Literatura,
O escritor sem limites
Nas margens do realismo fantástico, obra de José Donoso é redescoberta com publicação de diários que revelam sua personalidade complexa
04out2024Há apenas um lugar no mundo onde um escritor morto há quase três décadas possa continuar trabalhando, publicando e, o mais importante, reinventando a si e a sua obra: a América Latina. Os críticos literários podem até divergir no que efetivamente foi o realismo mágico (um fenômeno comercial? Uma revolução literária?), mas fato é que seus autores seguem fazendo mágica, como é o caso de José Donoso. No dia 5 de outubro, completam cem anos de seu nascimento. E, mesmo morto em 1996 por um câncer hepático, nunca esteve tão vivo e latente como nas últimas décadas.
“Ninguém fica igual depois de ler os seus diários”, diz Cecilia García-Huidobro, professora titular da Universidad Diego Portales, no Chile, e editora dos diários do escritor chileno post mortem. Não mesmo. O escritor abordava êxtases com a escrita — “este capítulo que acabo de terminar tem coisas boas. (…) Pode ser um capítulo sensacional” — para escrever dias depois que estava “bastante deprimido com o capítulo que acabo de escrever, que é bem ruim”. Compartilhava opiniões sobre escritores do boom — “Gabo é superficial, fogo de artifício, um bumbo, tropical… e sendo ou podendo ser humano, não o é, elegeu não ser. Tampouco é Cortázar, ou Vargas Llosa ou Carlos Fuentes”. Há ainda confissões sobre sua filha, “eternamente limitada de mente”, e sobre sua homossexualidade, que nunca foi escancarada: “É verdade que não sou um homossexual ‘praticante’ (três vezes ao ano, mais ou menos, vou a uma sauna onde anonimamente e animalmente possuo e me entrego a todos. Isso, e às vezes menos, me basta)”.
Querido diário
Esses fragmentos só vieram à tona em 2016, quando passaram os dez anos de embargo depois da morte do escritor, que vendeu os diários na época por 10 mil dólares para as universidades de Iowa e Princeton. Cecilia García-Huidobro foi a editora responsável pelos livros Diarios tempranos: Donoso in progress (1950-1965), uma maçaroca de 712 páginas publicada em 2016, e por Diarios centrales: A Season in Hell (1966-1980), outro calhamaço de 756 páginas, publicado este ano, ambos pela Ediciones udp, no Chile.
Os títulos ainda não chegaram ao Brasil (e por isso os trechos acima foram traduzidos livremente para o português). O primeiro volume foi eleito livro do ano no Círculo de Críticos de Artes de Chile e ganhou holofotes da imprensa. Como é possível imaginar, foi reconhecido não só pela qualidade literária, mas pela forma aberta com que o autor trata a homossexualidade, inveja, fofocas e rivalidades no cânone literário.
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“A recepção foi bastante sensacionalista, num primeiro momento. Mas depois foi comovente [ver leitores] acompanhar a privacidade de um autor, seu processo criativo, seu lado obscuro, seus demônios e sua maior obsessão: a escrita”, diz a editora.
Nos diários, Donoso opina sobre outros escritores e aborda sua homossexualidade
“Ele tinha certeza de que os diários seriam lidos e estudados em muitas direções. E que uma dessas direções poderia ser em conjunto com a narrativa”, concorda Liliana Marlés, pesquisadora da usp cujo doutorado foi sobre a obra de Donoso. O desejo era tamanho que sua única filha, Pilar Donoso, escreveu Correr el tupido velo (“Remova o véu grosso”, também inédito no Brasil), livro de memórias mescladas com passagens dos diários do pai. “Eu não tinha proximidade com a família, mas após a morte de Donoso encontrei Pilar algumas vezes em eventos literários. Um dia ela me disse que tinha um projeto e me mostrou algumas páginas [do que viria a ser Correr el tupido velo]. Fiquei deslumbrada”, conta a pesquisadora. “Pilar foi uma mulher lúcida e decidida, que logo teve consciência que os diários do seu pai despertariam interesse pelos aspectos obscuros de sua complexa personalidade, por isso optou por ela mesma contar a história dele. E saiu esse livro tão extraordinário e doloroso”.
Pilar Donoso morreu em seu apartamento em 2011, aos 44 anos, depois de ingerir altas doses de medicamentos.
Corpo e anticorpo
Um dos pontos na tese de doutorado de Liliana Marlés é a questão da abordagem dos corpos disformes nas principais obras de Donoso, Obsceno pássaro da noite e O lugar sem limites (estas, sim, com tradução para o português respectivamente pelas editoras Benvirá e pela Cosac Naify). O primeiro título, de 1970, é considerado uma das grandes obras-primas da literatura latino-americana. A estrutura do romance é uma espécie de fluxo de consciência do faz-tudo Mudinho, personagem principal, que passa os dias cuidando de uma casa antiga e aparentemente abandonada que abriga velhas, órfãs e freiras mergulhadas em um cenário decrépito. Mudinho então recorre às lembranças da época em que trabalhou para um aristocrata que, para preservar a disformidade física do filho, criou uma realidade composta apenas de pessoas disformes.
Já o segundo conta a história da travesti Manuela, proprietária de um bordel junto com sua filha, Japonesita, num vilarejo que poderia ser em qualquer lugar do Brasil ou da América Latina, já que o denominador comum é a violência, pobreza extrema e coronelismo. Escrita em 1965, a obra coloca em xeque questões de gênero (o fato de Japonesita só chamar Manuela de “papai”, lembrando-a constantemente de sua condição biológica), o machismo latino-americano e o progresso por essas terras que sempre é conjugado no futuro, mas nunca no presente.
“O lugar sem limites, hoje, tem um tema muito atual, mas estamos falando de uma obra escrita em 1965, sobre uma travesti numa zona rural. Há muita política na obra de Donoso, mas não é explícita e didática como a de autores que estavam vendendo como água naquela época”, explica Marlés. E essa inquietude, pelos diários, parecia incomodar também seu próprio corpo. Afinal, não são poucas as passagens que conectam as dores de escrever com dores musculares, de cabeça e até ao câncer no fígado.
“Ele quer falar o quanto ele sofre enquanto escreve, que o corpo dele enquanto escritor está ao mesmo tempo padecendo da escrita. É um ‘eco romântico’, mas naquele momento isto estava completamente ultrapassado. Nós não conseguimos imaginar um García Márquez ou um Vargas Llosa falando isso. Com os diários, ele se torna o seu próprio personagem”, analisa Marlés. “Donoso sem dúvida fez parte do boom. Havia motivos indiscutíveis para que ele se sentisse deslocado com os seus congêneres: não era a encarnação do machão latino, faltava um sentido de ‘poder supremo’ do escritor latino-americano dos anos 60”, completa García-Huidobro.
O escritor e cineasta chileno Alberto Fuguet, que foi aluno de Donoso em uma de suas oficinas na década de 80 e construiu uma relação pendular de admiração e ranço, lembrou de um episódio durante o lançamento da novela Taratuta, em 1990. Na época, Um lugar sem limites já havia conquistado a crítica e o público e O obsceno pássaro da noite já era tido como um livro “difícil” e “culto”, adjetivos que carrega até hoje. “Lembro que era uma festa dele e Las Yeguas del Apocalipsis [duo performático da contracultura chilena formada por Pedro Lemebel e Francisco Casas Silva] começaram a performar questionando sua sexualidade. Nunca havia pensado no Donoso como um homem homossexual, mas naquele momento o incômodo dele foi tão grande que pareceu que estava tendo um terremoto”, relembra Fuguet. “Não, pior: parecia que queriam tirá-lo do armário à força, bem no dia do lançamento de uma obra sua. Foi muito desrespeitoso”.
Don Pepe
Além de escritor, José Donoso também era conhecido pela sua excelência na licenciatura, tanto no colégio como nas suas oficinas literárias. Além de Fuguet, participaram do curso livre que ministrava os escritores Jaime Collyer, Gonzalo Contreras e Carlos Franz, que o chamavam de Don Pepe, versão hispânica de “seu Zé”. Mas engana-se quem acha que Donoso era um senhorzinho pacato e passivo, que guardava suas opiniões apenas em seu diário.
Como bom chileno, tinha uma personalidade bastante observadora, que oscilava entre a esfera pública e a privada, mas que em temperatura elevada efervescia. “Uma de nossas maiores brigas foi por conta de Dostoiévski”, relembra Fuguet, rindo, de quando foi expulso da aula por Donoso. “Não sei como começou a discussão, mas em determinado momento ele perguntou: ‘Você já leu Dostoiévski’? Eu respondi: ‘Não. E você já leu Bukowski?’ Ele disse que não. Então eu perguntei como se atrevia a continuar publicando. E me expulsou”.
Pouco tempo depois, a dupla voltou a se encontrar e Fuguet voltou a frequentar as aulas. E então a relação virou outra. “Não nos tornamos melhores amigos, nem ele se tornou o professor mais importante da minha vida. Mas foi um encontro bonito, uma convivência interessante. Ele foi como um avô, meio rabugento, mas que tinha uma curiosidade vivaz pelo mundo”, conta o ex-aluno. “Na época, parecia que ele tinha uns noventa anos, mas, fazendo as contas, ele tinha a mesma idade que eu tenho agora. E sinto que recém saí da juventude. Não me sinto nem um pouco velho”, diz o autor de 61 anos, conhecido no Brasil por Baixo astral, a história de um adolescente de dezessete anos de classe alta que passa por uma crise existencial, tendo como pano de fundo a ditadura de Augusto Pinochet.
‘Há muita política na obra de Donoso, mas não é explícita e didática como a de autores daquela época’
Para Fuguet, sua verdadeira ligação com o ex-professor está entre a relação de “amor e ódio” pelo Chile, país que amam e criticam em suas obras. Porém, é possível ver outra conexão entre os dois: o não dito. Assim como Donoso, que embora faça parte do boom sem fazer parte dele, Fuguet se destacou na cena literária por narrar a ditadura sem hastear bandeiras. Trocando em miúdos: sem falar diretamente de torturas, amor entre lados opostos, mazelas dos guerrilheiros, entre outros clichês da literatura de ruptura. “Mas tem uma diferença aí”, alerta, provocando: “A obra de Donoso é difícil. Não é o tipo de leitura que você lê no ônibus, como Roberto Bolaño”.
De fato, as obras do autor centenário não são fáceis. Afinal, de algumas centenas de páginas, múltiplos universos se expandem. Cecilia García-Huidobro que o diga. A editora mal publicou o segundo tomo dos diários e já está trabalhando no terceiro, que ainda não tem título, mas com previsão de lançamento para 2026, data comemorativa de trinta anos de morte de José Donoso. É como disse o próprio autor: “Tudo já foi dito. Essa é a sensação que se tem. Mas nunca se sabe o que se vai dizer, o que tem que dizer, até dizê-lo por escrito”.
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