Festival literário,
Sextou na Flica com quilombolas, indígenas, ialorixás e autoras negras
Segundo dia da festa literária em Cachoeira (BA) teve debates com Antônio Bispo dos Santos, Leda Maria Martins, Eliana Alves Cruz e a cubana Teresa Cárdenas
28out2023 | Edição #75Antônio Bispo dos Santos pede licença: quer falar de pé para enxergar melhor as pessoas que lotam a plateia da Tenda Paraguaçu, onde acontece a programação principal da 11ª Flica, a Festa Literária Internacional de Cachoeira. “Falar é o nosso território”, anuncia o autor de artigos, poemas e livros que defende o “contracolonialismo” — conceito que opõe o modo de vida dos quilombos ao da sociedade colonialista.
O pensador e líder quilombola, o cacique e escritor Juvenal Payayá e a poeta e ensaísta Leda Maria Martins abriram a programação desta sexta-feira (27) com a mesa “Memórias da terra, performances do corpo nas trajetórias narrativas da brava gente brasileira”. Foi um bate-papo repleto de questionamentos sobre tradições escritas e orais, reflexões sobre territorialidade e sobre como conjugar essas questões.
Antônio Bispo dos Santos, Juvenal Payayá e Leda Maria Martins [Diego Silva/Divulgação]
“A composição dessa mesa é uma aula de oratória para os povos das escrituras”, disse Bispo, em referência às sociedades com conhecimentos, sobretudo, escritos. “Um quilombola, um pajé e uma negra escritora dando aula de oratória para o povo das escrituras já é o asfalto derretendo”, completou.
Às margens do rio Paraguaçu, o cacique Payayá cantou: “Você que está chegando agora, faça o favor de se acostumar, esse lugar sagrado já foi território payayá”. Martins, que afirmou ser constituída tanto pela escrita quanto pela oralidade, convocou a plateia a dançar e cantar. A professora ressaltou a importância de resistir também por meio da escrita e lembrou da luta histórica de intelectuais negras e negros para conquistar espaço na academia. Bispo comentou: “Nós aprendemos a escrever para ensinar o branco a falar.”
Corpos e mentes
Mais Lidas
No início da tarde, a cantora trans Ayô Tupinambá se apresentou: “Sou uma pessoa preta, com quase dois metros de altura e que pesa quase 140 quilos. Meu corpo, onde ele chega, causa estranheza”. Ao lado da poeta baiana Adriele do Carmo, ela falou sobre ser uma artista com corpo fora do padrão na mesa “Visibilidade e resistência: poéticas políticas para a emancipação dos corpos e descolonização das mentes”.
Carmo, que se apresenta como mulher preta, gorda e lésbica, está em sua terceira Flica, a segunda como participante. Organizadora da coletânea Erótica: versos lésbicos e ativista no combate à lesbofobia, afirmou: “A gente gritou tanto nas periferias, nos guetos e nas aldeias que não tem mais como a Flica e nenhum festival literário ignorar as nossas literaturas.”
Na mesa seguinte, “Imagens e imaginário da cabocla e do caboclo: a independência vestida de povo”, as ialorixás Valnizia Bianchi e Thiffany Odara e o escritor indígena Sairi Pataxó lembraram da participação de indígenas, sertanejos e negros nas lutas pela Independência da Bahia.
Valnizia Bianchi, Thiffany Odara e Sairi Pataxó [Diego Silva/Divulgação]
“Nós indígenas e nossos irmãos negros sofremos muito. Mas estamos aqui para contar nossa história”, disse o autor. O caráter rebelde do caboclo e da cabocla foi lembrado por Mãe Valnizia. “A rebeldia de caboclo traça rotas de fuga, possibilidades de ‘aquilombamento’ para lutar contra quem nos oprime”, comentou Mãe Thiffany.
Recordar é preciso
A programação de sexta na Tenda Paraguaçu foi encerrada pela escritora e jornalista Eliana Alves Cruz e a autora cubana Teresa Cárdenas. Elas debateram seus projetos literários, que compartilham o propósito de desfazer o apagamento da história de negros e negras dispóricos. As autoras falaram sobre processos de escrita e a necessidade de olhar para o passado na construção dos enredos.
A escritora e jornalista Eliana Alves Cruz [Diego Silva/Divulgação]
Alves Cruz lembrou que em Cachoeira estão as raízes de seu romance Água de barrela, que a escritora chamou de “grande iniciação”. Ela ainda afirmou que, em seu projeto de contar a própria história contra o esquecimento, não usa a dor como fetiche.
“O racismo não tem valor estético. A gente não escreve sobre ele, e sim sobre a vida, mas falamos do racismo porque faz parte dela e porque nossos filhos têm que saber. Achamos que já estava posto que a escravidão é um horror, mas não é bem assim”, disse.
Cárdenas, que nasceu na província cubana de Matanzas, lembrou que sua terra natal também teve muitas lutas antiescravistas, formação de quilombos e mulheres líderes de rebeliões. “Meu compromisso como mulher negra e mãe que escreve é fazer com que essas histórias cheguem aos livros para crianças”, disse a escritora, que acaba de lançar no Brasil o infantil Meu avô Tatanene.
A autora cubana Teresa Cárdenas [Diego Silva/Divulgação]
A autora ainda confessou estar “encantada” com a quantidade de livros contando a história sob o ponto de vista dos descendentes de negros escravizados no Brasil. “Em Cuba, há muitas mulheres negras escrevendo, mas não publicando. Lá, as crianças negras desconhecem seu passado”, lamentou.
Matéria publicada na edição impressa #75 em outubro de 2023.