A Feira do Livro,

Ginevra Lamberti e Camila Appel reforçam a urgência de falarmos mais sobre a morte

A escritora italiana e a jornalista brasileira defendem a discussão da morte e suas dimensões políticas — da forma como nos relacionamos a questões ambientais

09jun2023 | Edição #70

O terceiro dia d’A Feira do Livro começou pelo fim, com uma conversa sobre a morte e a urgência de falar sobre ela. A escritora italiana Ginevra Lamberti ocupou o palco com a jornalista Camila Appel e celebraram o fato de a morte ser um tema bem-vindo em uma manhã de sol e céu azul, entre adultos e crianças, na praça pública.

Para elas, falar sobre a morte é não só bem-vindo, mas necessário. “Acredito que essa é a única forma possível. Vamos ser claros, não sabemos nada sobre a morte. A única coisa que podemos dar é a escuta, a escuta do outro, de nós próprios. Exprimir nossa bondade e não ter medo de mostrar nossas fraquezas”, afirmou Lamberti.

O tabu da morte é o tema de Por que começo do fim, romance da escritora italiana lançado pela Âyiné que adota uma fórmula híbrida — uma série de entrevistas divididas em sete capítulos narrativos —, fruto de uma pesquisa acadêmica de Lamberti que começou em 2018. “Comecei a escrever o livro porque eu desejava fazer um percurso que me ajudasse a viver melhor essas dimensões. O luto e a minha própria mortalidade.”

Quebrando o tabu

Appel fundou o blog Morte Sem Tabu em 2014, na Folha de S. Paulo, com outras duas autoras — Cynthia Araújo e Jéssica Moreira —, e contou que, há quase dez anos, muitos a questionavam por escrever de “coisas mórbidas”. “[A morte] Afeta a todos nós. Falar sobre isso é o mínimo pra dar alguma estrutura pra gente”, disse Appel.

Lamberti comparou o tabu com uma hipervida, o momento em que as pessoas decidem sair de férias e que podem potencializar o que colocam de lado ao longo do ano. “É cômodo distanciar do horizonte da nossa reflexão cotidiana que, mais cedo ou mais tarde, teremos que renunciar ao nosso eu. E não sabemos o que vai substituir. É um mistério. E não conseguimos fugir,” disse Lamberti. “Alguma hora teremos que abandonar essa dimensão. E dá medo”.

O medo e a ansiedade foram os motivos que mais pontuaram esse tabu. “Morrer gera tanta ansiedade em nós porque é a única esperança que não temos”, afirmou Lamberti. “É algo pelo qual todos vamos passar, mas nenhum de nós tem a experiência”.

Nosso distanciamento em relação a esse assunto foi agravado pelo fato do processo de morrer ter sido delegado aos médicos. “Morrer em casa era normal, os velórios em casa eram normais, e o que também era normal nas áreas rurais era o cuidado com o corpo ser feito por pessoas da família — nove em cada dez vezes por mulheres”.

Na época, também era comum tirar fotos dos mortos, algo que não se faz mais. “A fotografia tinha acabado de surgir. Era elitista. E a mortalidade infantil era muito comum. Ninguém tinha foto em vida, mas procurava-se parar o tempo com as mortes”.

O contato com o processo da morte, com o corpo morto, contribui para o luto. “Quando morre alguém próximo, a gente fica muito vulnerável tendo que decidir um monte de coisa, sem nenhuma preparação para isso. Ainda mais no brasil, onde temos muita pressa de enterrar nossos mortos, 24 horas”, disse Appel.


Ginevra Lamberti e Camila Appel na Mesa Vamos voltar a falar sobre a morte? [Sean Vadaru/Divulgação]

Proximidade

Lamberti e Appel conversaram extensamente com profissionais de funerárias e tanatologistas, profissionais que higienizam e preparam o corpo após a morte. Além de pouco reconhecidos — Lamberti notou como durante a pandemia os médicos foram considerados heróis, mas outros profissionais que também lidam com a morte diariamente não foram nem sequer considerados —, há também preconceito com a profissão.

“São duas áreas profissionais que não são associadas, e deveriam ser associadas”, afirmou Lamberti. “Ninguém escolhe essa profissão. Tende a ser uma continuação do trabalho que a família já fazia”. No entanto, ambas compartilharam casos de tanatologistas que se identificavam com a profissão e tentavam respeitar o desejo dos mortos.

Simona, uma tanatologista entrevistada por Lamberti, fala de uma transexual morta e de como sua família queria enterrá-la como homem. Ela não podia intervir, mas conseguiu que as unhas fossem pintadas. “Tinha esse homem, com a roupa muito elegante, mas pelo menos com as unhas pintadas com cores bem chamativas”, contou Lamberti. Appel lembrou também do caso narrado no curta-metragem Os sapatos de Aristeu, de René Guerra, em que as amigas de uma transexual vão ao enterro e conseguem colocar um salto no morto. Para as tanatologistas, o corpo representa uma vida inteira.


Camila Appel na Mesa Vamos voltar a falar sobre a morte? [Sean Vadaru/Divulgação]

Autonomia da decisão

Respeitar os desejos do morto não é tarefa fácil. Appel explicou que no Brasil o corpo de uma pessoa morta pertence à sua família, não a ela. Existe o testamento vital, mas este não é um instrumento legal, apenas uma forma da pessoa manifestar seus desejos referentes a como quer morrer e o que aconteceria depois. A discussão sobre eutanásia “é quase que um debate proibido”, disse Appel.

Na Itália, há mais mecanismos de respeitar os desejos de morte dos pacientes, mas é muito difícil remodelar as leis, inclusive devido à influência do Vaticano, disse Lamberti. “A gente não quer mais pensar nisso. Assumir essa aura sagrada. É um monumento que não pode ser modificado. Fica difícil avançar”.

Ela reconhece não termos chegado no melhor sistema possível, mas vê avanços importantes nos últimos anos, principalmente com o testamento vital. “Recusar o tratamento terapêutico, o direito de declarar os desejos, é um instrumento muito importante. Não é uma resposta definitiva, é um processo, mas espero que seja um processo que não se interrompa”, afirmou Lamberti.

Esse foi outro motivo de ter escrito Por que começo do fim. “Eu sofria muito por ver como o desejo de autonomia, autodeterminação, podia ser muito tropeçado. E são momentos de tanta fragilidade, necessidade de tomar decisões muito rápido, e no geral as decisões são ruins”.

“Por isso é importante falar da morte. Se conseguirmos encontrar esse momento de maior fraqueza possível, e pensar que isso diz respeito a todos, a gente pode começar a entender melhor o que a gente quer na vida, e na morte”, disse Lamberti, aplaudida pela plateia.

Pandemia e política

Tanto Appel quanto Lamberti trouxeram outras dimensões políticas da morte — desde como na pandemia a morte virou uma estatística (e como o Projeto Numeráveis tentou responder a isso); a ocupação do espaço pelos mortos, os cemitérios como áreas públicos ou privados; e a relação com o meio-ambiente e o clima. “Se somos 10 milhões de pessoas, não somos só números. Somos pessoas que continuam a morrer e continuam a ocupar espaços, mesmo depois da morte”, disse Lamberti.

Ela falou também do projeto Capsula Mundi, idealizado pelo casal de designers Anna Citelli e Raoul Bretzel no começo dos anos 2000, e exposto na Bienal de Arquitetura de Veneza em 2012, que propõe uma alternativa aos enterros tradicionais. O corpo pendurado como se fosse um útero expressa a ideia de uma sepultura vegetal, biodegradável.

“Parece um útero, sêmen, óvulo, qualquer coisa gerativa. Coloca-se o corpo na posição fetal, e de lá nasceria uma árvore. É uma ideia linda, mas não se pode fazer! Porque não é legal, não entrou no debate político, público, a questão das sepulturas verdes. Se trata de uma questão teórica, infelizmente,” completou Lamberti.

Vamos falar sobre a morte?

Na conversa, pontuaram a importância de também falar sobre a morte com crianças. “Elas são curiosas, entram em contato com a morte, questionam cedo. A orientação é que pode-se usar metáforas, mas não perder a questão biológica do corpo”, disse Appel, que também mencionou o Death Café, um projeto internacional com encontros mensais em que se discute a morte, e a urgência de falarmos mais sobre a morte.

Lamberti foi pela mesma linha: “Em alguns anos, me dei conta que as minhas dúvidas não eram resolvidas, mas me colocavam em um caminho de cura, digamos assim, e sobretudo de aquisição de maior consciência. Ter mais consciência não te faz sofrer menos, mas te dá menos medo, te dá mais lucidez”.

Encerrando o assunto sério com bom-humor, a conversa terminou em morte súbita. “As últimas palavras nesse contexto são meio inquietantes. Não serão minhas últimas palavras de vida”, brincou Lamberti, emendando em uma reflexão.

“Eu sei que não é simples, é desafiador, dá medo. A morte não é meu assunto preferido quando saio com amigos, não vai ser a primeira coisa de que vou falar. Por outro lado, escrever Por que eu começo do fim foi uma aventura. Eu não achei que ia chegar até aqui com ela. Tô aqui em São Paulo para falar sobre isso.”

Enquanto o dia começou pelo fim, esse texto acaba com o começo da mesa, cujo nome vem de um poema de João Cabral de Melo Neto, escrito em 1985, publicado no livro Agrestes, e lido na manhã desta quinta por Paulo Werneck ao abrir a conversa:

Um dia, Clarice Lispector
intercambiava com amigos
dez mil anedotas de morte,
e do que tem de sério e circo.

Nisso, chegam outros amigos,
vindos do último futebol,
comentando o jogo, recontando-o.
refazendo-o, de gol a gol.

Quando o futebol esmorece,
abre a boca um silêncio enorme
e ouve-se a voz de Clarice:
Vamos voltar a falar de morte?

A Feira do Livro acontece de 7 a 11 de junho na praça Charles Miller, no Pacaembu, em São Paulo.

Quem escreveu esse texto

Beatriz Muylaert

Jornalista e editora executiva da Quatro Cinco Um.

Matéria publicada na edição impressa #70 em maio de 2023.