A Feira do Livro,

Fatima Daas diz que França não aceita que ela concilie ser lésbica e muçulmana

Em mesa com o brasileiro Diogo Bercito, autora de origem argelina contou que franceses insistem muito que a França vai libertá-la de sua religião

11jun2023 | Edição #70

O país da “igualdade, libertártio e fraternidade” não é tão igualitário, livre e fraterno com todos. Foi essa a imagem da França que emergiu da mesa Filhos da diáspora, em que Fatima Daas, autora de família argelina nascida em Paris, e Diogo Bercito, jornalista, escritor e pesquisador, falaram sobre literatura, imigração e identidades LGBTQIA+, com mediação da jornalista Paula Carvalho, editora de podcasts da Quatro Cinco Um.

Em seu livro A última filha, lançado pela Bazar do Tempo em 2022, Daas cria uma personagem para falar de uma experiência que também é muito sua, de ser uma jovem lésbica em uma família de imigrantes argelinos que vivem no subúrbio de Paris. “E queria dizer no livro que é possivel ser homossexual sem precisar escolher. A gente pode escolher manter tudo, manter a fé, manter a família, manter a mãe, e manter o amor pelas mulheres.”

No entanto, seu modo de conciliar essas identidades ainda causa espanto na França, a ponto de ter sido considerada homofóbica.

“Fui considerada homofóbica porque sou muçulmana. Depois, teve uma entrevista que criou certa polêmica, onde eu falava sobre o que acontecia no livro, e a entrevistadora me perguntou se eu achava que homossexualidade era pecado, e eu disse que sim, no islamismo sim, como nos três grandes monoteísmos”, disse.


Fatima Daas, escritora de família argelina nascida em Paris [Sean Vadaru/Divulgação]

“No começo foi muito duro conciliar a minha religião e a minha sexualidade. Depois isso foi vindo aos poucos. Mas quando eu aceitei me relacionar com outras mulheres, eu me senti mais próxima da minha fé.”.

“Mas tem sempre essa insistência de que em algum momento eu vou me libertar da minha religião, que eu sou jovem, que vou aprender, que a França vai me libertar”, disse, com um sorriso sarcástico que arrancou aplausos do público.

A escritora comparou com a experiência que tem tido no Brasil. “Tenho sentido aqui um acolhimento, uma hospitalidade muito forte. Claro que tive muito sucesso lá, mas quando me convidam, tenho sempre a sensação de que é pra confiscar a minha palavra. Sentir esse calor aqui e ouvir perguntas abertas me surpreende. Na França eu sinto que me pedem pra agradecer, obrigada França por eu estar aqui, obrigada por seu colonialismo.”

Apesar disso, a recepção do livro por meninas como ela tem sido muito positiva. “Eu nunca mais me senti sozinha depois desse livro. Eu encontrei uma família e entendi a importância de contar, de abrir essa porta e falar, para as pessoas se sentirem representadas.”

Árabes no Brasil e na França

Sexualidade e identidade árabe também é um tema que aparece em Vou sumir quando a vela se apagar, que Bercito lançou pela Intrínseca em 2022. Mas, ali, aparece como mais um elemento de uma história de amor em meio à imigração da Síria para o Brasil.

“Eu não tinha interesse em escrever mais um romance de descoberta de sexualidade. Eu queria também falar de como a homossexualidade não necessariamente é uma identidade dentro da tradição do islã. Tem toda uma tradição de poemas e escritos homoeróticos de séculos. A transformação disso em identidade, em enfermidade, é muito recente nessas sociedades.”

Bercito contou que Vou sumir quando a vela se apagar é quase uma continuação de Brimos, livro de não ficção sobre a imigração sírio-libanesa no Brasil. “No fim do Brimos eu conto que meu bisavô foi um homem que imigrou, sumiu antes que a minha avó nascesse, isso sempre foi um mistério na minha família, então eu decidi inventar a história dele a partir de pesquisas que eu fiz. Mas em termos de historiografia, acho que o mais interessante foi transformar esse personagem do meu avô em um homem homossexual, para perguntar onde estavam essas pessoas que não aparecem nos livros, nos arquivos, nos jornais da época.”


O jornalista, escritor e pesquisador Diogo Bercito [Sean Vadaru/Divulgação]

Daas e Bercito também compararam o modo como se deu a imigração árabe no Brasil e na França, embora em momentos distintos. “No meu livro isso aparece muito em passagens escolares, em cenas na escola em que ter um nome como Fatima [nome da filha do profeta Maomé] é até piada. Mas eu não quis falar muito disso, eu quis só apresentar uma cena de racismo sem explicar, pras pessoas sentirem”, disse Daas.

Bercito, por sua vez, apontou como se apagou no Brasil o racismo que os imigrantes sírio-libaneses sofreram quando chegaram ao país no início do século 20. “Nas pesquisas de história oral que eu faço tem sempre uma necessidade de afirmar como eles foram bem recebidos, mas essa não é toda a verdade. Teve muito preconceito, essa coisa de chamar de turcos, eles sofreram muitas restrições. Eles não chegaram como brancos, como são considerados hoje. Isso veio depois, com a construção do Brasil como um país branco.”

Ao serem questionados sobre que autor os havia inspirado para falar de questões LGBTQIA+ no mundo árabe, ambos apontaram o franco-marroquino Abdellah Taïa, que participou da mesa Imigração, poesia e identidades, mediada por Bercito na quinta-feira, ao lado do suíço-camaronês Max Lobe, em que discutiram pertencimento, preconceito, heranças coloniais e sua experiência como imigrantes.

A Feira do Livro acontece de 7 a 11 de junho na praça Charles Miller, no Pacaembu, em São Paulo.

Quem escreveu esse texto

Natalia Engler

É jornalista e pesquisadora de comunicação e gênero.

Matéria publicada na edição impressa #70 em junho de 2023.