Carnaval,

Tem samba no rodapé

Os livros de ficção e não ficção que foram leitura obrigatória dos carnavalescos em 2024

16fev2024 | Edição

Quem acompanhou a folia dos últimos dias flagrou a literatura pegando carona nos carros alegóricos das escolas de samba que desfilaram nos Sambódromos do Anhembi, em São Paulo, e da Marquês de Sapucaí, no Rio de Janeiro. Entre as referências bem captadas pelos carnavalescos estão livros de ficção e não ficção sobre história e antropologia: a cultura dos povos originários, a diáspora africana, o abolicionismo, a formação do povo brasileiro e o mito yanomami da criação do mundo.

A Mocidade Alegre, do bairro do Limão, ganhou o carnaval em São Paulo com o enredo “Brasiléia Desvairada: a busca de Mário de Andrade por um País”, explorando as viagens de “descoberta do Brasil” do escritor paulista. Nos anos 1920, quando fazer turismo pelo interior do país era uma atividade complexa e extravagante, Mário foi a Minas Gerais com uma turma de escritores e amigos para conhecer o barroco mineiro e as cidades históricas. Ou, como diz a letra do samba de enredo campeão, de autoria de Biro Biro, Turko, Gui Cruz, Rafa do Cavaco, Minuetto, João Osasco, Imperial, Maradona, Portuga, Fabio Souza, Daniel Katar e Vitor Gabriel e interpretado por Igor Sorriso:

Trilhando caminhos de crença e paz
Dourado é teu chão… 
oh Minas Gerais!
Eu vi no traço genial
A arte barroca, um dom divinal

E por aí vai. Mário também foi para o Nordeste, numa importante viagem de pesquisa sobre o folclore brasileiro (Baque virado, marimba na congada/ Noite enluarada, no maracatu da Casa Real/ Fechei o corpo no catimbó/ No frevo, saudade só/
Me embriaguei de carnaval
) e para a Amazônia (Jangadeiro ê… no banzeiro/ No balanço navego teu rio-mar/ Pra conhecer o teu sabor Marajó/ Tem batuque na gira do carimbó). O crítico Silviano Santiago escreveu sobre as viagens de Mário na Quatro Cinco Um em setembro de 2021. O carnavalesco Jorge Silveira assina o desfile campeão de 2024.

No Rio, a campeã Unidos do Viradouro, de Niterói, se inspirou no livro Sacerdotisas voduns e rainhas do Rosário (Chão Editora, 2023), de Aldair Rodrigues e Moacir Maia. O livro reúne documentos inéditos sobre a vida e as crenças de mulheres que foram aprisionadas na costa da Mina, a denominação dada pelos portugueses à costa ocidental da África, e trazidas para Minas Gerais como escravizadas. Algumas delas ganharam protagonismo como líderes religiosas vodum e sofreram racismo religioso. Os documentos transcritos, publicados e estudados no livro incluem processos da Inquisição contra essas mulheres. O livro foi resenhado por Cidinha da Silva na revista dos livros.

“Desde as sacerdotisas, aos voduns ofídicos e proféticos que foram representados no enredo, além do mais conhecido: Dã, Dangbé, Dambê; a cultura vodum é muito rica. Oriunda do Golfo do Benim, essa cultura religiosa era aberta, agregadora e viva. Após a passagem do Atlântico, o vodum sofreu muita perseguição e teve que lutar e resistir ao longo da história”, conta o historiador Moacir Maia. “Então foi uma grande emoção vê-lo na Avenida, principalmente porque o compromisso meu e do Aldair era de fazer uma história pública, que chegasse a mais pessoas. Essas histórias são o nosso passado: heranças africanas que fazem parte da nossa história brasileira”. 

Segundo Maia, a simbiose entre escolas de samba e os livros é antiga, já que os carnavalescos têm uma preocupação direta de fundamentar o respeito com as histórias que levam para a Sapucaí, agregando todos os tipos de conhecimento, inclusive o saber produzido nas universidades brasileiras.

‘Ainda estou vivo’

“Hutukara”, o enredo do Salgueiro, a quarta colocada no carnaval carioca, homenageou o povo Yanomami, além de chamar atenção para a proteção da Amazônia. O carnavalesco Edson Pereira teve como base o livro A queda do Céu (Companhia das Letras, 2015), de Davi Kopenawa e Bruce Albert, que reúne relatos autobiográficos de Kopenawa, xamã e porta-voz dos Yanomami. Além disso, a escola sediada na Tijuca se inspirou em duas obras da antropóloga Hanna Limulja: O desejo dos outros: Uma etnografia dos sonhos yanomami (2022) e Mari hi – a árvore dos sonhos: um mito yanomami para crianças (2023), publicados pela Ubu. Na Quatro Cinco Um, o primeiro foi resenhado pelo psicanalista Christian Dunker; e o segundo, voltado para o universo infantojuvenil, pela escritora Rita Carelli

“Ver O desejo dos outros virar enredo de uma escola de samba foi algo inimaginável, porque é alcançar outra escala: a das pessoas poderem ter acesso ao universo da cosmologia e pensamento yanomami — e para além do alcance que imaginávamos, porque é um livro de antropologia e de doutorado, mas que conseguiu sair das bolhas e virar inspiração para além dos muros da Universidade.”, conta Hanna Limulja. “Esse encontro com o Davi e os povos indígenas e da comunidade do Salgueiro é incrível. O Kopenawa falou algumas vezes de, enquanto subia o morro da Salgueiro, ter se dado conta que a luta do povo negro também era a luta do povo indígena. Eles estão lutando as mesmas lutas.”

Segundo Hanna, o enredo é uma tentativa de retratar também as belezas das cosmologias de um povo que ainda luta. O refrão do samba de enredo, assinado por Marcelo Motta, Pedrinho da Flor, Arlindinho Cruz, Renato Galante, Dudu Nobre, Leonardo Gallo, Ramon Via13 e Ralfe Ribeiro, é “Ya temi xoa” (ainda estou vivo), um grito de alegria pela vida, mas também um grito de resistência. 

A letra evoca o mito de criação yanomami e os rituais religiosos com rapé alucinógeno (É HUTUKARA! O chão de Omama/ O breu e a chama,/ Deus da criação/ Xamã no transe de yakoana/ Evoca Xapiri, a missão..), critica a colonização e a hipocrisia dos brasileiros (Eu aprendi português, a língua do opressor/ Pra te provar que meu penar também é sua dor/ Falar de amor enquanto a mata chora,/
É luta sem Flecha, da boca pra fora!
), a invasão do garimpo, o assassinato do indigenista Bruno e do jornalista Dom (”Somos parte de quem parte, feito Bruno e Dom/ Kopenawas pela terra, nessa guerra sem um cesso,/ Não queremos sua "ordem", nem o seu "progresso"). O samba foi interpretado por Emerson Dias. 

“As pessoas podem achar que isso é uma contradição, mas na verdade é uma tentativa de mostrar que há o que resistir e há o que celebrar. Não é uma alienação. Para continuar resistindo, é preciso ter momentos de festa”, diz Hanna. “A festa que se faz para os mortos, para os Yanomami, é um momento de grande êxtase. Há a felicidade e a união e, ao final da festa, tem-se o choro coletivo e fúnebre, pois ainda há um morto para se chorar. Isso é muito semelhante ao simbolismo do Carnaval: festa e morte. A presença de Davi e do filho Dário diante do público, após as inúmeras ameaças de morte que ambos receberam, afirma que eles estão vivos e a luta também.”

‘Tudo ruge’

Os destaques da ficção brasileira contemporânea também renderam bons enredos no carnaval de 2024. A Acadêmicos do Grande Rio, de Duque de Caxias, terceira colocada no carnaval fluminense, levou à Sapucaí o enredo "Nosso destino é ser onça", que bebeu da fonte do escritor carioca Alberto Mussa, em Meu destino é ser onça (Civilização Brasileira, 2009). O romance resgata o mito tupinambá e registros sobre a cultura indígena da baía de Guanabara.

A bateria da Grande Rio desfilou incorporando o potente som do animal, inspirado no livro da escritora e historiadora pernambucana Micheliny Verunschk, O som do rugido da onça (Todavia, 2021), vencedor do Prêmio Jabuti 2022. A obra gira ao redor do rapto e morte de indígenas, além de refletir sobre os irrompimentos do passado colonialista através do tempo, e foi resenhada por Luciana Araujo Marques na revista dos livros.

“Eu estava em Munique, na Alemanha, quando soube que a bateria da Grande Rio foi nomeada a partir de O som do rugido da onça. Me parece fazer um grande sentido neste momento: a Grande Onça rugindo no Brasil, um rugido simultaneamente político, celebratório e de justiça com a nossa história. Ver a belíssima onça Paolla Oliveira na avenida, à frente da bateria, foi a cereja antipatriarcal desse bolo: tudo ruge!”, disse Micheliny à revista dos livros. “Na avenida, o grande significado do livro é de que o outro lado da história, o lado daqueles que foram roubados e invisibilizados, precisa ser visto e ocupar todos os espaços. Carnaval e literatura são lugares de centralidade de um poder que emana e pertence ao povo. Nossa literatura contemporânea tem muito a falar ao país, e as escolas de samba e seus carnavalescos estão atentos.”

Um defeito de cor, da mineira Ana Maria Gonçalves, foi a inspiração do enredo da Portela. Lançado em 2006 e considerado um dos romances brasileiros mais importantes deste século, o livro, que retrata a escravização de africanos e sua luta por liberdade durante a formação do Brasil, também foi tema de uma exposição no Museu de Arte do Rio (MAR), em 2022. N’A Feira do livro 2023, em uma mesa que foi batizada com o título do livro, ao lado do escritor Itamar Vieira Junior, Gonçalves falou da importância de contar histórias silenciadas por séculos e afirmou que escreve os livros que não achou para ler.  A repercussão do desfile da Portela levou o livro para o topo das listas de mais vendidos e, segundo sua editora, chegou a ter os estoques esgotados.

A cearense Socorro Acioli foi outra autora cuja obra desfilou na avenida. “Pede caju que dou… Pede caju que dá”, enredo da Mocidade Independente de Padre Miguel, um dos hits do Carnaval carioca 2024, teve como uma de suas inspirações o livro Tempo de caju, de Acioli. Ilustrado por Mauricio Negro e publicado pela Maralto, o infantojuvenil conta a história do menino indígena Porã e seu povo, que conta a passagem do tempo com castanhas de caju. 

Para ver e rever

Os melhores momentos do desfile da Mocidade Alegre, campeão do Carnaval de São Paulo, podem ser vistos no canal do UOL no YouTube.

E os desfiles completos do Carnaval 2024 do Rio estão disponíveis nesta playlist do YouTube. 

Quem escreveu esse texto

Jaqueline Silva

É estudante de Jornalismo na ECA-USP e estagiária editorial na Quatro Cinco Um.

Iara Biderman

Jornalista, , editora da Quatro Cinco Um, está lançando Tantra e a arte de cortar cebolas (34)

Matéria publicada na edição impressa em .