Literatura brasileira,
Testamento irreverente
Irônico e inovador, Sérgio Sant’Anna não virou medalhão da literatura brasileira — e não estava nem um pouco preocupado com isso
30jul2021 | Edição #48Em “Estouro e Libertação”, Antonio Candido chama a atenção para o preço que Oswald de Andrade pagou por sua irreverência. Sempre metido em polêmicas, seu jeito brigão e histriônico acabou por ofuscar sua obra. Segundo o crítico, era preciso destrinchar o escritor do personagem de lenda: “O sr. Oswald de Andrade é um problema literário. Imagino, pelas que passa nos contemporâneos, as rasteiras que passará nos críticos do futuro”.
O texto de Candido me veio à mente após a leitura de O conto não existe, de Sérgio Sant’Anna. Não que Sérgio fosse tão encrenqueiro quanto Oswald. Mas a irreverência, no melhor estilo oswaldiano (característica já assinalada por críticos como Flora Süssekind e Malcolm Silverman), foi uma de suas marcas registradas. E, assim como o poeta paulista, desconfio que Sérgio também pagou um preço por ela.
Em praticamente todas as entrevistas e ensaios da antologia podemos sentir sua ironia. O livro explicita como a consciência (e seriedade) com que Sérgio encarava o ofício de escrever impediu que se transformasse em algo comum na literatura brasileira: o medalhão. Sempre aberto para o novo, ele não deixou, até o fim, de experimentar. E de praticar a autocrítica.
Os textos explicitam como a amizade com o poeta Affonso Ávila e a sua participação no Programa Internacional de Escrita da Universidade de Iowa foram seminais para a formação do mais importante escritor de sua geração. Desde sua estreia com O sobrevivente (1969) Sérgio nunca pareceu muito preocupado com o último modelito ou tendência literária. Naqueles anos de chumbo, o romance de temática social, às vezes explicitamente político, nadava de braçada. E o grande pecado era ser tachado de alienado.
Sérgio não estava muito preocupado com isso. E escolheu se arriscar por outros caminhos. Leitor atento de Alfred Jarry, Boris Vian, Donald Barthelme, além de grande admirador do diretor de teatro Bob Wilson, o contista sempre preferiu não misturar militância política e arte, apesar de ter participado da Ação Popular (AP): “Todo mundo de certa forma era político, só que eu não me conformava com esse papel. Eu tinha convivido com sindicalistas e visto que a cabeça deles era limitadíssima, de comunista clássico. Depois, em maio de 1968, eu era bolsista na França, onde tive ainda certeza de que a esquerda com quem eu tinha contato, do Partido Comunista, estava ultrapassada”.
Em praticamente todas as entrevistas e ensaios da antologia podemos sentir sua ironia
É impressionante constatar a determinação, ainda muito jovem, do carioca que naqueles anos vivia em Belo Horizonte. Na entrevista aos amigos Humberto Werneck e Carlos Roberto Pellegrino, Sérgio sabia bem aonde queria chegar: “O óbvio ululante é que somos um país subdesenvolvido. Há milhares de problemas quanto ao livro: poucos leitores e, consequentemente, a timidez dos editores. Sem uma profissionalização adequada não floresce uma literatura vigorosa. Aos novos, por exemplo, não lhes é dada qualquer oportunidade editorial. O sujeito só continua escritor quando é muito teimoso. Mas felizmente vejo no ar uma boa dose de obstinação”. E não desistiria. Quase cinquenta anos depois, naquele que é o seu melhor perfil biográfico, ele confessaria ao jornalista Bernardo Esteves: “Parei com tudo pela literatura”. Quem conheceu Sérgio sabe da verdade dessa frase.
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Mas voltemos à sua irreverência. A ironia nunca foi mesmo o forte de nossa tradição literária. Aqui fico só em dois exemplos: Memórias de um Sargento de Milícias e a obra de Machado de Assis. Manuel Antônio de Almeida demorou quase um século para ser estudado por nossa crítica e se transformar em cânone — aliás, também graças a Antonio Candido. Já a ironia machadiana não foi compreendida em sua época. Até os modernistas gostavam de rotular de “passadista” aquele que foi um dos mais importantes escritores do século 19 no mundo.
A recepção dos livros de Sérgio guarda certa semelhança à dos dois escritores do século 19. Autor de uma obra que talvez seja um dos mais perfeitos retratos das transformações na sociedade brasileira do último meio século, Sérgio nunca experimentou uma explosão de vendas, como aconteceu com Rubem Fonseca nos anos 80. Seu romance-teatro A tragédia brasileira, que considerava sua obra-prima, não ganhou ainda a atenção merecida. Seja da crítica, seja dos leitores.
Ensaios
Se a primeira parte do livro reúne entrevistas com o escritor de Confissões de Ralfo, a segunda parte é uma excelente antologia de ensaios de Sérgio. Embora ele mesmo não levasse tão a sério esses textos escritos ao longo de quase meio século, juntos eles têm uma unidade e força impressionantes. E o texto que dá nome ao livro é mesmo o melhor. Divertido e, claro, muito irônico, trata-se de uma espécie de testamento literário.
No meio da ditadura, Sérgio solta a língua e dispara para todos os lados: “O caso é que não existe arte sem INVENÇÃO. É próprio do homem partir em busca do NOVO, mesmo quando este novo se encontre na revisão do passado, dentro de uma tradição”. Em outra parte, sobra até para a turma da vanguarda: “Mas um perigo da chamada vanguarda é a sua também estratificação. Quando ela deixa de ser vanguarda, mas continua se chamando como tal. E aquilo que era ‘ponta de lança’ se transforma em polícia cultural, inibindo as novas gerações, impedindo o novo de aparecer. Um processo academizante”. Impressionante a atualidade do texto, que é de 1973.
Enquanto teve saúde, fosse em Minas ou no Rio, Sérgio adorava a vida social
Enquanto teve saúde, fosse em Minas ou no Rio, Sérgio adorava a vida social. O encontro. Sua mesa cativa no bar Saloon, em Belo Horizonte, era famosa por reunir, diariamente, amigos como Fernando Brant, Jaime Prado Gouvêa, Sebastião Nunes, Adão Ventura e Tavinho Moura. Mas aqui, atenção: Sérgio nunca confundiu amizade com a tal “vida literária”. Ele nunca foi o tipo de escritor que gosta de fazer média. Pelo contrário. Em 2018, em uma das suas últimas aparições em público, provocou alguns risos amarelados na Flip: “Tenho a opinião de que no Brasil está se escrevendo demais. O Brasil tem que ter mais leitores e menos escritores”.
No último ano de vida, Sérgio andava bastante desgostoso com os rumos que o Brasil vinha tomando. E usava o Facebook para descarregar sua raiva e (muita) tristeza. O país, escreveu em uma de suas últimas postagens, parecia ter virado um grande pesadelo. Um ano depois de sua partida, ainda não acordamos deste pesadelo. E sua irreverência faz uma falta danada.
Este texto foi realizado com o apoio do Itaú Cultural.
Matéria publicada na edição impressa #48 em junho de 2021.