Trechos,
Escrevo para ninar uma menina travesti
Em ‘A viagem inútil: trans/escrita’, Camila Sosa Villada resgata memórias dolorosas da infância e o refúgio na literatura; leia trecho
10maio2024 • Atualizado em: 13maio2024A partir das lembranças dos rituais de leitura e escrita com os pais é que se constrói A viagem inútil: trans/escrita, livro da argentina Camila Sosa Villada publicado pela Fósforo, com tradução de Silvia Massimini Felix. Concebido como parte de uma coleção da editora argentina Documenta Escénicas, o ensaio autobiográfico reflete sobre como a literatura alcançou a vida de uma pessoa que não estava destinada a ela.
Momentos do processo de alfabetização, como a mãe apontando as palavras enquanto lia em voz alta e o pai ensinando a desenhar as letras, compõem algumas das recordações felizes da pequena Camila. Mas a autora também revela a luta contra a pobreza, a discriminação e a violência por ser a única travesti do pequeno povoado de Los Sauces. “Para o que mais isso serviria se não para ser escrito?”, questiona em entrevista a Adriana Ferreira Silva que estampa a capa da edição de maio da Quatro Cinco Um.
O volume chega às livrarias junto com outras duas obras da autora: o livro de poemas A namorada de Sandro (Planeta) e o romance Tese sobre uma domesticação (Companhia das Letras). Com as três publicações, a escritora argentina tem toda sua obra lançada no país e embala sua volta ao Brasil como uma das estrelas d’A Feira do Livro 2024. Sosa Villada já tinha mostrado a força de sua literatura por aqui com a publicação do romance O parque das irmãs magníficas e do livro de contos Sou uma tola por te querer, ambos pela Planeta.
Leia um trecho de A viagem inútil: trans/escrita
ESCREVO PARA QUE UMA HISTÓRIA SEJA CONHECIDA.
A história do meu travestismo, da minha família, da minha tristeza na infância, de toda essa tristeza prematura que era minha família, o alcoolismo do meu pai, as carências da minha mãe. As mudanças que me afastavam para sempre dos amigos, da atmosfera do meu quarto, dos hábitos do pátio, da segurança de um esconderijo. Escrevo para poder contar as imagens que povoaram minha infância. As paisagens do campo onde compreendi que existia tristeza, o momento em que peguei a tristeza da minha mãe e a tornei minha, esse momento em que, muito criança, decidi me condoer pela tristeza da minha mãe.
Também para contar a luta da minha família contra a pobreza, uma luta que nos devastou e nos encheu de rancor, desgosto e indiferença, todos contra todos.
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Era preciso nos preenchermos com algo, não nos permitirmos o vazio da pobreza, o silêncio da miséria. Sempre em busca de ter algo, como uma súplica ao deus da ambição. Vulgares ao extremo, enchendo de quinquilharias as paredes dos nossos quartos, com imagens de santos e virgens, com cortinas cafonas que serviam para cobrir as paredes descascadas, as manchas de lápis de cor sobre a pintura, os olhos dessas paredes pobres que nos olhavam.
Nunca aprendemos a viver em paz essa pobreza que nos cabia. Não podia ser de outra forma. Habitar tranquilamente essa pobreza teria significado nos questionar sobre as coisas, sentar e olhar para nós mesmos com nossa solidão.
Permitimos que a loucura nos domine por completo para resistir à pobreza.
Essa luta contra o nada é o que eu tento escrever, para que não continue se reproduzindo. Acho que a literatura põe em evidência a inutilidade da nossa luta, confundida para sempre como inimiga.
Meus bisavós, meus avós e meus pais pensaram que era tudo culpa da pobreza. Tenho certeza de que não havia inimigo na pobreza, que o inimigo sempre foi a ideia do trabalho e do sacrifício. Os únicos inimigos éramos nós, nossas heranças, nossas tradições, nossa vocação de servidão, nossa rebeldia reprimida. Em geral, o inimigo sempre tem um nome e sobrenome, e a batalha é vencida quando conseguimos nos libertar desse inimigo. Seja porque o anulamos, porque o matamos ou encontramos um inimigo melhor.
Escrever sobre isso é minha maneira de situar todas as vidas que me precedem num ponto concreto da história. Eu me envolvo com a antiguidade do mundo.
Para minha família, não deve haver profissão mais inútil do que a escrita. Escrever não dá dinheiro, não compra carros, não constrói casas, não leva para as férias; escrever nada mais é do que desperdiçar tempo, a única coisa que se tem. A perda. Eles me deram esse presente, me ensinaram a ler e escrever, mas sempre acharam que não era nada mais que um passatempo. Não admitiam que havia um cansaço na escrita, inclusive uma doação ao que se escreve que está além de todas as forças, como eles fizeram com seus patrões. Para eles, escrever não produzia nada. Era um ato de vagabundagem. Costas não calejadas. Assim dizia meu pai: os escritores não têm as costas calejadas.
Escrever foi minha renúncia a tudo o que ele considerava produtivo.
Sempre rondo minha infância, dou círculos dentro de mim. Tenho outra idade quando escrevo. Sou uma menina travesti perversa e problemática. Sou a garota que foge dos pais e acaba nos braços da literatura. Ou que acaba por ninar a si mesma quando escreve.
Peraí. Esquecemos de perguntar o seu nome.
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