É preciso viajar

Rebentos,

É preciso viajar

Ambientado no Território Indígena Guaporé, infantojuvenil da antropóloga Betty Mindlin narra os encontros entre o humano, a natureza e o sagrado

22abr2025

No cotidiano das grandes cidades, apoiadas em uma lógica de superprodução em tempo recorde, os fins parecem sempre justificar os meios. Ou pelo menos são mais celebrados do que toda a trajetória. Em contradição a essa ideia, eis que uma menina imagina uma viagem nas costas de grandes águias. Seu destino é o oposto da urbanização e o que mais estima é a jornada em si — e para dentro de si e do universo ao redor. No infantojuvenil Viagem à Baía das Onças (Caixote, 2025), da antropóloga, professora e pesquisadora dos direitos indígenas Betty Mindlin, o convite é enxergar o tempo presente e não o final (que de certa forma nunca chega), assim como fazem e inspiram os povos originários.

Acompanhados das detalhadas pinturas da premiada escritora, atriz e ilustradora paulistana Rita Carelli, os leitores podem acessar as camadas reais e oníricas das viagens da personagem, que são o produto de uma ideia que a autora teve na infância, retomada anos depois. Celebrando as vozes que raramente são escutadas pelos ouvidos humanos, no livro as plantas e criaturas — visíveis e invisíveis — se conectam e coexistem almejando um futuro que os mantenha mais próximos uns dos outros.

Como escreve a poeta e geógrafa Márcia Wayna Kambeba no posfácio, Mindlin tece simbolicamente uma defesa à luta indígena e às questões que envolvem a preservação do meio ambiente, tudo ao alcance das crianças. Nesta entrevista para a Quatro Cinco Um, a antropóloga reflete sobre as metamorfoses que vêm com as viagens, a importância de conversar com os pequenos sobre os direitos e os ricos universos culturais indígenas e como aprofundar a conexão entre diferentes gerações por meio das histórias.

A antropóloga e escritora Betty Mindlin (Acervo pessoal)

De onde surgiu a ideia para Viagem à Baía das Onças?
Às vezes fico pensando por que é que fui escrever esse livro [risos]. Veja, o grosso do meu trabalho são os livros em coautoria indígena com os povos que convivi, unidos pela defesa das terras. Então não são exatamente uma literatura minha, porque fazem parte da literatura indígena — a não ser Diários da floresta, que reúne meus diários de campo e relatos da minha experiência com o povo Suruí Paiter de Rondônia, no final da década de 70.

Acontece que, pouco antes da pandemia, comecei a escrever sobre essa experiência que surgiu na infância, na minha imaginação. E o livro é sobre várias coisas, mas a mais importante foi retomar essa criança que eu tenho e que acredito que todos ainda tenhamos dentro de nós.

Ideias como essa reaparecem quando você já faz parte de uma geração mais velha, depois de ter filhos e netos. Eu já tinha escrito o infantil Olívia e os índios para minha neta mais velha quando ela tinha dois anos (hoje ela tem dezesseis!), depois de imaginar como seria levá-la para a terra Suruí Paiter. O engraçado é que as pessoas liam e achavam que ela realmente tivesse ido, não percebiam que era uma ficção, mas eu considerei a experiência desta primeira publicação infantojuvenil muito mais como uma parte do meu trabalho.

E como foi retomar as ideias dessa criança?
Essa criança de que falo revive a uma certa altura, renasce. Falamos muito das desvantagens da idade, mas eu acho que também há vantagens em envelhecer [risos]. Há coisas que você já não precisa fazer e pode focar nas que sempre quis. Essa voracidade é igual, mas agora você já tem um caminho percorrido. Então lembrei de mim mesma sentadinha no terraço da casa dos meus pais, que recebiam muitas pessoas.

Era no meio do mato, em uma época em que o leite era trazido na porta; eu andava de bicicleta por aquelas ruas. Não tínhamos televisão, internet etc. Aí começa a minha história imaginando o voo que a protagonista faz no início. Voar pelos céus é uma imagem muito forte na minha infância, muito influenciada pela literatura infantil que eu li nessa época. Eu tinha lido um livro da escritora sueca Selma Lagerlöf — que é prêmio Nobel e que hoje em dia acredito que ninguém mais leia —: A maravilhosa viagem de Nils Holgersson, sobre um menino que viaja nas costas de um ganso selvagem. Quando voltei a escrever sobre essa memória, me perguntava qual era a minha grande viagem e, embora eu tenha conhecido muitos países, a minha grande viagem é o universo indígena. Esse é o rio que passou em minha vida. E é nas costas das águias — muito simbólicas para o povo Suruí Paiter, que usavam suas plumas para fazer objetos de pajelança — que a protagonista faz essa viagem rumo ao território da Baía das Onças.

E o que é a Baía das Onças?
É um lugar real e muito simpático, localizado no Guajará-Mirim, Rondônia, onde moram os povos do Guaporé, que têm contato [com os brancos] desde os anos 1930, há bem mais tempo que os Suruí Paiter. A inspiração para a viagem da Berenice veio desses povos que vivem na Terra Indígena Guaporé, às margens do rio que leva o mesmo nome. Eles chamam o lugar de Baía da Coca, mas achei que o primeiro nome seria mais familiar para os leitores e leitoras.

O que te inspirou a escrever sobre as voltas do tempo?
Minha intenção foi falar da relação entre gerações que, além de complexa, muda de década em década. E acho que, no concreto, é cada vez mais difícil contar quem você é para as gerações que vêm depois. Sabe, eu acabei de fazer oitenta e três anos. Quando virei avó, me pareceu muito importante transmitir essas histórias, ainda mais do que para meus filhos, porque com os filhos você tem a vontade de repassar o que aprendeu, mas também tem de cuidar. Com os netos você acaba fazendo um pouquinho, talvez o mínimo apenas, porque o cuidar está mais na mão dos pais deles.

Quis contar quem eu era e levar os meus netos para esse mundo, mas também me misturar a eles. Meus filhos e alguns sobrinhos conheceram e tiveram contato com povos indígenas desde cedo. A Rita [Carelli] ia com os pais e hoje em dia leva as próprias filhas. Mas ainda não consegui fazer o mesmo com os meus netos. Por isso, tentei levá-los por meio da ficção. Funcionou, de certa forma, porque durante o processo de escrever, minha neta mais velha se interessou, leu e deu palpites. Isso foi muito importante para mim. No dia do lançamento, a Rita disse que também se interessou por essa história de tempo: essa disponibilidade para inventar histórias, deixar o inconsciente surgir e ter prazer sem as obrigações que nos assolam cada vez mais rápido.

E como foi ver a história pela perspectiva das pinturas da Rita Carelli?
O verdadeiro livro está nas ilustrações da Rita. Somos muito próximas, temos toda uma história em comum. Mas, à parte disso, ela é uma grande artista e também é uma ótima ficcionista, então suas leituras, sugestões e interpretações deram vida a esta ficção, que talvez sem ela, teria ficado escondida.

Por que falar com os pequenos sobre temas mais profundos e complexos?
Há toda uma preocupação se as crianças pensam sobre os temas que nós debatemos, vemos no jornal etc. Acredito que sim, e inclusive acho que pensam bem mais que os adultos quando o assunto é meio ambiente e a defesa dos povos indígenas e de seus universos culturais. Acho que quanto menos idade, mais fortes são os princípios.

Sempre fui convidada para falar sobre os povos indígenas nas escolas, desde quando os meus filhos estudavam e agora com os meus netos. Mesmo nos anos logo após ditadura, quando existia ainda mais preconceito com as questões indígenas. E o interesse é cada vez maior. Meu neto mais novo vive perguntando “por que é que você ainda não foi falar na minha escola?” [risos]. Mas acho que hoje há muito mais representantes indígenas falando sobre si próprios e isso é mais importante. Ao mesmo tempo, é bom ver a paixão que a defesa e a celebração desses universos despertam nos mais novos.

O livro também fala de algumas experiências espirituais, como o encontro da jovem protagonista com os netos que ainda nem nasceram. Como foi escrever sobre isso?
Foi muito bonito escrever sobre esse encontro da Berenice com os netos, que entram debaixo da terra. Acho que foi uma forma de representar o desejo de conexão entre as gerações. Ainda assim, é muito forte e difícil de transmitir esse lado espiritual, porque enquanto você está com os povos indígenas, tudo “entra”. Comecei a trabalhar com eles em 1978. Não falavam português e não tinham recebido influência missionária. Eu mesma não tive educação religiosa, então fiquei fascinada pela pajelança. Vi e gravei rituais, cantos dos seres do além. É uma grande perda que, infelizmente, hoje eles estejam muito sujeitos à evangelização.

E como continuar celebrando esses universos?
Quando comecei a escrever e organizar os livros em coautoria, eu tinha uma responsabilidade, um papel. Mas nosso papel muda muito. As questões pelas quais batalhei tinham a ver com a forma de escrever: de que os próprios indígenas pudessem escrever e contar suas histórias nas suas línguas, além do português. Na época em que vivi, os líderes indígenas sequer conseguiam viajar. A viagem do Mário Juruna e do Davi Kopenawa foram vitórias, mas é muito complexo pensar em como transmitir o que foi essa época para as próprias gerações atuais indígenas. Como não tornar essas histórias em misteriosas e desconhecidas?

Essas questões precisam estar no centro das atenções, porque estamos em um momento muito terrível da história, tanto brasileira quanto do mundo. Vemos esses grandes protestos indígenas e como são difíceis de se realizarem. Precisamos fazer essa volta para o passado, para as gerações anteriores, e entender esse modo de vida que a gente deveria e poderia imitar.

Quem escreveu esse texto

Jaqueline Silva

É estudante de Jornalismo na ECA-USP e assistente editorial na Quatro Cinco Um.