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A cobertura especial d’A Feira do Livro, que acontece de 14 a 22 de junho, é apresentada pelo Ministério da Cultura e pela Petrobras

MINISTÉRIO DA CULTURA E PETROBRAS APRESENTAM

A escritora Aline Bei (Isadora Arruda/Divulgação)

A FEIRA DO LIVRO 2025, Literatura brasileira,

Obsessões rítmicas

Em seu terceiro romance, Aline Bei retoma temas como a solidão, a maternidade e o abandono, mas agora sob uma nova perspectiva

28maio2025 | Edição #94

A escrita de Aline Bei tem uma marca própria, que se apresenta desde sua estreia, em 2017, com O peso do pássaro morto. O trabalho cuidadoso com a palavra, a pontuação, o tamanho das letras e os espaços operam para construir não só uma prosa poética, mas uma imagem do texto na página. Entre os vários efeitos desse exercício, podemos destacar a aura lúdica que confere à leitura. 

Em Uma delicada coleção de ausências, quem narra transmite ainda mais essa sensação. Trata-se de uma voz que não parece ter gênero e atua em terceira pessoa, diferentemente dos livros anteriores, ambos narrados em primeira. Tem ainda uma forte carga de dramaturgia, o que acentua a fantasia da qual, como leitoras ou leitores, somos convidados a participar. Em um exercício semelhante ao de roteirista, a voz desenha com nitidez os detalhes, da disposição dos objetos no espaço aos movimentos de corpos. Então, delicadamente, nos guia para o interior das mentes das personagens, se confundindo com o pensamento delas.

No início, de mansinho e em caixa baixa, somos levados:

quando o circo chegou à cidade, aquele pedaço de terra batida onde levantaram a lona finalmente ganhou seu segredo. noite após noite se manteve iluminado, e parecia tão natural naquela paisagem que é como se tivesse crescido depois da chuva, e circo fosse árvore ou coisa que vem da terra. 

Neste prólogo, prevemos o futuro da história. Trata-se de uma passagem pela juventude de Margarida, moça que tinha mãos que se pareciam “com as de um cadáver muito delicado que morreu talvez de susto”. Assistente do mágico do circo, a personagem vive uma história de amor com o palhaço, com quem aprende a arte da quiromancia. Antes de partir sem deixar notícias, é ele quem lê a mão da moça. Diz que sua palma é “toda atravessada por vazios e impermanências, algumas saudades, muitos arrependimentos” e “parecem uma longa coleção de ausências”; prevê que terá um grande amor e “não será um homem, mas uma menina”, e diz para “ficar atenta com homens”.

Do universo fantástico do circo, somos conduzidas para outro cenário: a casa de um só quarto que Margarida, já uma mulher madura, divide com a neta, Laura. A menina está entre o fim da infância e o início da puberdade. Abandonada pela mãe, Glória (filha de Margarida), logo após o nascimento, a garota compartilha com a avó “aquela intimidade que se estende pela rua até o limite da desintegração”. 

Para criar sua neta, Margarida lê mãos de estranhos em uma feira de antiguidades, na cidade fictícia de Belva. Recebe também a ajuda de Camilo, um amigo que resolve questões práticas para ela, aparece para jantar e, vez ou outra, coloca notas de dinheiro sob o liquidificador. 

A cada livro, é como se a escritora observasse um mesmo objeto sob outro prisma

Do tipo de autora dedicada às suas obsessões, Aline Bei retoma neste universo elementos de seus romances anteriores: a maternidade indesejada; as relações dolorosas entre mãe e filha; as várias fases da vida feminina; a mulher diante da própria intimidade; a literatura como performance do corpo; e a tríade abandono, ausência e solidão. 

Resgatar temas, no entanto, não significa se repetir. A cada livro, é como se a escritora observasse um mesmo objeto sob outro prisma. Se as personagens das histórias anteriores encaravam a maternidade como um fardo e impunham às suas crias a dor de uma mãe que não queria estar ali, Glória faz diferente: simplesmente se abstém e vai embora. Sabemos dela apenas pela falta manifestada por quem deixou para trás: sua mãe e sua filha. 

Com uma personagem ausente, a autora apresenta uma nova perspectiva da experiência do abandono. Para Laura, a garota de Uma delicada coleção de ausências, não conhecer a mãe, mas ser cuidada e amada por um adulto, afinal, é diferente de ter a presença materna mas conviver com a falta de amor, como acontece nos outros romances da autora.

A relação de carinho e intimidade entre neta e avó, porém, é abalada pela chegada de Filipa, a mãe de Margarida. Anos antes, ela vivia na mesma casa. Mas, muito católica, decidiu ir embora depois que Glória engravidou sem saber ao certo de quem. 

O incômodo da chegada, no entanto, vai se transformando ao longo do romance. É como se, nessa linhagem de mulheres que fogem — no passado, Margarida também foi embora com o circo —, uma nova experiência se impusesse, mostrando que “é possível gostar pela convivência, distraidamente, a casa conduzindo os corpos não para um amor inalcançável, mas para aquele que sentimos por nós mesmos acima de tudo”. 

Corpo

Aline Bei criou um universo ficcional coeso, descolado de sua biografia — mas sua trajetória ajuda a compreender seu estilo. Na vida da escritora, primeiro veio o teatro. Ela é atriz, formada pelo Célia Helena Centro de Artes e Educação. A literatura chegou depois. E em sua escrita, teatro e literatura se encontram o tempo todo. 

Além da dramaturgia na voz narrativa, a história e a poesia se desenrolam em Uma delicada coleção de ausências no corpo das personagens. Elas não fazem sexo ou amor. Vão para a cama, onde ficam nuas e se esforçam, “como se parissem, naquela musculatura, Asas”. Não são apenas velhas ou corcundas, vivem um “estado de presença brutal, à beira do insuportável”, porque “talvez envelhecer seja lidar imensamente com o próprio corpo”. 

Pelo corpo de Filipa, a bisavó, vemos Aline Bei manipular com mais intensidade a velhice feminina, apresentada, sem dúvida, como limite do corpo. Mas também talvez como oportunidade de revermos relações de vida. 

Junto de uma nova edição de O peso do pássaro morto, agora pela Companhia das Letras, e de Pequena coreografia do adeus (2021), da mesma editora, Aline Bei apresenta uma espécie de trilogia em que nos conduz, com poesia, à intimidade extrema de grandes personagens femininas.

A Feira do Livro 2025 · 14 — 22 jun. Praça Charles Miller, Pacaembu

A Feira do Livro é uma realização do Ministério da Cultura, por meio da Lei Rouanet – Incentivo a Projetos Culturais, Associação Quatro Cinco Um, organização sem fins lucrativos dedicada à difusão do livro e da leitura no Brasil, Maré Produções, empresa especializada em exposições e feiras culturais, e em parceria com a Prefeitura de São Paulo.

Quem escreveu esse texto

Giuliana Bergamo

É jornalista e mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP

Matéria publicada na edição impressa #94 em maio de 2025.