Encontro de Leituras,

Para completar a ‘Dobra’

Com sua obra poética lançada no Brasil, Adília Lopes fala sobre infância, influências literárias, espiritualidade e o bairro onde vive

24set2024 | Edição #86 out
A poeta portuguesa Adília Lopes (Divulgação)

Com as minhas cartas de amor
vou fazer um castelo de cartas de amor

Adília Lopes

Por ter feito a opção por desnudar o poema até do que pensamos ser o poético — e adentrar no território ambíguo da performance de si através de uma perspectiva humorística e desmistificadora do eu lírico e da própria literatura —, Adília Lopes se tornou uma espécie de Sibila-Esfinge que perturba o chamado mundo literário como um gato de rua que invade o palco de uma ópera lírica. Ela engenhosamente problematiza e ao mesmo tempo expande o que convencionalmente chamamos de poema e seus gêneros.

Sua Dobra: poesia reunida chega agora aos brasileiros pela Assírio & Alvim Brasil, em uma edição mais completa do que a publicada em Portugal, incluindo seu dois livros mais recentes, Choupos e Pardais.

A obra de Adília Lopes se inscreve na poesia contemporânea de língua portuguesa como uma espécie de bíblia da desmistificação do poema. Nestes “campos onde o poema emula a fala e poetiza o não poético”, ela conseguiu realizar os sentidos mais interessantes e profundos da ideia de poetizar a vida, formando vitrais escritos com estilhaços de suas memórias em uma montagem godardiana que reconstrói um lado de fora com a vida de dentro, criando não apenas uma confluência de tempos dialógicos mas também uma alternativa ou até mesmo um insuspeito antídoto para aquilo que Barthes chamava de “o fascismo da linguagem”.

A produção poética da portuguesa pode ainda ser aproximada a da mineira Adélia Prado, que neste 2024, aos 88 anos, venceu o prêmio Camões. Há um diálogo entre elas, ambas pintoras impressionistas de paisagens similares, feitas com os mesmos tons pictóricos afetivo-metafísicos. Deixo aos estudantes de letras a tarefa de investigar profundamente as nuances deste e de outros diálogos entre as poetas evocados nos escritos de Lopes.

Na entrevista a seguir, realizada por e-mail, a própria autora completa a dobra de sua poética.

Qual a importância da dimensão da infância em sua obra?
A infância não é fácil. Mas na minha houve tesouros. A minha mãe, a Mamã. A professora Maria Inácia. Ir com a minha mãe ao Jardim Botânico. A minha mãe trabalhava lá, era cientista, botânica. Ir ao cinema Tivoli. Ir ao jardim zoológico. E havia o Natal e o dia do meu aniversário. A minha mãe dava-me os brinquedos todos que eu queria. Só não me deu uma casa de bonecas porque era muito cara. Havia também a minha avó materna. Penso que não gostava muito de mim, mas ensinou-me lengalengas, ditos, uma oração que ainda hoje rezo para adormecer. Tudo isto de que estou a falar foi parar aos meus livros. Está lá. É a minha bagagem. Foi na infância que descobri a literatura, o encantamento da literatura. E do cinema.

Quais foram suas leituras decisivas e como elas incentivaram sua decisão de escrever poemas?
Em criança, a minha mãe e a minha avó materna liam-me em voz alta os livros da Condessa de Ségur e da Enid Blyton. Eu adorava. Hoje acho que esses livros não são bons para as crianças. Mas não penso que me tenham feito mal.

A partir dos dez anos, li os contos para crianças de Sophia de Mello Breyner Andresen. Esta escritora ensinou-me tudo. Nunca a conheci pessoalmente. As crianças em Portugal têm a sorte de ter uma escritora que escreveu livros muito bonitos para a infância e que escreveu poemas e contos para adultos. Passei dos contos infantis para a poesia e a prosa da Sophia para adultos. A partir destas leituras, pude passar para os gregos e para Rilke, Hölderlin. Li muito Marcel Proust a partir dos quinze anos em francês, sempre. Também com Proust aprendi tudo sobre literatura. Tudo o que sei.

No fim da adolescência, li muito Ruy Belo e Sylvia Plath. Foi a lê-los que comecei a escrever os meus poemas de Adília Lopes. Eu tinha escrito textos entre os dez e os catorze anos, mas ainda não tinha encontrado um caminho. Tinha prazer em escrever. E tinha muito sucesso na escola com os meus textos. As professoras de português elogiavam-me muito.

O poema não é o mundo, é menos. Mas não quero desvalorizar a poesia, um poema move montanhas

Outro autor decisivo é Agustina Bessa-Luís. Li uns quarenta livros dela e aprendi muito. Aprendi a observar o mundo e a criar defesas. Há um romance, A muralha, em que um rapaz que tem uma crise de nervos ao ser interrogado por um psiquiatra freudiano se cala. Quando aos vinte anos conheci uma psiquiatra medonha, calei-me. Tinha aprendido com o Gerson, o rapaz de A muralha.

É visível em seus livros uma certa “autobiografia a partir da vida menor”. Existe nisso uma mística do viver quase num sentido monástico?
Acordo muito cedo. Espero para ver apagar-se a luz do lampião da rua da iluminação pública da cidade. É uma questão de segundos, é preciso estar atenta, mas eu estou. Anoto num caderno as horas a que isso acontece. A hora vai mudando ao longo do ano. Esta pequena coisa, este prazerzinho, este hábito, é monacal, securiza-me.

A minha poesia é uma epopeia da vida menor. Não é a descoberta do caminho marítimo para a Índia. É o caminho do corredor de minha casa entre a sala onde escrevo e leio e a cozinha. É doméstica. É feminina. É uma questão de mística e de vida monacal, de facto. Um ideal cristão é que toda a vida se torne oração. Esforço-me por isso. Mas penso mal dos outros, também sou agressiva, nem tudo são rosas. A celebração do quotidiano nas mais pequenas coisas torna a minha vida rica. Não sou infeliz e nunca me aborreço.

O que você pensa dos gêneros literários e da língua portuguesa? O que são para você a poesia e o poema?
Para mim há a literatura. Os géneros literários não me interessam muito. A poesia está no mundo e está no poema, no texto. O poema não é o mundo, é menos do que o mundo. Mas não quero desvalorizar a poesia, um poema move montanhas.

Eu quis ser romancista quando era adolescente. Quando digo que alguns dos meus poemas e dos meus livros são romances é porque são ficção e porque são romances em miniatura. Tudo o que um romance tem está lá. Só não tem a extensão. É assim com os poemas de O decote da dama de espadas (1988). Por isso tem o subtítulo (Romances), assim entre parêntesis.

O que é poesia? É amor. É o que dá sabor à vida. O poema é um texto, escrito ou não. Dá conta da poesia que move o mundo, é um registo.

Sobre a língua portuguesa: é a minha língua materna.

Seus poemas breves parecem ser fotografias do instante, como o haicai, e buscam o minimalismo e a simplificação do cotidiano, como o tanka. Existe alguma ligação desses poemas com a poesia oriental?
Existe uma ligação entre a minha poesia, os poemas breves que não são ficção e a poesia oriental. Um pintor, julgo que foi Leonardo, dizia que quando pintava o voo de uma ave estava a fixar um movimento que tinha ocorrido no universo. Para mim também é assim. Fixo coisas, incidentes, que não são inventados, que não são ficção, ocorreram de facto. Isto é uma celebração da vida e é memória. Fixo acontecimentos caseiros, domésticos. Talvez não escreva muito sobre a natureza. Mas é a mesma coisa. É a consagração da casa e a casa é vida.

O que você pensa sobre Deus, o amor, a fé e a alma?
Acredito em Deus. Mas houve momentos na minha vida em que pensei: não há Deus. Deus para mim é amor, bondade, compaixão. Acredito que Deus vê o que faço e procuro não errar. Acredito que o bem triunfará. Acredito que a morte não é o fim. No céu estamos com Deus, com aqueles que amámos. A morte de um amigo é horrível. Detesto o sofrimento e não sei por que existe.

Tive uma educação cristã, católica. Continuo a acreditar em muito do que a minha mãe me ensinou. Também me sinto próxima do budismo. Uma vez, em Paris, num jardim zen, senti-me muito bem.

Fixo acontecimentos caseiros, domésticos. É a consagração da casa e a casa é vida

Não sei dizer o que é a fé. Em criança, a minha avó materna, quando eu fiz um exame médico, deu-me uma pulseira que tinha uma cruz. A cruz representava a fé. A pulseira tinha tido uma âncora a representar a esperança e um coração a representar a caridade. Mas quando chegou a mim já não havia âncora nem coração. Aos vinte anos sofri muito com uma depressão nervosa grave. Achei que para mim só havia a fé, os outros não tinham caridade em relação a mim e esperança eu tinha muito pouca. Rezava muitas Ave Marias, queria rezar o Pai Nosso mas tinha-me esquecido das palavras. Penso que temos uma alma. Não sei dizer o que é a alma. É a essência, o espírito, o âmago. Acho que é a nossa árvore interior. Não sei explicar melhor.

Quis casar e ter filhos. Isso não aconteceu e foi bom. Não tenho uma personalidade que me permita viver com outras pessoas e educar crianças. Também quis ser professora e não fui. Fiz bem. Gosto das pessoas mas tenho dificuldade em me articular com elas, talvez por ter vivido sempre sem convívio.

Qual é a importância dos animais em sua obra, no sentido de uma desierarquização da nossa relação com eles, um aspecto importantíssimo de sua poética?
Os animais que tive deram-me muito amor. Acho que eram todos muito melhores do que eu. Falo até no aspecto ético. Tive um cão, coelhos, muitos gatos, um canário, periquitos, um porquinho-da-índia e um ratinho branco. Foram tão importantes na minha vida, devo-lhes tanto que só posso falar deles também na minha poesia. E só posso achar que eram melhores do que eu.

Vejo a ironia em sua obra como o oposto de uma ilusão de poder. O que é a ironia para você?
A ironia para mim é a distância, uma defesa, uma arma, faz sublimar. A ironia para mim é brincar.

Como você se vê hoje e o que espera do viver? O que significa para você haver nascido em Portugal?
Espero que haja paz. Espero viver feliz com os que amo. Já não conto escrever mais. Quero contemplar. É claro que preciso de trabalhar!

Gosto muito de Portugal e de ter nascido em Portugal. Não viajo. Gosto muito do bairro em que vivo em Lisboa. Ainda é um bairro afável, por enquanto. É um bairro residencial, antigo, no centro de Lisboa. Há as casas do século 19 revestidas de azulejos belíssimos. Há os jacarandás. Está a modificar-se para pior. Até há pouco tempo conseguia comprar sacos para o aspirador e almofadas para dormir no meu bairro. Agora já não. Acabaram as lojas que vendiam essas coisas indispensáveis. É o capitalismo descarado em que vivemos que destrói o que é saudável.

O que você diria para alguém jovem  que tem paixão pela poesia e está começando a escrever poemas?
A uma jovem ou a um jovem que quer escrever poemas digo que não desista, que acredite sempre na poesia. Se achar que nunca conseguiu escrever um bom poema, se nunca for reconhecido, se não for um poeta consagrado, não se importe com isso. Viva a vida. Agarre-se ao que a vida tem de bom. Há muita coisa para além dos poemas. O que importa é ser boa pessoa, ter espírito de ajuda, não ter prazer em fazer sofrer os outros. Há muitos poetas célebres que não são boas pessoas. Mais valia que fossem anónimos e que tivessem sido bons. Poemas leva-os o vento.

Quem escreveu esse texto

Marcelo Ariel

Poeta e ensaísta, é autor de Nascer é um incêndio ao contrário (Kotter) e acaba de lançar Afastar-se para perto: Ficção-Vida (Reformatório).

Matéria publicada na edição impressa #86 out em outubro de 2024.

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