Crônica de Bogotá,

Livros entre nuvens

Na cidade nas alturas narrada por Guimarães Rosa, autores relatam como deram forma a outras realidades pela escrita

16ago2024
Plaza de Bolívar, Bogotá, 1884 (Santiago Castillo Escallón/Reprodução)

“Era uma cidade velha, colonial, de vetusta época, e triste, talvez a mais triste de todas, sempre chuvosa e adversa, em hirtas alturas, numa altiplanície na cordilheira, próxima às nuvens, castigada pelo inverno, uma das capitais mais elevadas do mundo.” Assim descreve João Guimarães Rosa uma Bogotá não nomeada em “Páramo”, conto que à sua morte, em novembro de 1967, o escritor mineiro deixou sem publicar.

O conto veio a público postumamente na coletânea Estas estórias, de 1968, organizada por Paulo Rónai e Vilma Guimarães Rosa. Segundo a nota introdutória de Rónai, “Páramo” consta nos esboços de índice que Rosa fizera para o volume, chegou a ser datilografado e está entre os textos a que “só faltou uma última revisão do autor”. Na narrativa, não constam nomes próprios: nem do protagonista-narrador, nem do espaço, nem dos vários personagens que, numa caminhada rumo ao cemitério, cruzam seu caminho, nem de alguns textos ou autores colombianos direta ou indiretamente citados.

Nomeado segundo secretário da embaixada brasileira, Rosa viveu em Bogotá de 1942 a 1944 e retornaria à cidade por alguns dias em 1948, para participar da IX Conferência Pan-americana — quando teria testemunhado o Bogotazo, uma revolta popular que quase destruiu a cidade. Para estudiosos da obra do autor, são os vestígios dessa experiência que deram origem a “Páramo”, que narra as visões de um brasileiro enviado a uma cidade andina que sofre com o soroche, o “mal-das-alturas”, e o sente como um aperto no peito, quase um prenúncio de morte. 

Os tais páramos são “os nevados e ventisqueiros da cordilheira”, de onde “os ventos atravessam”. “De lá o frio desce, umidíssimo, para esta gente, estas ruas, estas casas. De lá, da desolação paramuna, vir-me-ia a morte”, prevê o narrador fatídico em sua caminhada, prescrita por um médico, como condição para “respirar um pouco melhor”. Talvez tenham sido as descrições da cidade “fria, fria, em úmidos ventos” que se fixaram em Luciany Aparecida, que leu a desventura colombiana de Rosa quando ainda vivia no Vale do Rio Jiquiriçá, na Bahia. 

“Foi a partir da leitura de um desses contos [de Rosa] que eu disse: um dia, vou a Bogotá, vou caminhar por essas ruas”, contou a escritora baiana, escolhida para representar a delegação de mais de cinquenta autores brasileiros e profissionais do mercado editorial que desembarcou na capital colombiana em abril para participar da 36ª edição da Feira Internacional do Livro de Bogotá, a Filbo. Ao lado do presidente Lula e sua comitiva, na abertura do evento que homenageou o Brasil, Aparecida contou que por anos havia fantasiado estar naquela “cidade entre nuvens” — a ponto de ter escrito, para si mesma, cartas de Bogotá, que guardava em envelopes com selos que desenhava.

“Foi a partir da leitura de um dos contos de Guimarães Rosa que eu disse: um dia, vou a Bogotá, vou caminhar por essas ruas”, contou Luciany Aparecida

Foi uma Bogotá fria e chuvosa, mas sem os ventos “gelinvérnicos” cunhados pelo autor de Grande sertão: veredas, que recebeu os participantes da feira literária. Realizada no maior centro de convenções da cidade, tudo na Filbo é superlativo: quinhentos autores convidados de 25 países, 570 expositores e mais de duzentos eventos sobre o livro e a leitura espalhados por diferentes cidades colombianas. Pelos imensos pavilhões, quase sempre lotados, passaram mais de 600 mil pessoas em quinze dias — com a cifra recorde de 103 mil pessoas num único dia alcançada em 1º de maio, o último da feira, segundo a organização.

Pelé beijoqueiro

Pela cidade, sinais aqui e ali lembravam da presença brasileira como “país de honor” de seu maior evento literário. No mais reconhecível deles — ao menos para os paulistanos — um cartaz promovia o encontro fictício entre Pelé e o Nobel colombiano Gabriel García Márquez, em uma edição da série de lambe-lambes “Pelé beijoqueiro”, do artista brasileiro Luis Bueno. Fixado também na entrada do pavilhão Brasil, numa ação da embaixada brasileira, o painel provocou filas para selfies nos dias de feira. 

Em cartaz da série “Pelé beijoqueiro”, de Luís Bueno, o craque beija o colombiano García Márquez

Ali dentro, num espaço de três mil metros quadrados destinados ao país, o Instituto Guimarães Rosa (coincidentemente, este é o nome do órgão da diplomacia brasileira responsável pela difusão cultural) montou uma cenografia inspirada no tema desta edição: “Ler a natureza”. Arquitetado para abrigar livros, exposições e palcos, o espaço foi dividido nos seis biomas brasileiros, com foco especial na Amazônia, que conecta os dois países vizinhos. 

Numa metáfora irônica da devastação desses ecossistemas, no primeiro dia de visita da reportagem, parte da caatinga desabou. Um susto e um pequeno tumulto depois, bombeiros rapidamente reposicionaram o imenso painel com silhuetas recortadas de cactos, pássaros e o sol escaldante do sertão brasileiro, sem que ninguém tenha ficado ferido. 

Perto dali, uma pequena aglomeração se formava sempre que soavam os primeiros batuques de aulas de samba ou toques de berimbau, em oficinas de capoeira. No palco principal do pavilhão brasileiro, na falta de tradutores do evento, autores brasileiros e colombianos se esmeraram no portunhol para se fazer entender. Nada que tenha impedido o público de acompanhar com entusiasmo e muitos aplausos as leituras de passagens de romances por seus autores. Foi o caso de Luciany Aparecida com seu Mata doce (Companhia das Letras, 2023) e da gaúcha Eliane Marques, com Louças de família (Autêntica, 2023), na mesa mediada pela poeta Stephanie Borges, curadora da programação brasileira.

Dando uma prévia da adaptação para os palcos do seu Também guardamos pedras aqui (Nós), eleito Livro do Ano do prêmio Jabuti em 2022, a poeta e slammer Luiza Romão alternou versos em português e espanhol. Na sua releitura da Ilíada de Homero, considerada a narrativa que inaugura a literatura ocidental, Romão dá voz a personagens da epopeia grega que se opõem à guerra, contrapondo narrativas instituídas pela colonialidade — uma linguagem que latinos conhecem bem. 

Realidades distintas

Figura onipresente na televisão latina em espanhol, o jornalista Andrés Oppenheimer despontou como uma das estrelas da edição, com longas filas se formando em suas sessões de autógrafos. Editor para a América Latina do Miami Herald e analista político da CNN en Español, o argentino é autor de oito best-sellers. O último deles, lançado em 2023, é Como Salir del Pozo!: Las Nuevas Estrategias de los Países, las Empresas y las Personas en Busca de la Felicidad (em tradução livre, Como sair do buraco: as novas estratégias dos países, empresas e pessoas em busca da felicidade). 

Como Salir del Pozo, o guia de Andrés Oppenheimer para alcançar a felicidade

“Me aproximei desse tema com um ceticismo total”, diz o jornalista para uma plateia lotada, desfazendo qualquer impressão de uma conversa de coach de carreiras. Oppenheimer conta que a ideia surgiu ao entrevistar o presidente do Instituto Gallup para a América Latina, após a pesquisa que mede o índice de felicidade de 170 países mostrar que a taxa de insatisfação no mundo havia saltado de 20% para 33% nos últimos vinte anos. A partir daí, cruzou o mundo para visitar alguns dos lugares mais bem colocados e os que mais caíram no ranking, além de investigar casos curiosos, como o do Butão, país que criou um PIB da felicidade, indicador depois instituído pela ONU como FIB (Felicidade Interna Bruta), mas que não costuma aceitar turistas estrangeiros — Oppenheimer contou com a ajuda de um conhecido executivo de hotéis para entrar na monarquia budista.

A mesma literatura que desvela realidades tão distintas também pode mudar a realidade de quem escreve. Uma das atrações mais aguardadas da Filbo, a sul-coreana Cho Nam-joo contou para um auditório cheio como, no seu país, “para que uma mulher tenha uma carreira, outra precisa se sacrificar”. Seu terceiro romance, Kim Jiyoung, nascida em 1982 (Intrínseca, 2022), traduzido para dezoito idiomas, narra a experiência de uma mulher — a sua própria — que abandonou a carreira como roteirista para se tornar dona de casa após o nascimento do primeiro filho.

A despeito disso, contou Nam-joo, mulheres estão mais visíveis no mercado de trabalho e na política sul-coreana. “Graças a esses avanços, foi possível para mim aprender inglês, tocar um instrumento e viajar para lugares que nunca havia pensado antes, como a Colômbia.”

A sul-coreana Cho Nam-joo contou como, no seu país, “para que uma mulher tenha uma carreira, outra precisa se sacrificar”

Formado em cinema, o espanhol Carlos Barea relatou na mesa “El inicio de la identidad” como decidiu se tornar escritor para escrever sobre os personagens que não encontrava nos romances da adolescência. “Tinha claro para mim que queria escrever um romance de pessoas não normativas.” 

Num mestrado de escrita criativa surgiram os primeiros esboços de Bendita Tú Eres (Egales, sem edição em português), romance de estreia em que narra a história de uma freira que é expulsa do convento onde viveu por trinta anos enclausurada após um acidente revelar para as demais religiosas seu mais bem guardado segredo: que era uma mulher trans. 

Barea conta que, durante a escrita do romance, ficou tentando encontrar justificativas para que uma freira tivesse acesso a hormônios no claustro. Logo, percebeu que sua história, com influência confessa do conterrâneo Almodóvar, não precisava dar todas as explicações. “A própria natureza da literatura queer é não ter fronteiras, é dissolver todas essas categorias”, disse. “Nos silêncios narrativos está a verdade.”

Sentido das palavras

Foi também para preencher lacunas da vida real que a escritora portuguesa Lídia Jorge escreveu Misericórdia, romance recém-lançado por aqui pela Autêntica Contemporânea. A história foi um pedido da mãe da autora, Maria Alberta, para que os leitores “tivessem compaixão com os que não são mais autônomos”. Quarenta dias depois de ter se internado, por vontade própria, numa casa de repouso, Albertina morreu em decorrência da covid-19.

Como uma espécie de diário em áudio — feito com a ajuda de um gravador enquanto residia no lar de idosos no Algarve — a narradora reúne histórias e pensamentos que escancaram a crise migratória em Portugal. “Em geral, as pessoas não querem nem passar em frente de casas de repouso, como se aquele fosse outro tipo de humanidade”, disse a autora na mesa “La Vejez de Hoy: Resistencia Humana” (A velhice de hoje: resistência humana). “Ao contrário do que se pensa, escrevi um livro sobre o fulgor da vida, sobre vitalidade.”

“É como se a vida em si não servisse, como se tivéssemos que lhe dar sentido pelas palavras”, disse Piedad Bonett

Escrever também deu outro sentido à perda da colombiana Piedad Bonett, desde que publicou, em 2013, O que não tem nome, lançado este ano no Brasil pela DBA. No “livro-testemunho”, como prefere chamar, a romancista e poeta premiada narra sem rodeios a esquizofrenia e o suicídio do filho Daniel, estudante de arte, aos 28 anos. Uma edição comemorativa de dez anos do romance, com ilustrações de Daniel, estava entre os dez livros mais vendidos da Filbo.

“Nós escritores temos essa necessidade”, disse, ao receber a Quatro Cinco Um para uma entrevista no seu apartamento no bairro de Rosales, repleto de livros e de telas pintadas pelo filho. “É como se a vida em si não servisse, como se tivéssemos que lhe dar sentido pelas palavras.”

Nota da redação

O repórter viajou a convite da Feira Internacional do Livro de Bogotá e do Ministério das Relações Exteriores do Brasil.

Quem escreveu esse texto

Amauri Arrais

É jornalista e editor da Quatro Cinco Um.