Literatura infantojuvenil,
Filho de peixe, nem sempre peixinho é
Carpinejar trata da diversidade na infância, respeito aos animais e quebra do estereótipo de masculinidade por meio de uma criança fora dos padrões gaúchos
23jan2024 | Edição #77Se mães e pais já estão acostumados com a famosa careta dos pequenos quando são colocados diante de um prato cheio de legumes, verduras e frutas, os pais de Emanuel não podem dizer o mesmo. Em O menino vegetariano (Bertrand Brasil), novo título infantil de Carpinejar, um garoto cresce rodeado do que a terra dá em uma fazenda em Passo Fundo, Rio Grande do Sul, e rejeita firmemente toda prática de maus-tratos aos animais, inclusive seu consumo. A criança é o terror do pai, homem orgulhoso das tradições gaúchas ligadas à cultura da carne e festivais de rodeio. Inseguro acerca dos comentários feitos pela cidade sobre o filho, a história acompanha o pai tentando mudá-lo, mas todo o esforço apenas afasta ainda mais os dois.
O menino vegetariano é o 51º livro publicado por Carpinejar
Para surpresa do leitor ou não, a solução parte do lado mais jovem. Durante um rodeio, Emanuel mostra ao pai que a auto-aceitação caminha ao lado do respeito pelos outros, seja gente ou um animal de quatro patas. Em entrevista para a Quatro Cinco Um, o escritor gaúcho conta sobre seus dias de menino, a importância de cultivar o pensamento sustentável desde a infância e a valorização da subjetividade e do amadurecimento infantis ao aceitar as próprias diferenças.
De onde surgiu a ideia de escrever a história de O menino vegetariano?
O livro surgiu para contestar a projeção dos pais. Os pais querem que os filhos sejam iguais a eles, reflexos de suas escolhas, e não entendem que o filho é um universo à parte, uma outra identidade, uma nova sensibilidade. A gente adapta o filho ou para tudo que a gente escolheu na nossa vida — o que julgamos ser o certo — ou para tudo que não aconteceu na nossa vida. E eles acabam sendo resultados de nossas frustrações, é como se eles tivessem que fazer o que deixamos de fazer. Não devemos enxergar nossos filhos como rascunho, filho é contraponto.
O escritor Fabrício Carpinejar [Annick Melo/Divulgação]
Quando escreve para o público infantojuvenil, quais são os temas que prefere abordar?
Todo meu universo infantojuvenil gira em torno da aceitação das diferenças. A menina alta (Bertrand Brasil, 2022) fala sobre o quanto uma menina sofre preconceito pela sua altura, o quanto é reduzida à função de pegar objetos nas estantes, de ficar no fundo das fotos e de servir de escada. Ou quando eu falo em o Médico das roupas (2021), sobre o menino que é criticado pela sua aparência, por herdar as roupas folgadas do irmão. O que eu quero trazer à baila é justamente a história de superação da criança depois de aceitar as suas diferenças.
Teve algo na sua infância que também o definiu como um garoto fora dos padrões gaúchos?
Eu estava fora dos padrões gaúchos, fui aquele menino sensível, poético e distraído. Eu não era aquele menino que falava alto, gritava, usava a força física para se impor. Eu sempre escolhi a delicadeza das palavras.
Por que contar sobre maus-tratos aos animais e quebra de tradições para o público infantojuvenil?
Não tem mais como não se preocupar com os animais, não tem como não se preocupar em ter uma alimentação saudável. Realmente somos o que comemos — e as crianças também. Nós ainda estamos no momento em que se paga mais para ter uma alimentação saudável. Chegaremos a um patamar civilizacional quando pagarmos menos por uma alimentação saudável e mais por uma alimentação pouco recomendável.
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Em O menino vegetariano, a criança faz o pai amadurecer. Como você vê os elementos da subjetividade infantil e os processos de amadurecimento no cotidiano?
Belo questionamento. Quando você muda, você acaba se tornando um agente de mudança para todos ao seu redor, além de modificar o jeito que as pessoas enxergam você. É igual com as crianças. Por isso é tão importante a autenticidade e a sinceridade infantis. Quando elas têm a convicção de quem são e daquilo que as faz bem, elas podem entender que não apenas convencem os adultos, mas que também influenciam a vida de quem está mais próximo.
Escrevendo para leitores de diversas idades, você encontra desafios específicos de cada faixa etária?
A simplicidade é a arte do pouco, da contenção. Quando você é simples, encanta. Quando você tenta exibir erudição, apenas se confunde. Quando penso no livro infantil, penso em um livro para ser lido em voz alta e que nunca subestime a criança. A criança tem uma inteligência emocional e metafórica de fazer comparações e de buscar o sentido de cada palavra por si só.
“Não devemos enxergar nossos filhos como rascunho, filho é contraponto”
O menino vegetariano é seu quarto livro com ilustrações de Sandra Lavandeira. Como vocês costumam trabalhar as ligações entre o texto e a imagem?
Já chegou aquele ponto em que eu escrevo sobre encomenda da Sandra Lavandeira. Ou seja, eu escrevo para ela ilustrar e ela me surpreende [risos]. Porque a ilustração não é a tradução do que está escrito. É uma ampliação do universo escrito. São dois livros para serem lidos a partir do meu texto e das ilustrações da Sandra.
Que livro você gostaria de ter lido na infância?
Eu nunca tive essa falta de leitura, e de pequeno li até a Enciclopédia Mirador Internacional [risos]. Lia tudo o que passava perto de mim. Me escondia na biblioteca porque eu sofria bullying. E quem comete bullying não frequenta a biblioteca, porque é como um esconderijo da alma. Todos os livros que escolhia, eu seguia um ritual: buscava os livros que ainda não tinham sido lidos por ninguém, os que tinham a ficha catalográfica em branco, virgem. Quando via que ninguém tinha retirado aquele livro da biblioteca, aquilo me acendia uma luz e pensava: “Então serei eu o primeiro leitor desse livro.”
Como podemos incentivar o hábito de leitura nas crianças?
Lendo e contando. E não apenas dizendo: “Agora não posso falar, porque estou lendo.” É preciso ler e explicar a elas o que leu, explicar o que aquele livro está dizendo para você, expor as narrativas em que você anda enredado. Por mais difícil que seja o tema, a criança entende. Você pode até ter uma biblioteca, mas se nunca está com um livro na mão, seu filho não vai se sentir inspirado.
Texturas orgânicas
Nasci e fui criada em Buenos Aires, na Argentina, país onde a carne é muito boa. Mas eu, como o Emanuel — o protagonista de O menino vegetariano — gosto dos vegetais e dos legumes na hora de comer. Também, como Emanuel, gosto da horta e de colheitar ervilhas, feijão, cenouras e rabanetes. Mas é de ilustrar textos que gosto mais. Este é o quarto livro de Carpinejar que ilustro, e é sempre emotivo e divertido pensar nos personagens de suas histórias. Sempre os entendo. E quem não? Eles têm conflitos a resolver e sonhos para cumprir, como todos nós.
Para gerar o “clima” do livro, procuro encontrar o humor nas personagens. Na parte técnica, procuro as texturas. Acho que elas geram um clima aconchegante, que ajuda o leitor a se sentir “em casa”. Para isso, imprimo papéis que servem de cenário ou de fundo; depois utilizo o pincel com nanquim, tinta acrílica, guache… e o que mais estiver disponível em casa ou nas papelarias da pequena cidade onde moro. Finalizo no computador, o que me deixa mudar algumas cores ou limpar algo, caso ache necessário.
Ilustradora argentina, é formada pela Escola de Belas Artes de Buenos Aires. Fã de histórias em quadrinhos, teve aula com o quadrinista Alberto Breccia, que a influenciou a ilustrar textos infantis. A parceria entre o texto de Carpinejar e as ilustrações de Sandra começou em 2018, com Filhote de cruz-credo, seguido por Médico das roupas (2021) e A menina alta (2022), todos publicados pela Bertrand Brasil.
Matéria publicada na edição impressa #77 em novembro de 2023.
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