Arte e fotografia,

Política da natureza

Será a praia um lugar aberto à periferia, ou vedado como o centro de poder das nossas cidades?

01jul2020 | Edição #35 jul.2020

No começo de Piscinão, Daniel Klajmic declara seu cepticismo quando, em 2002, o piscinão de Ramos foi inaugurado. Seria ele uma forma de devolver a natureza à população do Complexo da Maré ou um expediente da sua segregação no tecido urbano do Rio de Janeiro e do seu afastamento da Zona Sul? O livro abre com a imagem a preto e branco de um rapaz de costas, relaxando à beira da água. Pressentimos seu abandono ao prazer pela posição do corpo, flectido sem constrangimentos. É das imagens menos habitadas e a mais introspectiva do livro, que evolui para a cor e as pessoas. O menino é duplicado no jovem da imagem seguinte, também de costas e a preto e branco, na qual o plano abre, como se de uma a outra tivesse crescido.

Antes, o prefácio monocromático já revela outro crescimento: uma menina surge deitada na areia (talvez dormindo) e, depois, se torna uma moça alegre. A transformação das crianças dos dois pares de imagens acompanha a transformação do olhar de Klajmic, que é não só o autor das imagens, mas aquele que regressa ao seu olhar quase duas décadas depois — após as circunstâncias, a pandemia, a quarentena terem transformado a percepção que tem do próprio trabalho e o tempo ter revelado a exaltação e o contacto dos corpos uns com os outros. Trata-se de imagens de um passado de que ainda todos nos lembramos.

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Na juventude, o menino e a menina do prefácio talvez ainda não saibam que a natureza não é para todos. Piscinão revela-nos esse facto. O crescendo de exaltação das imagens, à medida que o livro é tomado pela multidão (tal e qual uma praia que vai enchendo de gente), testemunha tanto o cepticismo inicial do autor sobre o lugar que fotografa como o modo como seus sujeitos são indiferentes ao que o fotógrafo começa por pensar: a praia enche, as pessoas estão alegres, sua alegria agita o artista e puxa por ele. Que sabemos nós sobre a alegria dos outros?, perguntam-nos essas fotografias. Que coisa é essa, a alegria? O piscinão, uma praia construída pela mão humana, dá conta do modo como o acesso à natureza é tão pouco democrático como o acesso à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao emprego e à habitação, dando-nos conta, em simultâneo, da forma como sabemos muito pouco sobre aquilo que faz felizes aqueles que nos importam.    

Política e sentimento

A questão deste livro curto é, ao mesmo tempo, política e sentimental. Será a praia um lugar aberto — e a natureza, o ócio, o usufruto do descanso, do prazer, do contacto com a água, os rios, as árvores, serão ou não limitados e tão circunscritos, vedados como o centro de poder das nossas cidades em relação à outra metade, que nele não é bem-vinda, que não chega perto, que o centro repele e mantém à distância? Piscinão não se limita a responder a isso sem cinismo, mas Klajmic não se esquiva a revelar-se na sua vulnerabilidade, através dos corpos suados, risonhos, bronzeados, sensuais, sujos de areia, salpicados de água, exaltantes, que fotografa: se a alegria das pessoas na praia atrai o fotógrafo, é também porque ele, como nós, não a entende completamente — e quer fazê-lo.

Seria o piscinão uma forma de devolver a natureza à população ou um expediente da sua segregação?

Piscinão acompanha a curiosidade de Klajmic e segue o fio da sua atracção. Ele anda pelo meio das pessoas, chega muito próximo, goza o seu gozo, cheira o seu creme bronzeador, aproxima-se dos corpos. Quase os tocamos à medida que o fotógrafo quase se funde a eles. A câmara cheira, apalpa, dispara de muito perto, como se a curiosidade do fotógrafo o conduzisse a desaparecer nos corpos, passando de presença estranha a parte deles. O percurso do livro é o de uma dissolução do artista na paisagem humana que o instiga — fotógrafo tornado fotografia —, como se, diante de nós, um homem se tornasse muitos e o menino a preto e branco, contemplativo, na sua solidão, se tornasse um mar de gente: as pessoas cantam, tocam, a banda passa, molham-se, caminham, relaxam, as fotografias são mudas, mas a vida está carregada de música.

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Se a pandemia nos veio revelar a desigualdade e a arbitrariedade com cores nunca vistas, e o contacto humano de Piscinão nos parece distante, Klajmic relembra-nos a natureza política da proximidade e do ócio mostrando-nos, dezoito anos depois, de regresso ao seu arquivo, uma política da natureza e um relance do feitiço inexplicável de que é feita a história da fotografia: aquele que os seres humanos exercem uns sobre os outros sem saber explicar bem por quê.

Quem escreveu esse texto

Djaimilia Pereira de Almeida

Escritora angolana, publicou Esse cabelo (LeYa).

Matéria publicada na edição impressa #35 jul.2020 em maio de 2020.