As Cidades e As Coisas,

A teoria de tudo 

Nancy Fraser detalha como o capitalismo incorpora novas lutas sociais para se reinventar, mas desaponta ao prever o socialismo do século 21

01set2024 • Atualizado em: 30ago2024 | Edição #85
A filósofa estadunidente Nancy Fraser (Reprodução)

Há mais de quatro décadas, a filósofa estadunidense Nancy Fraser contribui com a teoria crítica de modo original, redesenhando seu pensamento com a reconfiguração das lutas sociais. Seu lançamento mais recente, Capitalismo canibal, é um marco. Nele a autora esboça uma Teoria Crítica de Tudo, defende que as crises atuais podem ter um desfecho emancipatório e busca passar o bastão da sua geração, politizada no ciclo de 1968, para a próxima, formada nos protestos dos anos 2010.

Desde a crise de 2008, Fraser construiu pacientemente um novo modelo teórico-crítico, traçando uma única raiz para todas as formas de injustiça na modernidade: o capitalismo. Não como no marxismo ortodoxo, economicista, mas numa sistematização de vertentes heterodoxas: os marxismos negro e feminista e o ecomarxismo. Para a autora, o capitalismo não é um sistema econômico, mas uma sociedade — uma ordem societal institucionalizada. 

A faceta política desse projeto intelectual está na noção de lutas de fronteira, complementar à luta de classes, foco limitado do marxismo ortodoxo. O capitalismo depende da exploração do trabalho assalariado, mas também de divisões estruturais e separações institucionais: a exploração depende da expropriação; a produção, da reprodução; a sociedade, da natureza; e a economia, da política. Os segundos termos das equações são invisibilizados pela ortodoxia marxista e pelo próprio capitalismo. Mas este sistema social não se reproduz sem eles. E essas quatro separações estão na raiz de várias formas de injustiça: a opressão racial-imperial, a dominação de gênero e sexualidade, a devastação da natureza e a dominação política.

O mais interessante deste modelo crítico é sua abordagem histórica e sua dimensão interpretativa, isto é: ideias e valores importam. A historicidade está na noção de regimes de acumulação capitalista, e Fraser identifica quatro deles: o mercantil, o liberal–colonial, o monopolista gerido pelo Estado e a globalização neoliberal, sendo que um regime pode migrar para outro. Essas transições são impulsionadas tanto pelas contradições estruturais — econômica, social, ecológica e política (uma “contradição racial” não é mencionada) — quanto pelo acúmulo de lutas sociais que explodem revoltas, guerras e revoluções.

O neoliberalismo não teria conseguido avançar suas pautas sem um ‘verniz de caráter emancipatório’

Nesses momentos históricos, o que era invisível — a dependência da economia capitalista em suas condições extra-econômicas — se torna visível. As lutas de fronteira irrompem, instaurando uma crise de hegemonia do regime em questão. São momentos em que as fronteiras se tornam objeto de debate público e grupos sociais entram em conflito para reimaginar as divisões estruturais. Isso significa que questões ligadas a raça, gênero e as concepções de natureza são contestadas, se tornando abertas a uma reinterpretação mais radical. As lutas são o motor da mudança histórica, mas a astúcia do capitalismo consiste em canalizar essas energias rebeldes para se reinventar em novo patamar e, assim, manter a acumulação de capital.

Os capítulos têm formato que se repete conforme a autora passeia pelas formas de exploração, dominação e opressão, tecendo sua teoria de tudo. Primeiro se apresenta, em abstrato, uma fronteira e sua contradição estrutural; em seguida, a história concreta de mais de cinco séculos de regimes de acumulação; e, por fim, uma dimensão da crise contemporânea e do projeto político de sua superação emancipatória.

Central para seu diagnóstico do presente é a categoria neoliberalismo progressista. A transição entre o regime do capitalismo gerido pelo Estado e a globalização neoliberal ocorreu com o levante global da New Left em torno de Maio de 1968. Contudo, o capitalismo se reinventou, incorporando setores moderados dos novos movimentos sociais (antirracistas, feministas, LGBTQIA+, ambientalistas). 

O neoliberalismo não teria conseguido avançar suas pautas redistributivas predatórias sem um “verniz de caráter emancipatório” de três imaginários: a igualdade de oportunidades reduziu o antirracismo à representatividade em postos de comando; o igualitarismo de gênero foi limitado a um individualismo liberal; e o capitalismo verde mercantilizou o ambientalismo. Deste modo, os setores liberais dos novos movimentos sociais se tornaram sócios minoritários de um bloco hegemônico, cujas forças majoritárias são os setores mais dinâmicos do capitalismo contemporâneo. Neoliberalismo progressista é seu nome, hoje em uma crise de hegemonia. Trump e Bolsonaro são alguns de seus sintomas. 

Futuros imaginados

Para onde vamos? Fraser enxerga três possibilidades. A primeira é o capitalismo se reinventar uma vez mais, redesenhando fronteiras e forjando um novo regime que legitime sua canibalização. A segunda é o ritmo dessa recomposição não ser rápido o suficiente para evitar um apocalipse ambiental. A autora considera um terceiro cenário, mais otimista, a partir das lutas já existentes, direcionadas a uma aliança entre trabalhadores brancos e não brancos, um feminismo socialista para os 99% e uma ecopolítica anticapitalista. Contra o imaginário neoliberal progressista, uma imaginação crítica. 

Essa política de coalizões formaria um bloco contra-hegemônico capaz de impulsionar uma ordem capitalista para uma pós-capitalista: “o socialismo apropriado para o século 21”. Esse socialismo seria não apenas radicalmente democrático, como capaz de ampliar a pauta anticapitalista, incorporando com centralidade raça, gênero e meio ambiente.

O maior mérito do ambicioso projeto de Fraser é disponibilizar ferramentas que comecem a organizar a realidade complexa e caótica em que vivemos. Mas como toda teoria de tudo, inevitavelmente há lacunas. Uma das maiores é o tímido lugar da sexualidade — apesar de trazer uma renovada teoria que fundamenta a dominação de gênero no trabalho reprodutivo, Fraser tem dificuldades em conectar a opressão que pessoas LGBTQIA+ vivem na estrutura capitalista.

O ponto mais decepcionante de sua teoria é o desejo de antecipar a cara do socialismo no século 21. Como dito, o lugar de fala da filósofa começou a ser construído em 1968, com uma breve participação em um grupo trotskista. Talvez esse engajamento a tenha marcado com uma dose de vanguardismo, impondo parâmetros externos aos movimentos sociais para julgá-los como insuficientes. Se tivesse se dedicado a uma descrição densa das lutas sociais, mergulhando em como atores sociais e políticos estão reimaginando o destino do capitalismo, estaria mais bem equipada para compreender as tendências de superação das crises atuais. Partindo Fraser de múltiplas heterodoxias, nada impede que seu livro seja apropriado de formas igualmente heterodoxas. Essa missão está em nossas mãos.

Quem escreveu esse texto

Jonas Medeiros

Cientista social, é diretor de pesquisa do Center for Critical Imagination (CCI/Cebrap).

Matéria publicada na edição impressa #85 em setembro de 2024.

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