A Feira do Livro,

Marco temporal é uma catástrofe planetária e civilizatória

Em debate sobre ficção inspirada na cultura indígena, autores comparam o fazer antropológico ao literário e alertam para a necessidade de se tomar consciência política acerca das questões dos povos originários

10jun2023 | Edição #70

As vivências de Rita Carelli com povos originários do Mato Grosso e do Alto Xingu, de Pedro Cesarino com os marubo (AM) e de Aparecida Vilaça com os wari’ (RO) conduziram a mesa Ficções amazônicas, que ponderou sobre os saberes dos povos originários como possibilidade de saída em um mundo sem saída e questionou o papel didático dos livros de ficção centrados nessas populações.

“A literatura não precisa ser convocada ou limitada a responder sobre um problema político ou civilizatório, ainda que precise reagir a eles”, disse Cesarino, que recém-lançou A repetição (Todavia), composto de duas novelas sobre a herança da escravidão e a violência contra indígenas. O antropólogo, que refuta a ideia de uma literatura temática sobre os indígenas, disse pensar o fazer literário como um processo de lidar com camadas, com os escombros do processo colonial. “Estamos lidando com civilizações ainda extremamente presentes no país, mas que foram escorraçadas do debate público — o que vale não só para os indígenas, mas para toda a presença afrocentrada no Brasil”, disse.

Vilaça — coautora, junto com o filho Francisco, do livro que dá nome à mesa, lançado no ano passado pela Todavia — também refutou a cobrança por se fazer sempre textos-denúncia. “A minha intenção em fazer ficção foi de tomar outro caminho: fazer essa denúncia, mas de forma mais lúdica, engraçada. É preciso, paralelamente à denúncia, mostrar também a potência criativa e a alegria dos povos originários”, disse a antropóloga. Ela comparou as personagens fictícias com avatares por meio dos quais os leitores podem adentrar mundos desconhecidos.

“Meu livro tem funcionado para alguns leitores justamente por isso”, complementou Carelli, atriz, cineasta e autora de Terrapreta (34), romance em que uma menina branca, de classe média, vai parar quase à revelia em uma aldeia do Alto Xingu. “Claro que a riqueza está muito aquém da compreensão da personagem — e também da minha —, mas a pessoa consegue dar a mão para ela e espiar ali, ver um pouquinho dessa cultura”, disse ela, que viveu em aldeias durante a infância por causa do trabalho dos pais, cineasta e antropóloga. “Tenho proximidade com esse universo por herança. Minha experiência não veio pelo lugar da pesquisa, mas da convivência, do dia a dia, dos afetos.”

Questionado pela mediadora Iara Biderman, editora da Quatro Cinco Um, sobre a diferença entre os fazeres antropológico e literário, Cesarino ressaltou a diferença de alcance de público. “A antropologia circula em um universo mais restrito do que a ficção, mas há uma relação de complementaridade muito importante entre ambos — ainda mais no Brasil, que vive uma hegemonia cultural. Precisamos sair desse horizonte de monocultura”, disse ele, que em seguida descreveu seu livro como “1/4 amazônico, 3/4 utópico e urbano”.

Vilaça ponderou sobre a singularidade da antropologia entre as ciências devido à pesquisa de campo, que implica conviver com o grupo de estudo escolhido. “É uma ciência muito especial pois envolve viver junto e vira um aprendizado não só intelectual, mas pessoal, sensorial. Ela entra no nosso corpo pela vivência e nos permite ficcionalizar com um pé no conhecimento.” Ela também chamou a atenção para o fato de os livros de autores indígenas quase sempre serem categorizados como literatura infantojuvenil. “Estamos lidando com outro tipo de espaço narrativo. É uma literatura adulta no sentido de que é outra concepção de mundo.”

A conversa também abordou a questão do marco temporal, que defende que a demarcação de terras só pode acontecer caso seja comprovado que os povos originários estavam no espaço em 5 de outubro de 1988, quando a Constituição atual foi promulgada. “É dever de todos aqui tomar consciência do que está acontecendo e fazer pressão em todos os canais possíveis”, disse Cesarino. “O marco temporal é uma catástrofe planetária, civilizatória, um retrocesso absurdo que coloca em xeque nossa possibilidade de existência. Não é um problema dos indígenas, dos antropólogos, dos ambientalistas, dos indigenistas, da ficção ou da não ficção, é um problema de todo mundo.”

A Feira do Livro acontece de 7 a 11 de junho na praça Charles Miller, no Pacaembu, em São Paulo.

Quem escreveu esse texto

Marília Kodic

Jornalista e tradutora, é co-autora de Moda ilustrada (Luste).

Matéria publicada na edição impressa #70 em maio de 2023.