Arte,

No interior e à margem

Livro compila as intervenções artísticas do grupo 3Nós3 no final da ditadura militar, que levaram táticas de guerrilha para a cena cultural

26nov2018 | Edição #15 set.2018

Não é novidade que a década de 70 foi um momento pulsante das artes, em que seus protagonistas puseram em xeque valores, práticas, mecanismos de circulação e lugares legitimados, entre outros aspectos do sistema cultural vigente. Sob a vigilância do espaço público pela ditadura militar (1964-85), os anos 70 foram marcados por uma série de transformações na prática artística, resultantes da convergência entre um espírito libertário e uma apreensão mais ampla e direta da experiência social urbana. 

No entanto, até bem pouco tempo atrás, a historiografia da arte brasileira dedicada ao período privilegiou a cena carioca, orientada pelo legado de artistas como Helio Oiticica, Lygia Clark e Cildo Meireles. Se é verdade que a arte ali produzida tem força enorme, também é preciso reconhecer que ainda há muito a ser investigado e sistematizado sobre a década experimental no Brasil. 

Daí a importância do volume 3Nós3: intervenções urbanas 1979-1982 para a bibliografia nacional. Organizado por Mario Ramiro, ex-integrante do grupo que dá nome ao livro, a publicação traz um conjunto documental riquíssimo sobre as ações realizadas por Ramiro, Hudinilson Jr. e Rafael França durante três anos: fotos e stills de vídeos, manchetes de jornal com a repercussão das ações na mídia, escritos da crítica especializada à época, estudos mais recentes, realizados no ambiente acadêmico, bem como uma cronologia de fatos paralelos que permite situar o contexto em que o grupo atuou. O equilíbrio entre os artigos e os registros das obras indica o papel central da fotografia na arte do período, repleta de ações efêmeras, ocorridas fora de museus e galerias.

Alunos da Escola de Comunicação e Artes da USP, os três se filiavam a uma linhagem mais ampla de artistas independentes que tomava a cidade de assalto, convertendo-a em palco de ações furtivas. Equipe3, Arte/Ação, Manga Rosa, Viajou Sem Passaporte e outros grupos faziam intervenções em locais inusitados (outdoors, ônibus, viadutos, vias, monumentos).

A rua ganhava centralidade, quer como espaço alternativo para a realização de trabalhos — ao questionar o domínio da arte moderna em galerias e museus, de difícil acesso a jovens artistas —, quer como matéria propulsora para suas intenções poético-espaciais. As intervenções do 3Nós3 carregavam, ainda, um espírito de conquista da urbe: um exemplo é Ensacamento (1979), quando encapuzaram monumentos públicos com sacos plásticos, negando as representações oficiais reverenciadas na cidade de São Paulo.

Manual de guerrilha

Além da apresentação assinada por Ramiro, que dá o contexto do ambiente no qual germinou o 3Nós3 e atribui a demora em viabilizar o projeto do livro ao interesse tardio da crítica pela arte marginal do grupo, a publicação traz contribuições da crítica Annateresa Fabris e das pesquisadoras Maria Adelaide Pontes e Erin Aldana.

Em seu artigo, originalmente publicado em 1984, Fabris desenvolve a tese de que as ações do grupo são estruturadas em dois momentos: o primeiro, de caráter sociológico, “por visar alvos consagrados” (monumentos, galerias); e o segundo, “cujas intervenções tinham como princípio gerador especulações de caráter visual” (contrastes, relações de cor).

No segundo texto de sua autoria incluído na obra, de 2012, a crítica revisita as análises feitas no calor da hora e evidencia o caráter ativista do 3Nós3 — que ela nomeara de “estética do contexto” —, ressaltando a consciência de seus integrantes ao ler a cidade contemporânea como um sistema informacional complexo. Assim, aproxima-os da vanguarda futurista sob três aspectos: primeiro, a cidade como espaço de controle, no qual é possível injetar energia positiva e crítica; segundo, a obra não se justifica por si, é preciso inseri-la num sistema de informação que lhe outorga um lugar social preciso; terceiro, o questionamento dos valores consagrados não pode prescindir do circuito institucional.

Se os textos de Fabris se concentram em ler as primeiras ações e suas relações com a história da arte, o artigo de Pontes (curadora da retrospectiva do grupo em 2012) traz um apanhado geral dos três anos de atuação do 3Nós3. A pesquisadora destaca as novas formas de fruição da arte promovidas pelas intervenções: para que as ações praticadas na calada da noite se tornassem conhecidas, os artistas as noticiavam estrategicamente para a imprensa na véspera — que por sua vez não só as divulgava para o público, como também as documentava.

Pontes ainda explora os vínculos entre a atuação do 3Nós3 com a chamada “arte de guerrilha”, sugerindo aproximações com o Manual do guerrilheiro urbano, de Marighella, e com a Teoria da guerrilha artística, de Décio Pignatari. Sobre as filiações históricas, a autora tece associações com a geração imediatamente anterior ao grupo (Christo, Nelson Leirner), contemporâneas a ele (Paulo Bruscky) e aponta sua importância para os anos subsequentes, quando a prática de intervenção urbana se disseminou pela cidade (haja vista as ações em outdoors dos anos 80 e o projeto Arte/Cidade nas décadas seguintes).

Aldana assina um artigo que aborda o segundo ciclo do grupo, voltado a intervenções urbanas que lidam com as estruturas arquitetônicas presentes na cidade e seus fluxos. Segundo a autora, as “interversões” (conforme a designação dos artistas) feitas com faixas coloridas marcavam o contraste entre a sua qualidade plástica e a existência cinzenta da metrópole. Experimentadas ou não, tais ações representariam um conhecimento profundo de São Paulo, possível apenas com seu uso efetivo no tempo.

A parca existência de estudos pela crítica e pela historiografia da arte brasileira sobre esses anos de experimentação no Brasil seria suficiente para justificar o livro. Nenhum momento poderia ser mais propício para rever aquela produção coletiva e marginal que o atual, marcado por uma nova lufada de contestações, ligadas principalmente à problemática cena urbana contemporânea, que decanta as transformações das últimas décadas. 
 

Quem escreveu esse texto

Tatiana S. Ferraz

É artista plástica, arquiteta e professora de escultura do curso de Artes Visuais da UFU.

Matéria publicada na edição impressa #15 set.2018 em setembro de 2018.