpretação — não sem ressalvas — do New Deal, programa norte-americano criado para enfrentar os efeitos da crise financeira de 1929. Nele, o governo federal colocou milhões de pessoas para trabalhar em projetos que promoveram benefícios sociais, direcionando investimento para obras públicas em uma velocidade espantosa. Tal fato aumentou drasticamente a capacidade industrial e resultou na construção de inúmeras escolas, pontes, equipamentos, aeroportos, parques, sistemas de energia elétrica etc.
Um dos grandes fracassos do New Deal, segundo os autores, foi o reforço das injustiças raciais: a população negra que vivia no Sul do país foi excluída de boa parte desses programas. Na edição verde do New Deal, empregos também seriam alavancados, em condições iguais de trabalho digno, especialmente para mulheres, pessoas não brancas e imigrantes. E, desta vez, livres da emissão de carbono. Trata-se de medidas que, no cenário atual, dados os impactos econômicos da pandemia, se tornam ainda mais relevantes. Só assim inauguraríamos um novo normal.
Não bastará substituir os combustíveis fósseis; será preciso reduzir o consumo de energia
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A indústria dos combustíveis fósseis detém cerca de cinco vezes o volume de carbono que podemos queimar sem comprometer a vida no planeta. Um lockdown dos combustíveis é imprescindível. Esse é um dos principais recados do livro.
Saídas únicas, como o proposto “imposto sobre o carbono”, podem exacerbar conflitos sem resolver o problema. Basta lembrar os Coletes Amarelos na França, que se revoltaram contra o aumento do preço dos combustíveis. Se o custo da descarbonização recair nas costas da população, dizem os autores, essas medidas serão consideradas impopulares. As manifestações recentes dos caminhoneiros no Brasil são expressão do mesmo problema.
Para os autores, inicialmente deve-se financiar a transição para fontes de energia renováveis, eletrificar a maior parte do uso energético e descarbonizar setores com emissão intensa de carbono. O livro é recheado de propostas concretas e ao mesmo tempo ousadas. Algumas se relacionam diretamente a políticas urbanas:
1) Transporte regional: ampliação da rede ferroviária, tanto para transporte de cargas como de passageiros, inclusive por meio de trens-bala.
2) Mobilidade urbana: priorização do transporte público e da mobilidade ativa. A substituição de veículos com motor de combustão por veículos elétricos não será suficiente, dada a ineficiência do sistema atual.
3) Habitação social de baixo carbono: os autores propõem a construção de 10 milhões de unidades livres de emissão de gás carbônico nos Estados Unidos, especialmente nos centros urbanos e em áreas próximas das redes de transporte público.
4) Rede de linhas de transmissão inteligentes: construção de infraestrutura de alta voltagem que se adapte às variações da incidência do sol e do vento. Elas funcionariam como sistemas inteligentes que “desligariam” aparelhos por nós, temporariamente.
5) Comunidades mais afetadas: adaptação dos bairros das populações mais vulneráveis, ofertando capacidades para que elas mesmas possam planejar e gerir os processos de transformação urbana e ambiental.
Não bastará apenas substituir os combustíveis fósseis por fontes renováveis; será preciso também reduzir o consumo de energia. A produção de painéis solares, turbinas eólicas e baterias exige a extração de recursos naturais, como cobalto, cobre e lítio. Isso traria rearranjos profundos nos padrões de produção e consumo.
E o Brasil?
O livro foi escrito ainda durante o mandato de Donald Trump, que rompeu com o Acordo de Paris. Dito isso: como será que os autores veem o pacote do presidente Joe Biden para infraestrutura e combate às mudanças climáticas de 2,3 trilhões de dólares no país que mais emite gás carbônico per capita do mundo? No Brasil, o negacionismo ainda impera, inclusive em relação à crise climática. E os efeitos podem ser irreversíveis, como o desmatamento crescente na Amazônia — fato considerado por especialistas e juristas como um ecocídio. O caso foi, inclusive, levado ao Tribunal Penal Internacional.
É urgente pautar um Pacto Ecológico e Social no Brasil. Certamente contribuirá para aglutinar as forças capazes de substituir o governo atual, que não se identifica com a vida, tampouco com a democracia.
Matéria publicada na edição impressa #45 em abril de 2021.