O jornalista e escritor Humberto Werneck (Renato Parada/Divulgação)

Literatura brasileira,

Mineiro exportável

Ao completar oitenta anos, Humberto Werneck recorda grandes amizades, influências e a sua diáspora pessoal, de Minas Gerais para São Paulo

01fev2025 • Atualizado em: 07fev2025 | Edição #90 fev

“Achei.”

Depois de quase uma hora com a cara fechada, Humberto Werneck sorri. Encontra finalmente a relíquia: perdida na edição de O Diário do dia 5 de outubro de 1966, lá está a foto. Arquivista obcecado, o escritor e jornalista mineiro então fotografa a página de jornal à sua frente. Na Hemeroteca da praça da Liberdade, lugar que sempre visita quando vem a Belo Horizonte, ele não cansa de admirar a imagem sem foco, quase um borrão, de dois estudantes sendo empurrados para dentro de uma viatura policial. “É do dia em que fui em cana, eu e o Carlos Roberto Pellegrino. A gente ficou preso junto. Na cela 3. Sabia que a foto existia. Mas nunca tinha visto.”

Detido em 3 de outubro daquele ano, durante uma manifestação estudantil contra a eleição indireta do general e ditador Costa e Silva para a Presidência da República, Humberto foi levado para o DOPS, na avenida Afonso Pena. Lá ficaria, junto com outros doze estudantes, durante dezessete dias. Só seria solto depois que o Superior Tribunal Militar concedesse um habeas corpus.

Fragmento da edição de 5 de outubro de 1966 do jornal O Diário (Hemeroteca Histórica da Biblioteca Publica Estadual de Minas Gerais/Reprodução)

“Recebi a visita de muita gente. A mais importante foi do vovô Santos, embora ele não tenha aberto a boca: ficou todo o tempo calado”, rememora. “Alegando a possível existência de microfones ocultos, ele me pediu que também não falasse. Eu sabia que era mentira dele, não era nada daquilo. O vovô Santos, emocionado, tinha medo era de cair no choro.”

Pesquisador nato, Humberto parece ter prazer em tentar controlar o passado. Ter encontrado a foto daquele distante e sinistro ano de 1966 o deixa feliz. Ele então me convida para um café na Quixote, livraria em que também sempre bate ponto quando está na cidade.

“Vamos encontrar o Jaime? Marquei com ele às cinco.” Jaime é Jaime Prado Gouvêa, um dos mais talentosos contistas da geração nascida na década de 40 e amigo de Humberto desde adolescente, quando jogavam basquete no time do Minas Tênis Clube. “Jaime é o cara mais íntegro que conheci na vida”, não cansa de repetir toda vez que fala do nosso amigo em comum. Tudo que publica, faz questão de mostrar a ele. “Jaime é um craque. Se ele não encontrar nenhum erro no meu texto, fico mais tranquilo”. Falar de Jaime é, para Humberto, lembrar da sua Belo Horizonte do fim dos anos 50 e de toda a década de 60. E dos primeiros contos e poemas que os dois amigos já rabiscavam, se arriscando no duro, e quase sempre ingrato, ofício da literatura. “O Jaime nem sabe, mas guardei um monte de poemas de amor que ele escreveu quando tinha quinze anos.”

“Descobri junto com ele um monte de escritores: Cony, Guimarães Rosa, Sabino, Paulo Mendes Campos… Um sempre mostrava para o outro aquilo que estava lendo e escrevendo”, conta o autor de O desatino da rapaziada (Companhia das Letras), de 1992, que repassa meio século de histórias de escritores mineiros que, assim como ele, também se renderam ao jornalismo.

A amizade de Jaime traz ainda à lembrança outro amigo daqueles anos: Escovão. Ou melhor: um garoto, vizinho de Humberto, chamado Sérgio Sant’Anna. Ainda muito jovens, os dois já competiam para ver quem escrevia melhor. Disputa que acabaria eternizada em “Amigos”, narrativa de Sérgio publicada em Anjo noturno (Companhia das Letras, 2017).

Trecho de “Amigos”, conto do livro Anjo Noturno, de Sérgio Sant’Anna

Meu sonho na vida era escrever e, como meu novo emprego era de meio horário, pude terminar pela primeira vez um conto, “A dádiva”, que inscrevi num concurso para os alunos da Faculdade de Direito, em 1966, tirando o segundo lugar e recebendo elogios da comissão julgadora, formada por Murilo Rubião, Affonso Ávila e Ildeu Brandão. Fiquei sabendo do resultado no lotação São Pedro, pois morava nesse bairro. Sentando-se ao meu lado, Humberto Werneck, meu vizinho, amigo e primo em segundo grau de Mariza, me deu parabéns. “Por quê?” perguntei, e ele me deu a notícia do prêmio. “E quem tirou o primeiro lugar?”, eu quis saber. “Eu”, Humberto disse, e riu. Aquele concurso foi o estopim para que eu continuasse a escrever. Apresentado por Henry Corrêa de Araújo a Luis Gonzaga Vieira, que era um dos diretores da revista Estória, passei a publicar nessa revista e logo depois também no Suplemento Literário de Minas Gerais, dirigido por Murilo Rubião.

Em São Paulo, Werneck deixou a carreira de escritor meio de lado para trilhar os caminhos do jornalismo

A lembrança do querido Sérgio, morto em 2020 vítima da Covid-19, deixa o papo pesado. Mas também ajuda a puxar outro fio na memória de Humberto: a noite que passou com o amigo revisando Os sobreviventes, primeiro livro do contista Escovão. “O Sérgio tinha que entregar os originais à gráfica na manhã seguinte. Viramos a madrugada revisando o livro e procurando erros.”

A certa altura da conversa, lembro Humberto da frase do poeta e crítico Jacques do Prado Brandão que ele fez questão de colocar em O desatino da rapaziada: “Mineiro que fica em Minas é porque tem algum defeito de fabricação. Não é exportável”.

E lembro ainda o destino, tão diverso, dos três amigos: Jaime jamais saiu de Minas, escrevendo pouco e sem pressa. Sérgio, carioca da gema e torcedor fanático do Fluminense, voltaria para sua terra natal em meados dos anos 70, tornando-se um dos maiores escritores de sua geração. Já Humberto, em São Paulo, deixaria a carreira de escritor de ficção meio de lado para trilhar os caminhos do jornalismo. A lembrança da frase de Jacques, aliado ao destino dos três amigos, deixa Humberto taciturno, e ele se volta para Belo Horizonte.

“A cidade no final dos anos 60 era muito diferente do que é hoje. Era de um abafamento existencial assustador. Prova disso é que praticamente não havia bares ao ar livre: era tudo huis clos, os lugares eram fechados e enfumaçados”, diz. “Hoje o panorama é radicalmente diferente. Não é só para fazer graça que digo que Belo Horizonte melhorou muito depois que me mudei de lá.”

Molho pardo

A decisão de Humberto de deixar BH teve apoio de dois amigos, fundamentais para que criasse coragem e embarcasse num ônibus da Cometa, rumo à Pauliceia Desvairada, em 15 de maio de 1970. Um é o poeta modernista Emílio Moura. “Tive a sorte de conviver com o doce Emilio Moura, da turma juvenil de Drummond e Nava nos anos 20. Ele sempre visitava a redação do Suplemento Literário do Minas Gerais, onde trabalhei de maio de 1968 a maio de 1970”, recorda.

“Um dia, perguntei a ele por que tantos escritores mineiros batiam asas para o Rio ou São Paulo. Emílio, que sempre me pareceu ter se arrependido de não ter feito o mesmo, me disse então com uma ponta de melancolia: ‘Aqui, Humberto, você publica um livro e não acontece nada. Publica o segundo e é a mesma coisa. De modo que o terceiro você já nem escreve. Minas é um carrascal’”.

Os escritores José Márcio Penido, Emílio Moura, João Paulo Gonçalves, Autran Dourado, Carlos Roberto Pellegrino e Humberto Werneck (da esq. à dir.). Belo Horizonte, 1968 (Acervo pessoal)

O poeta e psicanalista Hélio Pellegrino, que se radicou no Rio, foi outro que o incentivou na mudança. Em dezembro de 1969, Hélio esteve em Belo Horizonte para enterrar o pai. No dia seguinte, foi com Humberto comer o famoso frango ao molho pardo do restaurante Maria das Tranças.

“Fui com meu amigo Carlos Roberto Pellegrino, meu companheiro de cela no DOPS e primo do Hélio. Um de nós deve ter puxado o assunto da diáspora dos escritores mineiros, pois de repente o Hélio, com aquele vozeirão bonito que não impressionava apenas o Nelson Rodrigues, começou a nos conclamar a fazer as malas. Sob o risco, acrescentou enfático caso ficássemos em Belo Horizonte, de virarmos secretários da Educação.”

“Nesse momento”, conta, “chegou a travessa fumegante do frango ao molho pardo. Hélio cortou o discurso, deu uma cafungada no vapor, virou-se, sacudiu os punhos cerrados e exclamou, veemente, com uma certeza mais de psicanalista do que de poeta, separando bem as sílabas: ‘Minas é um útero pantanoso!’”

O cronista, que sempre se diverte ao contar a história, arremata: “com todo o respeito ao cargo e a quem o assumiu um dia, nunca lamentei não ter virado secretário da Educação”.

*

Editor sênior da Quatro Cinco Um, Humberto Werneck completa oitenta anos em 10 de fevereiro. Dando um tempo na redação da biografia de Carlos Drummond de Andrade que deve ser publicada em breve pela Companhia das Letras — “um dos dois sai este ano: ou o livro ou autor”, ironiza —, nesta conversa ele relembra momentos da sua trajetória e outras histórias da sua Belo Horizonte natal.

Você saiu de Belo Horizonte há 55 anos. Mais precisamente, em 15 de maio de 1970. Que lembranças guarda daquele dia?
Lembro muito bem, embarquei para São Paulo no ônibus da Viação Cometa. O projeto inicial era ir para o Rio, mas no final dos anos 60 a diáspora mineira já não era mais para lá. Eu tinha um olho no Rio desde menino, porque era de lá a família do meu pai e porque era para o Rio que costumavam ir escritores e jornalistas mineiros, numa corrente inaugurada pela geração de Drummond. Mas na minha geração a maré virou.

Werneck e o escritor Carlos Drummond de Andrade (à direita) no Rio de Janeiro, em 1985

A diáspora entortou para São Paulo, com o surgimento de revistas como a Realidade e a Veja, que ofereciam salários bem mais gordos que os cariocas. Me lembro que no começo de 1970, antes de me decidir por São Paulo, farejei emprego no Jornal do Brasil, onde um copidesque [redator] em começo de carreira ganhava oitocentos cruzeiros novos, enquanto o [paulistano] Jornal da Tarde pagava 1 200. Tive que aceitar a realidade.

Resignado, peguei um ônibus da Cometa para São Paulo, bati na porta do Jornal da Tarde, onde quinze pretendentes disputavam duas vagas de foca [jornalista inexperiente] e, depois de um teste, fui escolhido. Passei três anos na redação, depois ganhei bolsa do governo da França para o Institut Français de Presse, em Paris. O Jornal da Tarde começou a me pedir reportagens na França e em outros países da Europa, em número cada vez maior. Quando vi, virei correspondente. Foi ali a minha verdadeira formação como repórter.

E o jornalista João Etienne Filho, que importância teve?
O Etienne foi uma das pessoas mais importantes da minha vida. Ele foi meu professor no então Colégio Estadual de Minas Gerais e também apitou partidas de basquete que disputei pelo juvenil do Minas Tênis Clube. Era, na sisudez daqueles tempos, um homossexual notório, e suas unhas manicuradas alimentavam cochichos no colégio.

‘Os escritores mineiros costumavam ir para o Rio, mas nos anos 60 a diáspora entortou para São Paulo’

Um dia, ali pelos meus dezesseis anos, meu pai humildemente se reconheceu incapaz de me orientar na literatura e recomendou que eu procurasse o Etienne, então secretário de O Diário — autointitulado “o maior jornal católico da América Latina” —, cuja redação ficava na rua Goitacazes, a poucos metros do consultório dentário do meu pai. Etienne me recebeu com enorme simpatia e me recomendou os livros que eu deveria ler se quisesse me tornar um grande escritor. Contei numa crônica [“Por que não me tornei um grande escritor”] em 2010:

Com sua letra redonda, foi enchendo cinco laudas, a primeira delas encabeçada por, é claro, Machado de Assis. Depois vinham Alencar, Monteiro Lobato, por que não?, Mário de Andrade, Guimarães Rosa, Clarice, o ainda mal conhecido Trevisan, Sabino, Lygia Fagundes Telles, Osman Lins, o Minha vida de menina, de Helena Morley. No time dos estrangeiros, o Etienne escalou Tchekhov, Maupassant, Eça, Henry James, Mark Twain, Poe, Cervantes, Dorothy Parker, o Rilke das Cartas a um jovem poeta. Li todos esses, mas não Aquilino Ribeiro, Fialho d’Almeida e Trindade Coelho, assim como não desbastei uma bibliografia católica onde havia Os santos que abalaram o mundo. É tarde para lamentar, mas nessas omissões pode estar a explicação para o fato de não ter me tornado um grande escritor — assim como
a perspectiva do Inferno em que, começo a crer, haverei de arder de corpo e alma.

Em outubro de 1986, trabalhando na IstoÉ, resolvi fazer matéria de capa sobre o Etienne para a edição mineira da revista, sob o título “O minerador de talentos”. Capa e cinco páginas, para retribuir até matematicamente aquela lista de leitura que ele fez para mim. Pouco animado quando lhe propus a matéria, o Etienne ficou emocionado quando viu a revista. Tão emocionado que me presenteou com meia dúzia de raridades editoriais da sua biblioteca.

O que o Colégio Estadual de Minas representou para você?
Ser aluno do Colégio Estadual foi das experiências mais importantes e decisivas em minha vida, talvez menos pela excelente qualidade do ensino do que pelo clima de liberdade que reinava no revolucionário campus desenhado pelo Niemeyer, inaugurado no ano em que lá entrei, 1956. A liberdade, em boa medida, era determinada pela escassa quantidade de inspetores de disciplina, suficientes no antigo prédio do colégio, na avenida Augusto de Lima, mas não para a vastidão do novo campus.

Foi num jornalzinho do Estadual, A Inúbia, criado décadas antes pela turma do Fernando Sabino, que fiz a minha estreia tipográfica em novembro de 1962, com um texto metido a engraçado que chamei de “Férias no Paraíso” — relato de uma bagunçada visita que a humanidade fez ao Céu dos cristãos a convite do Criador. Na capa da mesma edição saiu uma matéria sobre a visita de um ex-aluno famoso, um senhor de 39 anos chamado Fernando Sabino. No assanhamento dos meus dezessete anos, pedi e ganhei autógrafo no meu exemplar de O encontro marcado.

O encontro marcado foi a leitura mais impactante da sua adolescência? 
Acho que sim. O livro foi leitura fundadora para a minha geração. O romance saiu em 1956, e no ano seguinte algum colega me mostrou e segredou que nele tinha “sacanagem”. Pedi emprestado e constatei: tinha sacanagem sim, moderada, mas tinha. Até então Fernando Sabino era para mim o irmão mais novo do doutor Gerson, nosso vizinho e ex-técnico de basquete do meu pai no Minas Tênis Clube. Perdi a conta das vezes que li O encontro marcado, e em cada uma delas saí enriquecido. Muitos dos autores que li na adolescência eu cacei porque apareciam no livro, incendiando a minha curiosidade.

Com exceção da bula literária do Etienne, minha formação literária foi caótica, errática e por isso, não raras vezes, errada. É testemunha disso o ótimo contista e romancista Jaime Prado Gouvêa, criado no mesmo cipoal das letras. Sigo admirador de Fernando Sabino, e nos vinte anos de publicação d’O encontro marcado fiz questão de entrevistá-lo para as “Páginas Amarelas” da Veja, onde trabalhava. Aproveitei para pedir mais um autógrafo, dessa vez num exemplar da primeira edição do romance.

Duas faces foi outro livro fundamental. Ele reúne sete contos de Ivan Angelo e duas novelas de Silviano [Santiago] e saiu por uma editora mineira em 1961. Não demorei a ler, sobretudo por causa da prosa do Ivan, que eu lia com frequência na imprensa de Belo Horizonte. Sua ficção era diferente da maioria do que então se produzia no Brasil, porque o Ivan Angelo não se filiava à tradição bebida na literatura francesa, fonte que então predominava no Brasil.

Me impressionava tanto que aos vinte anos decidi procurá-lo e pedir que lesse um conto meu. Ivan Angelo foi acolhedor desde aquele primeiro contato. Fui reencontrá-lo em maio de 1970, quando cheguei em São Paulo e fui batalhar trabalho no Jornal da Tarde, onde ele trabalhava desde o começo, em janeiro de 1966 — na verdade antes disso, pois participou dos primeiros passos do jornal, meses antes da chegada às bancas. Era secretário da redação. Haveria muito o que falar do Ivan Angelo jornalista, caso muito raro de chefia que não se afobava nem dava faniquito. Mas fiquemos aqui com os sete contos de Duas faces. Nos anos 80, ele retocou seis daqueles contos e do sétimo, “Dénouement”, fez uma trilogia que está na coletânea A face horrível e tenho na conta de aula de bem escrever.

O mais legal é que o Ivan acabou se tornando um dos seus mais fraternos amigos
Verdade. Tenho o prazer de estar ligado a Ivan por uma camaradagem não só literária, que de uns anos para cá se reforça com a circunstância de sermos vizinhos no bairro das Perdizes, em São Paulo. Com ele e outros amigos temos encontros semanais, faz tempo, numa padaria das redondezas, programa que, por se realizar às quintas-feiras, chamei de “café de quinta”. Somos companheiros, também, num grupo de bairro criado pelo Frei Betto e por ele batizado Academia de Litros.

Se não estou enganado, foi na biblioteca do seu avô José Azeredo Coutinho, o vovô Santos, que você encontrou um livro que até hoje gosta de reler: As amargas, não, do Alvaro Moreyra. O vovô Santos foi importante na sua formação?
Sem sombra de dúvidas. Vovô Santos me deixava mexer à vontade na pequena biblioteca dele. Hoje já não me lembro mais se foi ele que me apresentou As amargas, não ou se fui eu mesmo que me interessei pelo livro. De qualquer maneira, foi um interesse imediato. Um achado! Nunca tinha visto um livro composto de textos miúdos. Bom de ler e, pensava eu, fácil de escrever. Vovô me deu de presente e por isso o conservo até hoje. Mais tarde, comprei outros livros de Alvaro Moreyra. O pequeno escritório doméstico do vovô Santos, na mesma quadra onde eu morava, era um refúgio gostoso. Usava a mesa dele, na época se dizia “birô”, também para escrever. Me lembro de ter escrito ali, já grandinho, aos 21 anos, pelo menos um conto: “Vagalume”.

Foi lá que leu, menino, a coleção de Machado de Assis que você conta ter lido tudo, sem entender quase nada?
Não. A coleção ficava na casa dos meus pais. Eu devia ter uns doze anos, foi em 1957. Eles compraram as obras completas de Machado. Eram 32 volumes da Jackson, encadernados em percalina verde. Não me lembro por onde comecei, mas encasquetei que ia ler de ponta a ponta, e li, inclusive poesia e não ficção, naturalmente sem captar muito do que lia.

Seus pais tinham muitos livros?
Não muitos. O que eu me lembro bem é que minha mãe, durante um tempo, encapou no capricho nossos livros. Ela usava folhas de papel manilha inglês, com o cuidado de colar na lombada uma etiqueta para numerar. Monteiro Lobato, claro, Tarzan na coleção Terramarear, os romances da Condessa de Ségur, [a série] Caçando e pescando por todo o Brasil… Uma fartura de leituras fascinantes. Minha mãe conservava uns poucos livros de seu tempo de aluna do Colégio Santa Maria, nos anos 30, e dois deles eu surrupiei e guardo até hoje: um estudo clássico da vida e obra de Machado de Assis, da Lúcia Miguel Pereira, e uma antologia escolar organizada por Eugênio Werneck.

Eles assinavam jornais? Quando começou seu interesse por jornalismo?
Assinavam O Diário e o Lar Católico. Além dos dois, eu lia as crônicas que saíam nas revistas O Cruzeiro — Rachel de Queiroz, Gilberto Freyre, João Condé — e na Manchete — Rubem Braga, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, até mesmo Henrique Pongetti, uns degraus abaixo desses três. Não dá hoje para imaginar uma revista semanal de variedades que trouxesse cronistas da estatura do Braga, do Sabino e do Paulo Mendes Campos.

Começou aí então seu interesse pela crônica
Acho que sim. Na Manchete eu aprendi a gostar de crônica, uma leitura gostosa que, embora servida num veículo de imprensa, nada tinha de jornalismo. E os autores estavam vivos! O que não era pouca coisa: até então escritor, para mim, era um homem barbudo ou de chapéu, necessariamente falecido. Aqueles velhos embalsamados nos manuais de português.

Werneck e o escritor Carlos Heitor Cony (à esquerda) no Rio de Janeiro, em 1997 (André Durão/Acervo pessoal)

Ainda tenho, na quinta edição, de 1957, o Português no colégio: gramática e antologia, de Raul Moreira Léllis, onde o autor mais novo, representado por quatro sonetos, é o poeta Guilherme de Almeida, nascido em 1890. Enquanto isso, a Manchete nos trazia Rubem Braga, com pouco mais de quarenta anos, e Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos, que não tinham chegado aos 35.

Em 1960, Sabino e Braga criaram a Editora do Autor, que entre outros gêneros publicou fascinantes coletâneas de crônicas, deles e de outros autores, e foram sucesso de livraria. Aos quinze anos, fiquei maravilhado. Naquele momento, professores de português mais atentos largaram as velhas antologias e adotaram livros da Editora do Autor. Considero esse acontecimento um dos mais cintilantes dos chamados anos JK, que tanta coisa nova trouxe aos brasileiros.

Imagino que deva ter sido por esta época que você começou a editar o primeiro jornal na vida, O Zoiúdo.
Foi mais ou menos por aí mesmo. O jornalzinho era mimeografado. O nome O Zoiúdo era inspirado num garçom de olhos esbugalhados que trabalhava numa lanchonete em Belo Horizonte chamada Nacional. Deve ter tido meia dúzia de edições, das quais conservo duas. Não tinha literatura nossa, não tinha sequer pauta. Era um amontoado de fofocas e noticiazinhas da nossa turma juvenil do bairro São Pedro, da qual, aliás, fazia parte a Dilminha — ela mesma, Dilma Rousseff, figura apagada na turma mas objeto, se bem me lembro, de uma daquelas notinhas.

‘Uma das figuras que fazia parte da nossa turma era a Dilminha, ela mesma, Dilma Rousseff’

Os editores eram eu, o Sérgio Werneck Muniz, o Flávio Orsini Nunes de Lima e o Carlos Henrique Magalhães Marques. Sou o único sobrevivente — eu e minha máquina de escrever Lettera 22, usada na feitura d’O Zoiúdo. Ela resistiu ao vaivém do repórter que foi à Europa trabalhar como correspondente do Jornal da Tarde baseado em Paris, nos anos 70. Resistiu a mais que isso: aos poemas para lá de esquecíveis que andei escrevendo no final da adolescência. Para justificar mesada extra para o filho que fumava e bebia, meu pai me passava escritos dele para datilografar.

Nos primeiros anos da Faculdade de Direito você ganhou um concurso de contos. Que lembranças tem desse período?
Bem, estamos falando de 1965, ano em que entrei na Faculdade de Direito, com planos de a certa altura fazer o concurso do Instituto Rio Branco e me aventurar pela carreira diplomática, pensada como meio de bancar uma vida de escritor. Na faculdade fiz algumas de minhas amizades fundamentais, sobretudo num grupo em que havia vários aspirantes à literatura. Sérgio Sant’Anna era um deles e ainda não tinha escrito um conto sequer. Em 1966, num time de nove que incluía o Sérgio e o futuro chanceler e ministro do Supremo Francisco Rezek, ajudei a fazer uma revista mimeografada que alguém da turma chamou de Porta:, assim mesmo com dois pontos. Tive dois contos ali, um deles premiado num concurso do qual um dos jurados era o contista Murilo Rubião.

Em 1966, o Murilo Rubião criou o Suplemento Literário como encarte semanal do Minas Gerais, o diário oficial de Minas. Ele te convidou para trabalhar lá desde o início?
Foi depois. Minha primeira colaboração foi em 1967. E para a redação mesmo só fui no ano seguinte. Ele me propôs substituir o José Márcio Penido, que tinha ido para o Jornal da Tarde. Passei ali dois anos redondos, numa das experiências mais ricas da minha vida. Murilo comandava, é claro, mas nos dava corda. Foi o comandante mais generoso e democrático de que tenho notícia, pois dava oportunidade de publicar mesmo àqueles jovens cuja produção passava a léguas do seu gosto pessoal.

Werneck, Luci Teixeira e Murilo Rubião, fevereiro de 1969 (Acervo pessoal)

A redação era visitada praticamente todos os dias por gente da patota literária jovem: Sérgio Sant’Anna, Luiz Vilela, Jaime Prado Gouvêa, que mais tarde o Murilo incorporou à redação. Também apareciam por lá os poetas Emílio Moura e Bueno de Rivera. Estar com Emílio Moura num quase dia a dia foi para mim uma sorte das maiores. Outro, Afonso Ávila, pertencia ao conselho do Suplemento. Havia também visitantes provenientes de outras praças, como Haroldo de Campos, Cyro dos Anjos, Fernando Sabino, Hélio Pellegrino.

Foi no Suplemento que você entrevistou a Clarice Lispector. Sei que foi uma experiência traumática
Foi um desastre que me deixou arrasado, e por um bom tempo me impediu de seguir lendo a escritora. Eu não tinha experiência nenhuma como entrevistador, deve ter sido a segunda entrevista que fiz na vida. E já na primeira pergunta errei em cheio, o que provocou reação bravíssima de Clarice.

Werneck entrevista Clarice Lispector na redação do Suplemento Literário do Minas Gerais, em agosto de 1968 (Acervo pessoal)

Há na internet uma foto em que estamos lado a lado no sofá do Suplemento Literário, ela me fuzilando com os olhos e eu de cabeça baixa, prestes a pedir licença para ir lá dentro me suicidar. Não sei como consegui levar até o fim a entrevista. Quando foi editada, não tive coragem de assinar e só fui ler muitos anos depois. Contei isso numa crônica cujo título já diz tudo: “Meu traumatismo ucraniano”.

O contista Murilo Rubião também foi importante na sua trajetória, certo?
Sem dúvida nenhuma. Ele me dava a imerecida honra de palpitar nas versões mais recentes de seus contos, alguns deles publicados pela primeira vez antes do meu nascimento. Murilo me incentivava a estrear em livro, para não fazer como ele, dizia, que só rompeu sua virgindade editorial já entrado na casa dos trinta anos. Cheguei a me animar e montei um livro com onze contos, que chamei de Primeiro movimento. Entreguei a ele em abril de 1970 — e imediatamente me arrependi. Pedi de volta, ele resistiu, acabou devolvendo.

Por que desistiu de publicar o livro?
A explicação que me dei, duríssima, foi a constatação de que eu não era nem remotamente o grande escritor que desde a adolescência sonhava ser. Eu estava numa crise abissal, não só literária, crise generalizada, torvelinho que no mês seguinte me levou a deixar o Suplemento, a casa dos pais, Belo Horizonte — e também a literatura, decidido a ser exclusivamente jornalista e em outra praça.

‘Por mais que exista o plano de voo, na aventura da arte há sempre um tanto de voo cego’

Anos depois, mais amadurecido, me dei conta de que um orgulho de moço tinha me levado a recusar o gesto natural que teria sido dar humildemente o rosto a bater, até porque só assim me livraria de um fantasma no armário. Delivrar o livro para livrar-me dele. Com isso, tinha perdido o bonde, porque aqueles eram contos de mocidade, não faria sentido publicá-los tantos anos depois. Quando me aproximava dos sessenta anos, decidi publicar por conta própria, numa edição de apenas quinhentos exemplares, numerados, rubricados, fora do comércio, para distribuição a amigos.

Os onze contos passaram a ser nove, porque tirei dois que me pareceram juvenis demais. Curiosamente, ganhadores dos dois primeiros lugares de um concurso mensal de contos da Prefeitura de Belo Horizonte, em 1964. O fato de agora serem nove me levou a inventar um nome de editora, a NoveFora, assim com as palavras grudadas, pois achava que livro, mesmo fora do comércio, deve ter todos os penduricalhos de um livro, inclusive colofão e ISBN. Mudei o título para Pequenos fantasmas. Naquela altura fiz uma pequena e radical modificação num conto escrito aos 21 anos, que permaneceu inédito durante quatro décadas porque não me convencia. A intervenção me levou a considerá-lo digno de publicar.

Como se chama esse conto?
Chama-se “Oito anos”, e tem a ver com a forma como reagi à morte de uma irmã quando eu estava às vésperas de completar essa idade. Além desse conto, acrescentei ao livro uma nota breve explicando por que só então publicava aqueles contos de moço. Insisti no argumento do orgulho do moço ambicioso que se descobre escritor pequeno.

Só aos setenta anos me caiu a verdadeira ficha: sem prejuízo da descoberta da minha pequenez literária, o que me levou a pegar de volta os originais entregues a Murilo Rubião foi a consciência, agora nítida, inescapável, de que, lá na juventude, o que me fez fugir, sem saber que fugia e muito menos por quê, foi algo que ainda não me chegava à consciência, mas que mesmo assim me atormentava: a constatação de que a criação artística, quando é para valer, nos leva a dizer de nós o que não sabíamos e que, às vezes, preferiríamos não ficar sabendo. Aquilo que Fernando Sabino gostava de repetir: o escritor de ficção escreve não porque saiba, mas para ficar sabendo. Por mais que tenha armado o plano de voo, na aventura da arte há sempre um tanto de voo cego.

Quem escreveu esse texto

João Pombo Barile

Jornalista, é diretor do Suplemento Literário de Minas Gerais. Desde 2011, dirige o Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura.

Matéria publicada na edição impressa #90 fev em fevereiro de 2025. Com o título “Mineiro exportável”

Para ler este texto, é preciso assinar a Quatro Cinco Um

Chegou a hora de
fazer a sua assinatura

Escolha como você quer ler a Quatro Cinco Um.

Sol, sombra
e boas leituras

Faça uma assinatura anual com até 56% de desconto e ganhe uma ecobag exclusiva.