Rebentos,
Um trinômio fantástico
Em O homem, o rio e a caixa, a escritora argentina Anabella López percorre o equilíbrio entre a posse e a liberdade a partir de uma fábula sobre relacionamentos abusivos e a relação entre o homem e a natureza
27nov2024Seres de carne e osso costumam ser, essencialmente, espíritos incontroláveis. Não nasceram para viver em caixas, murados por quatro paredes e um teto ou nas garras de um algoz, que um dia pode até tê-lo desejado bem. Seres assim expandem a si e ao redor. E, embora não tenha carne e osso, um rio pode bem representar um exemplo desse temperamento. Rompe linhas, traça curvas e deságua onde bem entende. É belo porque é livre. Mas também porque sabe dar, sem esperar algo em retorno. Esse espírito incontrolável pode ser visto no apaixonante rio de O homem, o rio e a caixa (PeraBook), da escritora argentina radicada no Brasil Anabella López, que, nesta história, se torna um dos personagens principais.
Como em uma fábula, o curso de água vira alvo do amor de um homem simples, que logo revela ser também solitário e inseguro. A paixão mútua é irrefreável e cresce a cada dia. Mas na cabeça do homem, outros sentimentos começam a tomar forma: o medo de ter menos e de perder mais. É querendo a totalidade do outro que ele toma o rio só para si e o aprisiona. Nada passa a fluir bem para nenhum dos dois; como diz um ditado africano, quando um rio esquece onde nasce, acaba secando e morrendo. Mas pode renascer.
Nesta entrevista para a Quatro Cinco Um, López reflete sobre a dualidade dos sentimentos e das situações humanas, os caminhos que percorre entre as metáforas para chegar ao texto subjetivo e a importância de preparar crianças para as adversidades do cotidiano.
De onde veio a ideia para escrever e ilustrar O homem, o rio e a caixa?
A ideia de trabalhar com esses três personagens surgiu de um exercício de criação de histórias que eu fazia todo dia pela manhã. Eu acordava e levava um tempo para escrever. Daí, fui criando uma série de exercícios e um deles era trabalhar com o conceito de “binômio fantástico”, do Gianni Rodari; só que nesse caso decidi trabalhar com um trinômio. Desenvolvi, então, a relação entre três personagens que, aparentemente, não tinham nenhum motivo para estarem juntos.
Foi aí que começou a brincadeira da história. Primeiro imaginei a relação de amizade e amor entre um rio e um homem que se conhecem e se apaixonam. Depois incluí a caixa. Foi um processo intuitivo, orgânico e lúdico. Foi mais um exercício que fiz para me divertir e criar livremente, sem expectativas de fazer um livro. Não pensava nisso, mas quando comecei a gostar da história e sentir que tinha potencial para se transformar em um livro, comecei a trabalhar a partir do formato de livro ilustrado, com páginas duplas e mais.
Repleto de metáforas, o livro parece dar pistas acerca de dois tipos de leitura diferentes: uma sobre relacionamentos e a outra no campo da relação entre o homem e a natureza, e nenhuma dessas relações é fácil de abordar. Quais associações vocês quis fazer?
Nos meus livros, gosto de trabalhar com essas duas forças que são opostas e, ao mesmo tempo, complementares: a ideia do individual e do coletivo. As histórias que conto nos livros ilustrados podem trazer questões para o indivíduo — pontuais e particulares de cada um de nós — e histórias que falam de questões globais, que são do coletivo e que pertencem a todos. Essas são as grandes questões de Nietzsche: o eterno retorno, o amor e o medo. Mas a forma como cada um de nós vive esse amor e esse medo esbarra no particular.
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Gosto quando um livro trabalha nessas duas forças, porque a partir desse movimento conseguimos que o leitor se identifique com muitas competências e lembranças íntimas, que são diferentes para cada pessoa, mas que em um ponto todos já vivenciamos. É aquilo que nos diferencia e, ao mesmo tempo, nos faz iguais. É um trabalho de arquétipos. Nesse livro temos essas duas leituras e esses dois caminhos, mas isso também depende da leitura de cada um. O foco e o momento de cada leitor são diferentes.
Então, poderíamos pensar nesses dois eixos principais: do relacionamento amoroso, mas também do vínculo que não necessariamente é romântico. Pode ser amizade, vínculo familiar. Por outro lado, vincular é também a relação do humano com a natureza, de uma maneira um pouco mais literal. Mas há outros pontos, como o controle, a liberdade e os fluxos e mistérios da vida; como a gente tenta controlar a vida e, na verdade, não consegue controlar algo algo cuja própria natureza é justamente não se revelar. O rio em si é justamente assim. O livro mostra como o rio é gostoso e o vínculo deles é maravilhoso enquanto se entregam e vivem aquele momento. Entregues, sem receios, tudo flui.
Para você, quais são os impactos das crianças terem acesso a temas mais profundos, próximos à realidade e suas complexidades?
O impacto é enorme no sentido de criarmos leitores que tenham um olhar muito mais aprofundado sobre a realidade e que, a partir desse olhar, eles também consigam criar uma proposta de mundo que de alguma forma evolua. É justamente o ovo e a galinha, na medida que, ao ter uma leitura mais ampla do mundo, conseguimos escrever e criar um mundo melhor.
Quando trabalhamos com questões mais densas e complexas, damos ferramentas para essas crianças também se conectarem com a natureza, o rio, o mistério da vida e até mesmo essas coisas que não se revelam, não se controlam. Eles também aprendem a lidar com sensações que nem os adultos conseguem ou sabem lidar, como a frustração. O rio não vai para onde queremos e, por estarmos tão acostumados com a ideia de “poder criar os mundos que você quiser”, nos deparamos com a surpresa e o inesperado. É preciso dar ferramentas para lidar com essas frustrações naturais da vida e as curvas deste rio, que é formado mais de reviravoltas do que de linhas retas perfeitas.
O livro também trata de solidão, controle e posse, bem como seus “opostos”, como parceria, espontaneidade e liberdade. Como você enxerga a relação entre esses sentimentos e como foi escrever sobre essas subjetividades para as crianças?
Como autora e ser humano, essas questões me interessam muito. Liberdade, solidão, controle e os vínculos estão uns dentro dos outros. A gente não pode se vincular e estar com os outros se não sabemos primeiro estar sós. É preciso desfrutar da solidão, mesmo cheios de amigos ou rodeados de pessoas.
Muito do meu íntimo aparece nos livros, de uma maneira mais sutil ou não tão literal. Como a solidão que se conecta comigo: uma argentina que mora no Brasil, longe das raízes e da família. Quando essas questões aparecem no livro é honesto, genuíno.
E pensando no texto mais subjetivo, o que serve de ponte para trabalhar com o subjetivo com vários leitores, no meu caso, é o mundo do fantástico. A fantasia é um lugar de possibilidade de encontro com esse leitor. Conseguimos dizer coisas que no plano real muitas vezes não podemos dizer, então, criando uma história fantástica como o amor entre o homem e o rio, falamos de questões bem reais e concretas, como os relacionamentos tóxicos ou o abuso da natureza.
No livro, o rio dá uma espécie de cambalhota para viver: morre encurralado, mas renasce do sentimento daquele que o prendeu. O que você acha que esse movimento, que parece vir organicamente, revela sobre a própria humanidade e a natureza?
Isso revela a minha grande conclusão, frente à ideia que diz que “o homem vai destruir o mundo”. Não acho que vai, porque o homem é uma parte do mundo, estamos inseridos nele, junto com a natureza. É isso que a gente acaba esquecendo. Esse rio, que na verdade é o fluxo de vida e potência de ser, também corre dentro da gente. Foi isso que eu quis traçar no final: o homem não consegue controlar o rio de fora porque também não consegue controlar o rio de dentro. Ele vai fluir sozinho e vai renascer sempre, para além da gente. Acho que a gente não vai acabar com o mundo, mas talvez o homem vai destruir o homem. O resto vai se refazer. A natureza se transforma em um renascimento perpétuo, cíclico.
Como foi pensar e trabalhar nas ilustrações? A obra exigiu algo de diferente dos seus outros livros?
Todo livro me exige uma coisa diferente como artista. Cada livro tem um desafio particular, mas o desse livro foi bem específico, justamente o de ilustrar o rio. Para criá-lo, experimentei muitas técnicas diferentes. Pensei em várias formas, como acrílico, tinta guache e colagem, mas nenhuma técnica chegava perto do rio que eu queria. Sempre ficava um tanto certinho e bonito demais, não passava a sensação visual que eu queria: um rio que fosse caminho, meio torto e quebrado, que mudasse e que simbolizasse a transformação.
Depois me surgiu a ideia de ilustrá-lo com a mão esquerda e fui pintando sobre o tecido, em vez da folha. Cheguei no que eu queria porque os traços e os gestos mudaram, a tinta no tecido se comporta diferente e se expande de uma outra forma. O rio é muito diferente de todo o resto no livro e o fato de pintar com a mão esquerda fazia com que nem eu mesma pudesse controlá-lo. Nem como autora pude desenhá-lo de maneira controlada. Esteticamente, essa é a maior conquista do livro, porque a estética e o conceito realmente se uniram.
Que livro você gostaria de ter lido na infância?
Lia muito quando criança. Sinto que os argentinos têm essa cultura de incentivo à leitura e à cultura desde os primeiros anos. Lia com muito gosto os livros da escola e, por fora, lia diversos outros, sem nenhum tipo de critério na seleção nem curadoria. Então fiz muitas leituras que não eram para a minha idade. Por conta de questões na minha casa das quais quis fugir, os livros eram espaços de refúgio onde encontrei lugares seguros e meu próprio mundo. Então não sinto falta de ter lido tal livro. Inclusive acho que lia mais naquela época do que agora como adulta. Nenhum livro ficou pendente na minha infância.
Como podemos incentivar o hábito de leitura nas crianças e jovens?
O melhor incentivo é o exemplo. Antes de tentar incentivar e motivar, temos de parar para pensar se, como adultos, estamos lendo. É fazer uma leitura crítica da vida e do que lemos, quais tipos de livro, se fazemos leituras fáceis, pouco desafiadoras. Quando a literatura e as artes passam a ser uma prática do cotidiano e uma forma de entender e se ver no mundo, o exemplo se torna inspirador.
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