James Green (Filipe Redondo)

A Feira do Livro, Livros e Livres,

‘Quem mais se mobiliza pela democracia é a comunidade LGBTQIA+’, diz James Green

O historiador e o colunista da Quatro Cinco Um Renan Quinalha falaram dos avanços e perseguições de ontem e hoje à comunidade

07jul2024 • Atualizado em: 02ago2024

Um panorama da evolução dos direitos LGBTQIA+: do movimento político pioneiro dos anos 70, passando pela epidemia de aids entre os anos 80 e 90 e chegando às conquistas do século 21. A mesa “Livros e livres”, que reuniu o historiador James Green e o professor de direito e colunista da Quatro Cinco Um Renan Quinalha, traçou uma espécie de linha do tempo dos últimos processos que redefiniram os direitos da comunidade no final da tarde de sábado (6) n’A Feira

Quinalha acaba de lançar Direitos LGBTI+ no Brasil: novos rumos da proteção jurídica (Edições Sesc), coletânea de ensaios de vários autores que compila alguns dos avanços recentes, como o casamento, a criminalização da homofobia, mas também a omissão do Estado durante a proliferação do HIV/aids, tão presenciada pela geração de James Green. “Creio que mais pessoas devem ter acesso à história dessa trajetória. O direito é algo importante demais para ficar somente nas mãos de advogados e juristas”, disse. 

Helena Vieira, Renan Quinalha e James Green (Filipe Redondo)

Conduzidos pela escritora e pesquisadora Helena Vieira, os autores também refletiram sobre a adolescência e o envelhecimento da população LGBTQIA+. “Hoje sou um homem mais velho e pai orgulhoso de uma menina de 13 anos, filha de um casal de lésbicas. Quanto ao avançar da idade, a questão de se relacionar diminui. Mas precisamos enxergar o envelhecimento para além disso”, afirmou o historiador, que lançou este ano Escritos de um viado vermelho: política, sexualidade e solidariedade (Editora Unesp). 

Para Green, é alarmante que exista apenas um abrigo para pessoas LGBTQIA+ na América Latina que seja apoiado pelo poder público, o Centro de Acolhimento e Promoção do Combate à Violência LGBTIfóbica, no Rio de Janeiro. “Precisamos de mais espaços assim, e não só no Brasil. E precisamos que sejam referência no suporte às vidas LGBT, pensando também nas faixas etárias que acolhem.”

Anos de chumbo

A mediadora, que se define como transfeminista, comentou que, mesmo dentro do próprio movimento LGBTQIA+, a centralidade da masculinidade pode marginalizar as vivências de mulheres trans e lésbicas. “A sensação é de que ainda temos muitos desafios ao tentar construir alianças entre os vários sujeitos dessa luta”, disse Helena Vieira.

Essa divisão já era perceptível bem antes, disse Green. O historiador relembrou o choque que sentiu ao chegar ao Brasil em 1976 e perceber que os movimentos de esquerda, que combatiam a ditadura, tinham pouca ou nenhuma consciência do movimento feminista. “Eles ainda não entendiam nada. Minhas primeiras aliadas na organização política foram as mulheres”, contou. 

Durante a fundação do movimento homossexual em São Paulo — gênese do movimento LGBTQIA+ atual —, poucas mulheres eram vistas, segundo o historiador. Mas se engana quem acredita que é porque não quiseram. “Elas tiveram que reagir contra alguns comentários sexistas até saírem e fundarem um segundo movimento”, relembrou.

O autor lamentou que ainda houvesse pouca consciência para pensar nos direitos das pessoas trans junto à luta LGBTQIA+. “À época, elas estavam resistindo e sobrevivendo, seja no trabalho sexual, nas poucas profissões que conseguiam emprego, ou na marginalização pura”, afirmou.

Green ponderou que é fundamental entender que a organização do movimento se deu em meio à ditadura, época em que se prendiam e torturavam pessoas que se colocavam contra o regime, marcada por um forte anticomunismo e terror contra as esquerdas instigados pelas aulas de moral e cívica nas escolas. “O movimento nasceu nesse contexto, com muitos erros, muita dificuldade de entender quais eram os caminhos, mas conseguimos”, afirmou.

Memória LGBTQIA+

No livro Contra a moral e os bons costumes: a ditadura e a repressão à comunidade LGBT (Companhia das Letras, 2021), Renan Quinalha compilou um trabalho de memória sobre a perseguição de pessoas LGBTQIA+ durante a ditadura militar. Na conversa, ele disse que as questões morais, atualmente chamadas de “identitarismo” pela extrema direita, não são novas. 

“Nós vimos os conservadores provocarem pânico moral na sociedade e criarem aliados durante a ditadura. Mas a violência contra a comunidade e a LGBTfobia não foram inauguradas ali, e sim institucionalizadas como um processo de concentração de poder político geral. Isso educou uma sociedade conservadora”, disse.

Renan Quinalha (Filipe Redondo)

Quinalha e Green trabalharam juntos na Comissão Nacional da Verdade, colegiado que investigou violações de direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988, na tentativa de mapear perfis e padrões de violência. “Cerca de trezentas e quinhentas pessoas acusadas de ‘homossexualismo’ ou de ‘pederastas passivos’ eram detidas por dia na região da Boca do Lixo, no centro da cidade, durante o período da ditadura militar”, disse o professor. 

Quinalha sublinhou como se buscou identificar até a prática sexual das pessoas, como ao categorizar os “passivos”. “A região da Boca do Lixo era de vivência LGBT, com pessoas das classes mais populares. Foi ali que aconteceram inúmeras prisões arbitrárias, torturas em série, violências e distorções contra a população homossexual, travestis e pessoas negras”, contou. 

Fervo e luta

James Green destacou o poder de mobilização das paradas LGBTQIA+ pelo país, que, na sua opinião, não têm o devido reconhecimento pelas forças progressistas. “Quem mais se mobiliza pela democracia no momento atual somos nós, comunidade LGBTQIA+. Mas isso ainda não é reconhecido pela academia ou pela esquerda”, comentou.

Quinalha defendeu que não se deve fazer política apenas com o que foi definido como padrão, pois essa é a narrativa de quem sempre esteve no poder e planeja permanecer. “O fervo também é luta. Essa é uma das formas com as quais estamos ocupando mais espaço na cultura e na política hegemônicas”, disse. “Vão chamar nossas pautas de identitarismo, mas nós somos bem mais que isso. Somos um movimento de libertação.”

Homonacionalismo

Helena Vieira apontou ainda o crescimento do homonacionalismo, movimento de membros da comunidade LGBTQIA+ adeptos do conservadorismo político, como parte da comunidade gay que vem apoiando Marine Le Pen, candidata da extrema direita à presidência na França. “A comunidade LGBTQIA+ está em todos os setores da sociedade, mas me pergunto se, mesmo entre os eleitores e os candidatos que são assumidamente gays, há uma preocupação em aumentar nossos direitos e participação política. Quais são os objetivos deles?”, questionou Green.

Mesmo se declarando um otimista, o historiador disse temer que mais reverberações do reacionarismo cheguem ao Brasil, como vem acontecendo em outros países. “O direito ao aborto nos Estados Unidos foi revogado há dois anos; agora estão tentando revogar o direito ao casamento de LGBTs. Temos de nos manter atentos porque essas ‘ondas’ podem se propagar”, alertou Green.

Quinalha acrescentou exemplos de mudanças na lei italiana, que determina que crianças que sejam fruto de inseminação artificial só tenham reconhecida a filiação da mãe que engravidou, removendo o nome de mães LGBTQIA+ das certidões de nascimento. “Há uma tentativa internacional de diminuir os direitos da comunidade LGBTI+, mas também das mulheres, como é o caso da ‘PL do Estupro’ no Brasil.”

A Feira do Livro 2024

29 jun.—7 jul.
Praça Charles Miller, Pacaembu

A Feira do Livro é uma realização da Associação Quatro Cinco Um, organização sem fins lucrativos voltada para a difusão do livro no Brasil, e da Maré Produções, empresa especializada em exposições e feiras culturais. O patrocínio é do Grupo CCR, do Itaú Unibanco e Rede, por meio da Lei de Incentivo à Cultura, da TV Brasil e da Rádio Nacional de São Paulo.

Quem escreveu esse texto

Jaqueline Silva

É estudante de Jornalismo na ECA-USP e assistente editorial na Quatro Cinco Um.