A Terceira Margem do Reno,

Ep.5. Vivemos numa ficção científica

O totalitarismo segundo Hannah Arendt e Herta Müller. As distopias de Ignácio de Loyola Brandão, Juli Zeh e Mathieu Bablet. Simone Weil aponta caminhos para se atingir a liberdade

04jan2023

Está no ar o quinto episódio de A Terceira Margem do Reno, o podcast de literatura em língua francesa e alemã, uma correalização pelo Goethe-Institut do Rio de Janeiro e de São Paulo, pela Embaixada da França no Brasil, pelo Bureau du Livre e pela Associação Quatro Cinco Um.

Ouça o episódio aqui:

Composto por nove episódios publicados quinzenalmente, o podcast narrado por Paulo Werneck, diretor de redação da Quatro Cinco Um, e Paula Carvalho, editora de podcasts da revista dos livros, trata da literatura em língua francesa e alemã e suas pontes com o Brasil. O episódio conta com participações de Ignácio de Loyola Brandão, Leda Cartum, Vinicius Farjalla e Renata Nagamine.

Partimos de um dos rios mais importantes da Europa: o Reno, que faz fronteira com a Alemanha e a França, para tratar de temas importantes para o mundo e a literatura. O rio é um ser sem fronteiras, e por isso não vamos nos limitar a elas. Aqui, autores clássicos convivem com os mais contemporâneos, e a única pátria é a língua, a alemã e a francesa, não importando as fronteiras dos Estados nacionais. 

Inspirado pelo título do conto “A terceira margem do rio”, de João Guimarães Rosa, publicado no livro Primeiras estórias, de 1962 (hoje no catálogo da editora Global), o podcast é guiado pela pergunta: onde será que fica A Terceira Margem do Reno? Para além das fronteiras nacionais, temporais e geográficas? Poderia estar na literatura? 

Este episódio embarca em uma discussão mais espinhosa: o totalitarismo e outras formas autoritárias. Por isso, começamos tentando entender o que é “totalitarismo” na visão da filósofa Hannah Arendt e como a romena de origem alemã Herta Müller transformou a experiência totalitária em literatura. Partimos, então, para conhecer as distopias de Ignácio de Loyola Brandão, com o clássico brasileiro Não verás país nenhum; a sociedade asséptica-totalitária criada pela alemã Juli Zeh em Corpus delicti: um processo; e o mundo intergaláctico ultracontrolado do quadrinho de ficção científica Shangri-la, do francês Mathieu Bablet. Ao final, a pensadora francesa Simone Weil aponta caminhos possíveis para se atingir a liberdade.

Origem de um conceito

Origens do totalitarismo, republicado em 2013 pela Companhia de Bolso, com tradução de Roberto Raposo, foi um livro concluído em 1949, que passou posteriormente por várias revisões feitas pela própria autora, desde a primeira publicação em 1951. Como vários dos intelectuais que sobreviveram à Segunda Guerra Mundial, ela passou a sua vida tentando entender como foi possível acontecer a ascensão do nazismo na Alemanha, o Holocausto e os horrores perpetrados nos campos de concentração. Em vez de tentar esquecer o horror do passado, preferiu encará-lo de frente, com o pensamento afiado, de modo a entender de onde vem a origem da banalidade do mal.

De família judia, Arendt teve que fugir da Alemanha para não ser morta durante o governo de Hitler. Ela foi parar nos Estados Unidos, onde seus escritos a tornaram uma das pensadoras mais instigantes do século 20. Dividido em três partes, antissemitismo, imperialismo e totalitarismo, o livro descreve o que é um Estado totalitário — que Arendt diferencia de despotismos, ditaduras e tiranias — e analisa o percurso histórico até se chegar a governos totalitários — que para ela são os Estados nazi-fascista alemão e o stalinista soviético. 

Arendt comenta que para se chegar ao totalitarismo foram necessários o antissemitismo e o imperialismo e analisa cada um desses processos em detalhe. É assustador ler hoje Origens do totalitarismo, pois parte do que foi escrito, há quarenta anos, continua muito atual. É importante comentar que existem trechos bem datados, como aqueles em que ela descreve, na seção do imperialismo, o processo de invasão e colonização da África do Sul pelos bôeres, nos quais mostra muito desconhecimento da riqueza cultural e histórica dos povos africanos. Outro aspecto bastante criticado nesse livro é a comparação que Arendt faz entre o nazi-fascismo e o stalinismo.

A pensadora foi tema da capa da edição 46 da revista dos livros, com capa de Marina Quintanilha, com textos de Heloisa Murgel Starling sobre o livro Pensar sem corrimão e de Érico Assis sobre o quadrinho As três fugas de Hannah Arendt

Celso Lafer resenhou duas biografias da filósofa e Eduardo Jardim analisou a visão que a autora tinha do judaísmo. Renata Nagamine, uma das entrevistadas do episódio, mostra como Hannah Arendt usa a literatura em busca de um pensamento alargado para tentar entender o incompreensível.

Na edição 11 da Quatro Cinco Um, Pedro Duarte escreveu sobre uma antologia de ensaios e um estudo clássico sobre Hannah Arendt que mostram sua crítica a totalitarismos à direita e à esquerda.

Tudo que você pode deixar para trás

Tudo o que tenho levo comigo, da escritora romena de origem alemã Herta Müller, ganhadora do Nobel de literatura em 2009, publicado pela Companhia das Letras em tradução de Carola Saavedra, é um romance que trata de Leo Auberg, um jovem homossexual de dezessete anos que, no fim da Segunda Guerra Mundial, é levado a um campo soviético, onde foi aprisionada a minoria alemã do país. Ali, relata como é conviver com a fome, ter que realizar trabalhos forçados, lidar com doenças, solidão e morte. Depois de cinco anos, Leo volta para casa, mas não consegue deixar para trás o seu passado.

Herta Müller explica um pouco do contexto em que se passa o romance: “No verão de 1944, quando o Exército Vermelho já havia avançado bastante na Romênia, o ditador fascista Antonescu foi detido e executado. A Romênia se rendeu e surpreendentemente declarou guerra à Alemanha nazista, até então aliada. Em janeiro de 1945, o general soviético Vinogradov exigiu do governo romeno, em nome de Stálin, que todos os alemães residentes na Romênia contribuíssem para a ‘Reconstrução’ da União Soviética destruída durante a guerra. Todos os homens e mulheres com idade entre dezessete e quarenta e cinco anos foram deportados para realizar trabalhos forçados em campos de trabalho soviéticos. Também minha mãe passou cinco anos num campo de trabalho”.

Escrito com base no relato de um amigo de Müller, o poeta Oskar Pastior, que viveu essa realidade dos campos soviéticos, Tudo o que tenho levo comigo era para ter sido redigido a quatro mãos, mas Pastior morreu em 2006, antes que o projeto fosse finalizado. Paralisada pela perda do amigo, cujos cadernos de anotações faziam a ausência dele ser mais sentida, Müller demorou um ano para retomar o livro, nos presenteando com uma obra que narra o dia a dia dos campos de forma direta e desapaixonada, como se o passado fosse uma inevitabilidade e mostrando como as políticas dos governos mudam para sempre as pessoas.

Itamar Vieira Junior escreveu uma resenha na edição 36 sobre o livro Minha pátria era um caroço de maçã, da ganhadora do Nobel. 

O país do futuro

O ano de 2021 marcou o aniversário de quarenta anos do clássico distópico brasileiro por excelência: Não verás país nenhum, de Ignácio de Loyola Brandão, publicado pela Global.

Ao contrário do que o autor esperava, o livro fez um baita sucesso desde o começo, tanto que foi até tema de reportagem da Rede Globo. Não verás país nenhum captou muito bem o clima do Brasil que iniciava o processo de abertura democrática do regime militar. Era uma sensação de terra arrasada ainda. O protagonista da obra é Souza, um professor de história que virou funcionário público depois dos anos da locupletação, em que um governo totalitário dos Civiltares tomou o país, depois dos Abertos [anos] Oitenta. Nesse Brasil, os animais e as florestas não existem mais, a Amazônia virou um deserto, há um controle sobre a mobilidade das pessoas, há tiroteios por toda parte e a água virou artigo de luxo. 

Casado com a católica Adelaide, que tem um sobrinho no Exército, Souza passa por uma mudança quando descobre um furo na mão, que aparece do nada. Essa figura apareceu primeiro no conto “O homem do furo na mão”, que fez parte do livro Cadeiras proibidas, de 1976. O furo é completamente disruptivo e causa mudanças drásticas nas relações de Souza, inclusive com ele mesmo.

A saúde do corpo como política

Como seria viver em uma sociedade completamente asséptica, em que a manutenção da saúde é um direito e um dever do cidadão? É esse o mundo imaginado em Corpus delicti: um processo, lançado em 2013 pela Record em tradução de Marcelo Backes, romance distópico originalmente de 2009, da alemã Juli Zeh, baseado em uma peça que ela escreveu em 2007. A crítica alemã comparou-a a grandes nomes da ficção especulativa, como Ray Bradbury e Philip K. Dick. 

A sociedade é, aqui, regida pelo Método, um sistema apoiado no racionalismo e na ciência, que foi criado depois das grandes guerras do século 20 em meio ao colapso das garantias sociais e ao caos que veio com a dissolução de governos. O controle sobre os corpos vem de um governo totalitário.

A protagonista Mia Holl, uma bióloga competente que trabalha para um laboratório, segue à risca as orientações trazidas pelo Método. No entanto, seu mundo cai quando seu irmão Moritz é condenado pelo estupro e assassinato de uma jovem. Os testes genéticos de investigação do Método, considerados infalíveis, incriminam Moritz, mas ele garante à sua irmã que é inocente. Ele é dado como morto em um suicídio suspeito, o que deixa Mia transtornada. 

A partir daí, ela passa a esquecer de fazer os exames de saúde de rotina exigidos pela lei, falta ao trabalho, conversa com a Amante imaginária do irmão, passa a fumar — o que chama a atenção de Heinrich Kramer, um jornalista e importante assessor de comunicação do governo e do Método. Passam, então, a desconfiar de que Mia faça parte do grupo terrorista Direito à Doença, ou D.A.D., o que ela nega veementemente, pois não se identifica com a oposição ao Método e nem mais com o próprio Método. A partir daí, a ação se desenvolve e seu destino se torna incerto.

Distopia espacial

O cenário é uma estação que orbita o planeta Terra, após a Grande Catástrofe do século 21, quando a religião foi proibida e a falta de água impediu o resfriamento das centrais nucleares, obrigando os seres humanos a fugir da Terra. Nesse mundo, o governo totalitário é encarnado na corporação Tianzhu (que significa “pai celestial”, em chinês), que procura acabar com qualquer voz dissidente, especialmente as dos seguidores do líder oposicionista Mister Sunshine.

Shangri-la, HQ de ficção científica do quadrinista francês Mathieu Bablet, lançada originalmente em 2016 e saiu por aqui pela Sesi-SP com tradução de Fernando Paz, foi indicada a vários prêmios na Europa e foi muito elogiada pela arte, que é de encher os olhos. 

Se Corpus delicti, de Juli Zeh, não abre muito espaço para a esperança, Shangri-la mostra a força das grandes corporações quando elas têm o domínio total, estimulando o consumismo e o vazio existencial por meio de avanços tecnológicos, ao trazer à tona os animaloides, meio humanos, meio animais. Esse grupo foi criado, a partir de experimentos genéticos, para servir como bode expiatório para as frustrações dos humanos que vivem presos na estação espacial.

O personagem principal de Shangri-la, chamado Scott, começa como um aliado do sistema totalitário. Ele é funcionário da Tianzhu, inspecionando misteriosas colônias espaciais que são destruídas por razões desconhecidas. Scott acha que ele vive no auge da civilização. 

Seu irmão Virgil é membro da organização Mister Sunshine e tenta abrir os olhos de Scott para a realidade brutal em que vivem. Outro personagem importante é John, um animaloide criado a partir de um cachorro, amigo do protagonista, mas que é o saco de pancadas de outros colegas humanos da empresa. Os que não são contra os animaloides procuram pela liberdade de outras formas; uma delas é tentar acabar com o sistema, o que leva a consequências drásticas na trama dessa graphic novel.

Uma marciana no mundo

Quando Simone Weil era criança, era conhecida na escola como marciana. Não à toa, pois ela tem uma biografia bastante peculiar. Nascida em uma família de classe média, teve uma formação bastante erudita, tornando-se professora de filosofia e grego. Seu envolvimento com o socialismo e a causa operária fez com que escolhesse trabalhar numa linha de montagem de fábrica. Mesmo assim, não deixou de criticar Stálin e polemizar com Trótski. Lutou na Guerra Civil Espanhola e se aprofundou na mística cristã. Ela morreu aos 34 anos, de parada cardíaca num sanatório na Inglaterra, após ser diagnosticada com tuberculose.

Weil passou a vida toda lutando contra a opressão social e política. Seguia uma ética muito própria que, segundo seu amigo Gustave Thibon, que organizou alguns cadernos dela para o livro O peso e a graça, não se tratava de filosofia, mas de vida. Para ela, a liberdade tinha que ser total. No Brasil, o volume foi traduzido pela Leda Cartum para a editora Chão da Feira, que além de ter sido entrevistada no episódio faz algumas leituras de trechos da sua tradução.

Ela chegou a viajar para a Alemanha durante a ascensão do nazismo e escreveu textos sobre o que viu — eles podem ser lidos no volume Simone Weil: a condição operária e outros estudos sobre a opressão, organizado por Ecléa Bosi para a editora Paz & Terra, do grupo Record. Nessa obra, é possível encontrar textos da pensadora sobre outros assuntos.

Weil não deixou uma obra organizada quando morreu. Foram seus amigos e admiradores que reuniram seus escritos e os publicaram em livro.

O colunista da revista dos livros Paulo Roberto Pires escreveu sobre a pensadora na edição 27: “A filósofa francesa que se lançou com destemor nos conflitos de seu tempo ressurge em livro de Patti Smith, em novas edições e até em podcast”.

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A Terceira Margem do Reno é um podcast feito em correalização pelas unidades do Rio de Janeiro e de São Paulo do Goethe-Institut, pela BiblioMaison e o Escritório do Livro da Embaixada da França no Brasil e pela Associação Quatro Cinco Um.
Direção geral: Paulo Werneck
Roteiro e coordenação geral: Paula Carvalho
Produção: Ashiley Calvo, com apoio de Mariana Shiraiwa
Edição, sonorização, trilha sonora, finalização e mixagem: André Whoong
Direção de locução: Tiê
Arte: J. Miguel
Coordenação digital: Rádio Novelo, com Juliana Jaeger e FêCris Vasconcellos
Distribuição: Rádio Novelo
Gravado com o apoio técnico do estúdio Rosa Flamingo.
Na ordem, foram lidos trechos das seguintes obras: “A terceira margem do rio”, de João Guimarães Rosa, que faz parte do livro Primeiras estórias, que saiu pela editora Global; Origens do totalitarismo, de Hannah Arendt, publicado pela Companhia de Bolso com tradução de Roberto Raposo; Não verás país nenhum, de Ignácio de Loyola Brandão, publicado pela editora Global; Corpus delicti: um processo, de Juli Zeh, editado pela Record e traduzido por Marcelo Backes; Shangri-la, de Mathieu Bablet, publicado pela Sesi-SP com tradução de Fernando Paz; “Alemanha à espera: impressões de agosto e setembro de 1932”, “Primeiras impressões da Alemanha” e “Sobre a questão colonial em suas relações com o destino do povo francês”, presentes no livro Simone Weil: a condição operária e outros estudos sobre a opressão, organizado por Ecléa Bosi para a editora Paz e Terra, e traduzido por Therezinha Gomes Garcia Langlada; e O peso e a graça, de Simone Weil, lançado pela editora Chão da Feira com tradução de Leda Cartum.