História,
‘A minha geração falhou’
Lilia Schwarcz critica a cegueira de sua geração perante a ascensão de Jair Bolsonaro e defende a academia, a ironia e o textão nas redes
01jan2022 | Edição #53Lilia está sentada em um canapé, uma perna debaixo da outra, as mãos cruzadas sobre o joelho de cima. De vez em quando as mãos perdem-se desse lugar seguro e abrem-se no ar para dar largas ao entusiasmo com que fala do Brasil. Nesses gestos, no olhar por detrás das lentes dos óculos, há paixão, há zanga, às vezes um silêncio vincado que tanto interpela como pode simbolizar uma impotência em que Lilia não se quer deixar cair. Por isso fala, escreve, vai para as redes sociais exercer o seu direito ao protesto, ao desmontar do que considera serem ameaças à democracia.
Democracia. Como reconquistá-la, ou não perdê-la, ou tê-la em mente sempre, mesmo na sua imperfeição? Lilia Schwarcz nunca a perde de vista quando escreve sobre autoritarismo no Brasil, quando traça o perfil de seu país e vê nessa história traços de um sistema autoritário que tende a não se apagar e, a tempos, se revela como uma força maior.
Lilia, historiadora, antropóloga, biógrafa, escritora, que não se assume exactamente como uma intelectual pública, mas que quer interferir, ajudar a pensar e a agir num momento crucial na história do Brasil. Alguém que não se completa na academia e vê a rua, o espaço público, como uma paisagem de acção, espaço de ideias, discussão e conversa. A pólis, como a entendiam os gregos.
O olhar sempre vivo de Lilia não se permitiu ficar mais opaco na vila de Óbidos, em Portugal, ao longo do Festival Literário Fólio, do qual participou como autora no final de 2021. Mas emocionou-se, a espaços, a desfazer mitos e ideias feitas que tornam mais duro o combate pela democracia, a tal democracia que considera em risco. É em nome dela que age sem pretender conquistar tipo algum de papel político. O seu jogo, garante, é o jogo da cidadã. Inquieta, inconformada, actuante. Que aprendeu a usar as redes sociais para chegar a mais gente. E chega todos os dias a mais alguém.
Mais Lidas
A sua actuação no Brasil é muito próxima do que em tempos se chamava de intelectual público, uma figura que vai dando referentes para pensar. Como se vê nesse papel?
Não me vejo exatamente como tal. Continuo a fazer o que fazia. Sou uma pessoa da academia, curadora adjunta no MASP, mas fui formada para ser isso que se chama de intelectual pública. Fiz escola pública, fiz universidade pública, dou aulas numa universidade pública e acho que, sobretudo neste momento, a universidade tem a obrigação de sair um pouco da sua redoma, do seu lugar de conforto. Minha orientadora, Manuela Carneiro da Cunha, sempre chamou atenção para o fato de uma atividade complementar a outra. Ela escreveu o capítulo sobre os indígenas na Constituição de 1988; tem um papel fundamental na preservação da floresta, na discussão do marco legal, na discussão sobre as terras indígenas. Eu tive uma influência muito grande da Manuela. E estou há um longo tempo dando aulas nos Estados Unidos, onde aprendi que os professores são muito avaliados pela sua atividade pública. No Brasil ainda há certo preconceito. As pessoas seguem muito a lógica do “ou”, e eu sou mais a lógica do “e”. Mas não sei se sou uma intelectual pública nesse sentido, não tenho nenhum papel político.
Não tem sequer uma pretensão?
Não tenho nenhuma pretensão política. Quero continuar no meu lugar, mas conversando com um público mais amplo em função do momento que o Brasil vive.
Para isso, para chegar aos outros, usa sobretudo as redes sociais. Sua relação com as redes alterou-se depois da eleição de Bolsonaro?
Ah, sim! Totalmente! Comecei no Instagram não tem muito tempo.
Quantos seguidores você tem? Todos os dias aumentam?
Sim, todo dia. Vamos olhar [pega o celular]. 369 mil. E no YouTube, 150 mil. Comecei no Instagram porque no MASP a gente tem o costume, quando vai fazer uma exposição, de soltar algumas imagens para ver se ela agrada e, naquela altura, me disseram que eu tinha de ter um Instagram. Até então, no começo de 2018, eu nem sabia do que se tratava. Quando fiz uma exposição com Boris Kossoy [“Um olhar sobre o Brasil”], ele me ajudou muito. Ele falava: “Hoje me traz três fotos suas”, e me dava bronca. “Como é que você corta o pé da pessoa?!” Comecei a gostar de fotografia e iniciei o Instagram com as imagens do MASP e as minhas fotos, e gostava.
Na época da eleição do Bolsonaro, por um acaso, fiz um post sobre o nosso atual ministro da Ciência, que se apresenta como o ministro astronauta. Eu tenho um pouco essa verve irônica e falei que ele era o ministro astronauta que vende travesseiros. Tive uma reação tremenda. Como sou um pouco teimosa, achei que tinha de responder às pessoas, e foi a primeira vez que deparei com coisas como letra maiúscula, símbolos de bomba. Para entender a minha ignorância àquela época, eu não sabia que se respondesse a uma mensagem para uma pessoa todo mundo ia ver, e quando os meus filhos falaram “Ó mãe, você está se dando bem no Instagram!”, eu falei: “Como vocês estão vendo a minha correspondência?, estão entrando na minha privacidade!”. Foi por essa altura que decidi que ia falar de todos os ministros, e falei de um a um.
Foi algo espontâneo…
Totalmente. E comecei a notar que quando eu não só falava com ironia, mas dava informações, as pessoas respondiam de forma muito grata. Isso é bonito de ver no meu Instagram. As pessoas, mesmo as que me criticam, me chamam de professora, e eu não sabia que não era do estilo do Instagram responder com tanta educação. Eu agradecia e, com isso, desarmava também. Foi assim, uma coincidência. Desde então eu coloco um post por dia.
Vê as redes como um lugar de ódio?
Não. Ouço as pessoas falarem muito do algoritmo e de como ele destrói. Eu não demonizo as redes. Já tive problemas pessoais, já tive que me enfrentar com as redes, mas aprendi a chegar a mais pessoas, a ser mais clara e a respeitar os meus leitores. Cada vez que solto uma postagem tenho o vício de olhar novamente em cinco ou dez minutos, porque se eu tiver cometido um erro de português ou errado um nome, vou corrigir. Há haters, mas também reparei que os meus lovers brigam com os haters.
Sei que esses governos autoritários foram eleitos através desses meios; sei que são governos retrógrados, populistas e tecnológicos; mas vi uma pesquisa que mostrava que a direita — e isso é histórico, vem do nazismo — sempre se cerca das últimas novidades tecnológicas. Veja a importância do rádio. E a esquerda diz “não”, “eu não gosto”, “eu sou contra”.
Assisti a um debate em que as pessoas diziam que, em vez do algoritmo, preferem o espaço silencioso da literatura. Eu também. Mas acho que o momento não nos permite a lógica do “ou”; acho que é a lógica do “e”. Quando estou escrevendo meus livros preciso dessa concentração, desse silêncio, mas acho que se não ocuparmos esses espaços eles serão totalmente ocupados pelo outro lado.
Vivemos num momento em que as pessoas não leem. E quando leem é quase sempre de forma literal. Como se houvesse um desaprender da leitura que não seja literal. As minhas postagens que vão melhor são aquelas em que analiso imagens. Isso é um treino da academia — e é por isso que digo que não sou uma intelectual pública.
Foi a academia que me ensinou a ler imagens. Quando trago uma imagem e a desmonto, desmonto as imagens do poder, ou desmonto as imagens da branquitude, que são os meus temas; desmonto as imagens do meio ambiente que são produzidas pelo governo. Não há ironia lá, então nem todos os meus posts são irônicos. Tenho uma ironia muito grande, é claro, com o presidente, mas esse é também o jeito de eu dar aula; sempre fui assim. Talvez a minha fase com a Companhia das Letras, que me faz escrever mais diretamente, ou mesmo a minha fase de alguns anos no museu, em que o pessoal diz: “Professora, texto de museu não é tese na parede. Seja mais generosa”. Uso a ironia, mas uso muito as armas da academia, e tento mostrar, neste momento de tanto obscurantismo, de tanta crítica à academia, o que a academia faz por nós.
Outra coisa que eu não sabia: nas redes, o meu texto é considerado um textão, e as pessoas leem. Vejo nos comentários que não leem apenas o começo ou o final. E agradecem. O meu público é muito jovem, majoritariamente jovem. O grosso acho que está entre dezenove e quarenta anos, um público que não viveu a ditadura militar, e então explico toda vez o que ela foi e quais os seus males. Explico a escravidão. Explico os meus temas e tento não entrar em temas que não são da minha especialidade, como a economia. Porque eu não quero errar.
‘O Brasil odioso e elitista sempre esteve lá, só esteve calado porque ao longo dos últimos trinta anos não era de bom-tom dar essa face pública’
Até que ponto essa eleição e este governo alteraram o seu pensamento sobre o totalitarismo no Brasil?
Totalmente. Uma atividade muito importante para mim foi escrever no jornal Nexo. Tenho uma coluna a cada duas semanas e é uma forma de me exercitar, e foi me transformando nessa questão. Fui muito incentivada a fazer paralelos entre passado e presente. E também escrevi sob encomenda da Penguin UK, junto com a Heloisa Starling, Brasil: uma biografia; um livro difícil, que os acadêmicos não tentam fazer, mas que era muito importante que duas mulheres acadêmicas tivessem feito. Isso tudo me deu muito traquejo, mas foi com a chegada do governo Bolsonaro que escrevi Sobre o autoritarismo brasileiro [Companhia das Letras, 2019]. Nunca escrevi um livro tão rapidamente, porque com a chegada do governo Bolsonaro eu digo que a minha geração falhou — sinto isso com muita profundidade.
Eu, pelo menos, mas acho que a minha geração também, no final da ditadura, com a Constituição de 88, com a redemocratização, podia gostar mais ou menos deste ou daquele presidente, achar que atuaram bem ou não, mas achava que a trilha estava dada, e que a trilha era a democracia. Ou seja, esse era o destino e o fim. A eleição de Jair Bolsonaro, esse candidato tão retrógrado, de extrema direita, odioso, sem experiência e sem afeto — isso é que me impressionou muito: ele não tem afeto —, isso mudou muito a minha escrita. Fiquei muito insurgente, muito revoltada e muito indignada.
‘O impeachment da presidente Dilma foi uma demonstração terrível de misoginia. Eram homens engravatados gozando nas mulheres’
Como é que setores progressistas nos quais me incluo podem não ver?! Já tinha acontecido nos Estados Unidos, Donald Trump tinha sido eleito. Nós não tínhamos essa desculpa. E sabíamos quem era Jair Bolsonaro. Ele estava na política havia 27 anos. Era um deputado federal com um projeto de lei a favor dos militares; não entrava em nenhuma equipe de trabalho porque não trabalha em equipe. E durante esses 27 anos já tinha agredido a comunidade LGBTQIA+, já tinha agredido negros, quilombolas, indígenas, mulheres, já tinha mostrado a sua misoginia, e mesmo assim os setores à esquerda no Brasil continuaram de salto alto achando que nada ia acontecer.
O que isso acrescentou à sua biografia do Brasil?
Meu livro foi muito bem recebido, vendeu muito no Brasil. Eu sou uma historiadora e uma antropóloga. Como historiadora, vejo muito o que muda, mas os antropólogos olham o que reitera, o que fica. Então o livro parte de duas suposições claras. A primeira é que o nosso presente está cheio de passado — mas não é um livro determinístico, de determinismo histórico. E a segunda é que nós sempre fomos autoritários.
Isso não mudou.
Não mudou. No começo fiquei muito encantada, eu e o Brasil, com as jornadas de 2013, mas ficou claro que eram duas avenidas que não se bifurcavam. E foi ficando muito claro que o espaço da rua estava sendo ocupado por setores de extrema direita. É um direito. Mas estava sendo ocupado.
Era um sinal?
Era um sinal. Que nós não notamos e acho que a esquerda não valorizou, e ficou tão feliz que montou esse consórcio entre PSDB e PT que também não é correto. E não entendeu — para isso a gente tem de fazer um mea-culpa — que o Estado tem de prover educação e saúde, que alguns presidentes da redemocratização tentaram prover melhor ou pior. E que cabe ao Estado prover ao cidadão e à cidadã a segurança. Essa era uma das plataformas corretas de Jair Bolsonaro. O Brasil é um país em que a segurança é um tema central. Claro que não concordo com o que Bolsonaro preconiza como saída, mas que esse é um tema legítimo e que havia sido descurado pelas esquerdas, isso é preciso reconhecer. Fui vendo, lendo esse Brasil muito odioso e muito elitista, muito ressentido, muito habituado à linguagem da desigualdade, que sempre esteve lá, só esteve calado porque ao longo dos últimos trinta anos não era de bom-tom dar essa face pública. Foi esse Brasil que apareceu, mas esse Brasil sempre esteve lá, nós é que não quisemos ver.
As elites intelectuais, os jornalistas não viram, como se apontou nos Estados Unidos?
Sim. Muitos jornalistas e as elites intelectuais menosprezaram o fenômeno Jair Bolsonaro, mas também os próprios políticos. Ficou muito evidente esse desconhecimento. Sabemos como o Brasil é feito de muitos Brasis, que se encontram e se desencontram. Mas nesse momento apareceu um Brasil que nós não reconhecíamos. Não era exatamente o Brasil da pobreza; era o Brasil dos homens brancos, de vinte a 35 ou quarenta anos, de classe média, homens muito ressentidos com os ganhos desses trinta anos de redemocratização, que culpabilizam os novos agentes sociais por eles terem perdido o seu lugar. Culpam as mulheres, culpam os negros, culpam os indígenas, culpam as populações LGBTQIA+, a que chamam de populações transviadas. É um grupo que tem a ver com o livro do Rubem Fonseca O cobrador: eles são um pouco vingadores, que é um pouco o clima que apareceu no Congresso em 2016, no impeachment da presidente Dilma.
Esse foi o ponto de virada?
Foi. Eu disse na época que nós destapamos ali o caldeirão do ódio do Brasil. Era uma demonstração terrível de misoginia no “Tchau, querida”, na alusão ao diálogo entre Lula e Dilma. Eles estavam gozando nas mulheres. Eram homens engravatados, todos defendendo as suas esposas, votando em nome dos filhos, da família, da cidade, mas ninguém votava a questão do crime de responsabilidade. Até agora não provaram. Foi um lesa-processo muito grande. Isso era evidente. Tanto que o Supremo rompeu ainda mais mantendo a eligibilidade da presidente Dilma. Se ela foi “impeachada”, não poderia. É uma grande demonstração da culpa do Brasil.
O que me interessa pensar é que essa vitória trouxe para o centro esse baixo clero da política formado pelo Centrão, e com esse baixo clero veio o grupo que o apoia. E trouxe uma parte do Brasil que era também muito desconhecida, que é esse Brasil do centro, o Pantanal, esse Brasil do agronegócio. E não tenho nada contra o agronegócio; eu sou contra o que eles representam, o tipo de política predatória que fazem, o Brasil que almejam, o projeto de futuro, que é um projeto de desigualdade, o velho projeto brasileiro de pouca gente mandando e muita gente obedecendo, dos grandes mandões locais, dos grandes latifundiários.
É esse projeto que pretende manter os negros para sempre numa situação de subjugação. Esse é um projeto da branquitude. A branquitude no Brasil é formada por um conforto ontológico. A branquitude é uma norma tão forte que não precisa ser nomeada, mas ela é critério de conhecimento, é critério de beleza e ascensão social. É esse grupo que está no poder que quer tirar as crianças com deficiência das escolas, que quer apagar a memória dos protagonistas negros que foram insurgentes, que quer passar a boiada no Pantanal, é esse grupo que quer dividir a população brasileira em rosa e azul.
Acha que há capacidade por parte da esquerda de fazer frente a isso?
Essa é a pergunta de 10 milhões de dólares. Eu, já no segundo turno entre Fernando Haddad e Bolsonaro — e quem sou eu? —, aderi a um grupo em que escrevemos um manifesto pela democracia. E o meu espanto foi que já naquele momento as pessoas não queriam se encontrar, e faltavam duas semanas. Sou uma espécie de afilhada por adoção do dr. Alberto da Costa Silva, que é um grande africanólogo, e ele sempre me dizia: “Minha filha, frente a gente faz com adversário, com amigo a gente vai a festas”. Agora li o atrito entre Dilma e Ciro Gomes, a rede de acusações. No Brasil, primeiro turno, vota em quem se quer; no segundo, se não formos capazes de formar uma geringonça, vamos de novo apanhar. Historicamente no Brasil a direita sempre segue junta.
Não é só no Brasil, não?
Não. E a esquerda se divide. Tenho muito receio se a esquerda vai ser capaz de mostrar que o Brasil é maior do que as nossas diferenças, que são diferenças importantes. Não estou minimizando-as.
Você se referiu à Constituição de 88 e estabeleceu uma comparação entre o que aconteceu no Brasil e nos Estados Unidos, mas nos Estados Unidos a Constituição é sempre apontada como uma fortaleza enquanto garante a democracia. Até que ponto isso também acontece no Brasil?
Escrevi sobre isso com a Heloisa Starling. Acho que a Constituição brasileira foi um feito muito memorável na história do Brasil. Para realizá-la uniu-se um grupo muito importante, muito múltiplo. A Constituição saiu imensa, naquelas suas trezentas e poucas páginas, e muito generosa com os direitos, muito ampla, aberta para as características do país. Mas tenho duas questões em relação a ela. Uma de ordem quase filosófica. Há um provérbio no Brasil que diz “Aos inimigos, a lei. Aos amigos, nada”. Às vezes brinco que a gente pode ter a melhor Constituição do mundo porque não há muito interesse em segui-la. Essa é uma primeira questão que a gente precisa pensar, sobretudo com esse grupo que está no governo, que só faz burlá-la.
E há outras duas partes da Constituição de que os constituintes abriram mão: a questão da reforma agrária, tema sempre adiado na agenda brasileira, e a questão da anistia geral e restrita. Porque essa anistia incluiu os militares. Então o que ela fez? Temos problemas com políticas de reparação. Os portugueses também, acho que é até pior. Mas nós, toda vez que se discute a questão da escravidão, alguém vem falar: mas teve escravidão na África. Na Europa também tinha. E toda vez você tem de dizer que foi uma escravidão mercantil, nunca existiu um êxodo desse tamanho. Foram 12 milhões de pessoas e foi uma coisa global; eles eram propriedades, mercadorias. Temos um grande problema em falar de reparações em relação à escravidão e em relação à questão racial, e tenho certeza de que não teremos uma democracia enquanto formos racistas. É preciso qualificar a nossa democracia.
‘Temos um grande problema em falar de reparações em relação à questão racial, e tenho certeza de que não teremos uma democracia enquanto formos racistas’
Há outra questão: praticamos o silenciamento em relação aos militares. O Brasil teve uma Comissão da Verdade em 2016. Parte do processo da queda da presidente Dilma foi porque os militares não a desculparam. E mesmo assim a nossa Comissão da Verdade não podia julgar. Só podia levantar os casos, não tinha arbítrio para prender os assassinos que estão à solta. Esse já era um ressentimento muito grande na sociedade brasileira, que ao mesmo tempo permite que os militares assumam um lugar de vanguarda, como se fossem fiadores da democracia, o que nunca foram.
‘Bolsonaro não precisa dar um golpe daqueles que a gente vê nas fotografias em que os tanques entram. Ele é o golpe. Todo dia’
No Brasil, toda vez que os militares se imiscuíram na política não foi para fortalecer a nossa democracia. Pense no golpe da República de 1889, pense em 1930, pense nas tantas quarteladas que tivemos até chegar a 64 — a que Jair Bolsonaro chama de golpe democrático, o que é uma contradição nos termos. Bolsonaro agora prometeu um ministério de sábios e temos o maior ministério militar da história do Brasil, mais do que durante a ditadura, e estão em posições-chave. Esse é um grande problema para as nossas instituições. Quando perguntam, junto com a Constituição, se as instituições brasileiras estão fortes, eu acho que é a pergunta errada, porque a gente tem que usar agora — e quem o diz é o jornalista Eugênio Bucci — o gerúndio. Porque a todo momento Bolsonaro está atacando a democracia. Ele não precisa dar um golpe daqueles que a gente vê nas fotografias em que os tanques entram, porque isso não vai resolver num país do tamanho do Brasil, mas ele é o golpe, o golpe todo dia. As pessoas me perguntam: “Mas, professora, a senhora tem que escrever sempre sobre o Bolsonaro?”. Tenho.
Toma isso como um dever cívico?
É um dever cívico, é o lugar da sociedade civil. Eu me recuso a naturalizar. Ele proíbe, por exemplo, a distribuição de produtos de higiene íntima da mulher, e as pessoas dão risada. É preciso falar, porque isso é um desrespeito às mulheres. As mulheres pobres do Brasil põem produtos sujos, não porque querem, mas por não ter recursos. Vivo num país em que uma parte muito significativa da população não tem acesso à água potável. E usam produtos abrasivos que as machucam. Esse é um problema social. Quando um presidente ri disso, o que ele está dizendo, o que está mostrando aos seus eleitores? Está fazendo escárnio das mulheres que sangram todo mês. Ao falar disso as pessoas acham que se está dando palanque. Não é dar palanque. É falar de algo terrível, das mulheres num país onde elas são maioria, mas uma maioria minorizada. Eu tomo esses casos como sintomas de outras coisas.
Há muitos anos que escreve sobre o Brasil. Perguntar-lhe o que é o Brasil é demasiado vasto, mas o que define a identidade brasileira?
Eu tenho trocado a ideia de identidade por posicionalidade. Porque agora também está muito na moda atacar o que foi chamado de identitarismo. Acho que é um uso equivocado do conceito, porque a identidade é sempre uma questão social, um contexto. É o mesmo engano quando se ataca o conceito de lugar de fala. Lugar de fala todo mundo tem, só que alguns têm mais do que outros. A questão do lugar de fala para mim não é o que é. É como é. Eu uso o meu lugar de fala, como branca que sou, com muito privilégio. E outras pessoas têm que usar o seu lugar de fala porque senão não falarão nunca.
O Norbert Elias diz que países mais antigos são fundados na sua identidade. Se tomarmos Eduardo Lourenço falando de Portugal vemos que ele diz que Portugal é um país marcado por excesso de passado, e que é um país particular porque viaja por toda parte, mas leva sempre a sua casinha. O Brasil é o contrário, é um Brasil que sempre se pensa como projeto de futuro. Se aliar isso às instabilidades políticas brasileiras, a um país acostumado a golpes, não a revoluções, a golpes das elites; e se aliar isso ao gigantismo do país e às suas condições tão diferentes, é muito difícil falar de uma identidade para o Brasil porque a nossa identidade é falha. Somos constituídos por tantos marcadores sociais da diferença — como gênero, raça, região, geração —, que faz com que seja muito difícil falar em nome do Brasil. O que uma pessoa do Sudeste disser não funciona para o Nordeste, não funciona para o Norte, muito menos para o Sul. Dirão: quem é essa paulista aí definindo? Acho que prefiro falar em posicionalidades. Acho que é isso que é o Brasil. Temos uma língua que nos une, mas nos separa; a gente sabe que a língua é assim. Tem gente que diz: a língua é que separa, a comida é o que une. Mas nem a comida nos une.
Você tem um trabalho de biógrafa em que escolhe figuras de algum modo ligadas à história do Brasil, que marcam uma posição nos temas que trabalha. Como as elege?
Eu fui socializada na academia a partir da ideia do jogo entre o indivíduo e a sociedade. O que o indivíduo produz como pensamento e de que maneira ele também está imbricado nessa rede que produz. Eu sou uma leitora de biografias, sempre fui, e a gente sabe que a biografia durante muito tempo padeceu de preconceito, porque ficou vinculada a uma história muito événementielle, porque só se fazia uma biografia para elevar. Era sempre um elogio. Eu queria fazer biografias críticas. Você tem que ter afeto pelo personagem, mas ao mesmo tempo pode se decepcionar. Como o Lima [Barreto]. Ele teve um grande biógrafo, o Francisco de Assis Barbosa, mas é muito interessante como ele não contou o que Lima dizia, por exemplo, do João do Rio, a questão da pederastia, como ele era duro em relação a isso. Um biógrafo não é um advogado de defesa nem um advogado de ataque. Ele não é nem promotor nem defensor.
Eu trabalho muito com as ideias de geração e de trajetória. Uma biografia é uma ponta de lança para eu entender um mundo. O Lima Barreto, por exemplo, é o Lima, mas é o contexto da Primeira República, é o racismo na Primeira República, é o que era o jornalismo, o que eram os subúrbios, o que era a Academia Brasileira de Letras. E uso muito o que dizem dois historiadores: um é o Carl E. Schorske, que escreveu Viena fin-de-siècle [Companhia das Letras, 1988], livro magistral que mostra a biografia como uma espécie de tecelagem; tece o personagem e o contexto ao mesmo tempo. E gosto muito do Carlo Ginzburg quando ele analisa o Menocchio, em que diz que ele não era representativo e, ao não sê-lo, era muito mais interessante do que as pessoas representativas. Parto um pouco desse princípio para o Lima. Ele foi uma imensa exceção no seu momento. Se até há pouco tempo não se falava da questão racial no Brasil, imagine no início do século 20! Era uma pessoa totalmente fora, por isso nunca entrou na academia, por isso sempre foi uma pessoa deslocada.
À margem.
Totalmente à margem. Eu me interesso por esses personagens que são centrais e são à margem. D. Pedro 2o é central, mas o meu D. Pedro é um pouco à margem também, porque produz esse romantismo palaciano, ou seja, esse indigenismo universal. D. Pedro é um grande farol, um grande sintoma para entender o contexto do Segundo Reinado no Brasil. E o Taunay [Nicolas-Antoine Taunay]? É um personagem pelo qual me encantei. Eu não ia fazer uma pesquisa sobre uma pessoa, ia fazer uma pesquisa sobre o que a gente chama de missão francesa. Descobri junto com outros autores, inclusive o Mário Pedrosa. Não exista uma missão. Era uma colônia de artistas totalmente dividida, e aí foi-me aparecendo essa figura, o Taunay, que detestava o sol do Brasil. Começo cada um dos capítulos contra o sol do Brasil, que as pessoas elogiam tanto, e quando acham que o título do livro, O sol do Brasil, é um elogio, é na verdade uma crítica, porque o Taunay o detestava, ele não conseguia pintar os trópicos. Cada vida me abre um mundo. Quando você escreve sobre um pintor, estuda pintura, quando escreve sobre um escritor, estuda literatura. Não dá para entrar em casa alheia sem bater na porta. Como diz o Evaldo Carvalho de Mello, é preciso calçar os sapatos do morto. Eu sou uma pessoa curiosa, então a biografia me atiça.
Estamos a conversar a um ano de distância dos duzentos anos da independência do Brasil e a um ano de eleições decisivas. Sobre o que é fundamental falar neste momento?
2022 vai nos premiar com uma agenda lotada. Vamos ter política de avaliação de cotas, que foram fundamentais no serviço público, no ensino público, e eu tenho muito medo. A pressão da sociedade civil terá de ser muito forte. Tenho medo dessa Câmara retrógrada, do Senado retrógrado, do nosso presidente e dos seus ministros. O ano de 2022 será o do centenário da Semana de 22, e é muito importante que o Brasil entenda que a cerimônia ocorreu em São Paulo, mas não foi de São Paulo. Para mim isso é fundamental. Em 2022 também teremos cem anos da morte de Lima Barreto, esse autor que foi jogado para fora da régua e compasso do modernismo; foi chamado de pré, e pré é aquele que não foi e não será. Temos Copa do Mundo, temos bicentenário da nossa independência, e é preciso que os brasileiros se perguntem muito de qual independência queremos falar. Vamos falar mais uma vez de uma independência tão masculina, tão europeia, tão colonial, ou vamos finalmente falar de outros Brasis?
E teremos eleições. Temos um presidente que está no palanque desde que assumiu o poder. Tudo o que faz é campanha. Ao que tudo indica, teremos um cenário de Lula versus Bolsonaro, o que quer dizer que o ambiente será de imensa tensão. Temos um presidente golpista, que no ano que passou anunciou um golpe; ligou, como diz o Marcos Nobre, o despertador do golpe de Estado; já anunciou várias vezes que se existirem eleições e ele não ganhar não vai respeitá-las. É um presidente que está usando a história como um player fundamental. Se lembrar do 7 de Setembro, ele já o fez fardado, como se o nosso passado fosse um passado militar, como se D. Pedro fosse um militar. Não à toa a ditadura militar comemorou 150 anos da independência lembrando D. Pedro como se fosse um militar, e Bolsonaro está fazendo isso de novo.
Temos aí uma agenda muito lotada e importante para os brasileiros, mas sou uma pessoa que acredita no espaço cívico. O Brasil já perdeu a trilha e já reencontrou a trilha algumas vezes. A cidadania é assim, uma franquia de democracia. Os brasileiros vão ter de ser colocados à prova e vão ter de mostrar quanto acreditam na sociedade civil.
Matéria publicada na edição impressa #53 em outubro de 2021.