Desigualdades,

‘O bagulho é arriscado’

Articulador do breque dos aplicativos, Paulo Galo dá a real sobre trabalho em 2022 e as novas formas de mobilização dos trabalhadores

01fev2022 • Atualizado em: 23jul2023 | Edição #54
O ativista Paulo Galo em São Paulo, janeiro de 2022 [Gil Inoue]

A economia de plataformas desarma as principais táticas da mobilização de trabalhadores: piquetes, panfletagem e passeatas são inviabilizados no modelo de circulação e produção que privilegia a flexibilidade e corrói a relação entre empregado e patrão. No lugar da solidariedade de classe, o prestador de serviços da era digital é incentivado a se ver como empreendedor e competir com os colegas.

Por isso, não é exagero afirmar que greves como o “breque dos apps”, paralisação de entregadores de aplicativos ocorrida em 2020, inauguram um novo capítulo na história da contestação social. São episódios que apontam novos caminhos para a reivindicação dos trabalhadores e suscitam a emergência de jovens lideranças.

No Brasil, o nome mais conhecido entre os novos ativistas é o do entregador Paulo Roberto Lima, o Galo, de 32 anos. Depois de viralizar com dois vídeos sobre as condições de trabalho na pandemia, em 2020, Galo fundou o movimento Entregadores Antifascistas, um dos principais articuladores do “breque dos apps”.

Galo esteve novamente na berlinda em julho do ano passado, quando outro grupo que fundou, o Revolução Periférica, ateou fogo à estátua do bandeirante Borba Gato, em São Paulo, para denunciar a homenagem a um indivíduo que escravizava índios e abusava de mulheres. O ato valeu ao entregador a desconfiança de parte da esquerda, contrariada porque o ato ocorreu no mesmo dia de uma manifestação contra o governo.

Filho de floristas, ex-motoboy, feirante e instalador de internet, Galo se formou na política a partir do gosto pelo hip-hop, que levou à leitura de Malcolm x e ao interesse pelos Panteras Negras. Hoje, enquanto busca politizar a população das periferias, o ativista estuda novas formas de organização dos trabalhadores.

Para Galo, a saída para o trabalho no capitalismo digital seria uma fusão entre a ação política e a econômica. Trata-se de um cooperativismo que não apenas colocaria os meios de produção e circulação na mão dos trabalhadores como manteria uma atividade sindical e reivindicatória.

Para explicar essas e outras de suas ideias, Galo conversou com a Quatro Cinco Um em um estúdio fotográfico em São Paulo, nos primeiros dias de 2022, sobre trabalho, economia, manifestações, política e outros temas.

O que diferencia a greve de julho de 2020 das greves tradicionais?
A greve muda. A do 1o de julho não foi daquelas que param a produção. Antigamente você fazia uma greve parando a fábrica. O patrão deixava de ganhar dinheiro. O poder de negociação vinha disso. Na nossa, tinha 10 mil motoboys fazendo a greve, aquela carreata bonita. Todo mundo filmou, bateu foto. E tinha outros 10 mil trabalhando. A produção não parou. Foi uma greve estética. Mas a gente pensou: não pode ser só estética. Passamos para a greve de travamento. Fomos para a porta dos shoppings. Quarenta motoboys na porta de um shopping, e trava. Não sai pedido. No interior de São Paulo algumas greves foram assim. Só que aí não dá foto. Hoje, esse é o grande dilema. Ninguém quer postar a foto de quarenta motoboys parados na frente de um shopping. Não é como as fotos de greves com aqueles trabalhadores todos na rua, as faixas. E a gente sabe que a foto precisa existir para a greve existir de fato.

O estético tem efeito duradouro?
No mundo inteiro, os ganhos vieram pelo estético. Na Inglaterra, onde a situação é mais avançada, os garotos-propaganda dos aplicativos sofreram pressão para dizer que esses aplicativos são ruins, que dão péssimas condições de trabalho. Ficou feio para esses personagens associar a imagem deles ao aplicativo. Eles cancelaram o contrato. Então imagina se o Cristiano Ronaldo é o garoto-propaganda da Uber e da noite para o dia ele decide quebrar o contrato, dizendo: “É exploração, eu não curto, estou saindo fora”. O cara tirou uma Coca-Cola da frente numa entrevista [coletiva, em junho de 2021] e as ações caíram. Se o cara faz isso com o aplicativo, é capaz até de falir! A estética é parte do nosso tempo.

Como é a matemática do entregador? Quanto é preciso trabalhar para ganhar o suficiente?
Outro dia, postei no Twitter uma conta sobre isso e fui chamado de mentiroso. “Essa conta é absurda” e tal. Olha só como é difícil a situação. Você vai num bolsão de motos [onde os entregadores se concentram à espera dos pedidos] e não é cena incomum ver um entregador mostrando a tela do aplicativo para outro, com quanto ganhou no mês. E aí vai ter um entregador que vai mostrar: “Ó, fiz 3 mil”, para se exibir, dentro da lógica do nosso tempo. Aí vai ter outro que vai mostrar: “Ó, fiz 4 mil”, aí fica mais bonito do que o cara que fez três. Aí vai chegar o top. O cara que fez cinco. Aí todo mundo do bolsão quer ser o cara que faz cinco. Para fazer R$ 5 mil no mês no aplicativo, tem que trabalhar dezesseis horas, mano. No domingo não tem como folgar se quiser ganhar 5 mil.

Eu rodava doze horas por dia, cerca de duzentos ou 250 quilômetros por dia. Você não tem controle, roda a cidade toda. Se encher um tanque por dia, vai gastar R$ 57. Dá mais de R$ 1.200 de gasolina. E tem a alimentação. Se o cara trabalha isso tudo, vai ter que pagar na rua o almoço e a janta. Se for pegar esses R$ 5 mil e tirar R$ 1.200 da gasolina, mais R$ 650 da prestação da moto, mais a alimentação, sobra para o cara R$ 1.500. Trabalhando dezesseis horas por dia. Não tem férias, nem 13º, não tem garantia. Se o cara se machucar, já era.

O entregador faz esses cálculos?
Não, por causa da sensação de ter R$ 5 mil passando na sua conta, que você nunca experimentou na vida. Você tem a sensação de que está ganhando dinheiro, está tudo bom, mano. Parece que essa sensação que você tem já basta. O cara que mostra no bolsão que fez R$ 5 mil diz: “Ó, cara, eu fiz cinco mil. Está vendo, vagabundo? Vocês não trabalham como eu. Fica aí conversando, fica aí fumando maconha, fica aí moscando na vida, enquanto eu trabalho, truta. Começa a trabalhar para você ver se não vai ganhar R$ 5 mil”. O cara não vai fazer a conta do que ele gastou.

Você mencionou o risco de acidente. Tem outras questões de saúde que impactam o entregador?
O psicológico, mano. Nada se compara ao psicológico. O apelido do motoboy é “cachorro louco”, truta. E é isso mesmo. Mentalmente a gente não está bem. Cheio de problemas, cheio de dívidas, cheio de treta. Aí você tem que trabalhar no bagulho, que é arriscado. Não tem um trabalhador, um motoboy, que acorda de manhã, sai para trabalhar e não vê alguém morto. Todo dia isso. Rotina. Você sai para trabalhar e alguém está morto. Um motoboy igual a você. Podia ser você. Então você já trabalha com isso na cabeça. Qualquer dia sou eu. Mas e aí? É isso que tem, vamos que vamos e tal. O psicológico não está legal e os aplicativos pioraram a situação. Às vezes parece que todos os problemas vão sumir se você jogar a moto atrás de um caminhão. Você sai de casa, não tem comida, tua esposa falou que você é um lixo, não consegue nem colocar comida dentro de casa. Aí você está lá, a oitenta quilômetros por hora, pensando nisso.

Como é possível mobilizar esses trabalhadores?
Não tem discurso bonito que vai ganhar da realidade, mano. Sua casa pode estar destruída, você não tem comida na geladeira, água vazando. Não tem discurso bonito que vai conseguir convencer os entregadores, é a própria realidade. Chega uma hora em que o cara não aguenta mais. Precisa tirar férias. Precisa descansar. Você se machuca, fica três meses com a perna quebrada, não tem como trabalhar, seu filho está passando fome. Esse negócio de parecer não funciona tanto assim. Funciona lá no bolsão, funciona no boteco, funciona com os meus amigos. Não tem comida, mano. É aí que o entregador se revolta. Ou quando bloqueia o cara. Não é o discurso do Galo que vai convencer o cara, é a realidade dele.

‘Você sai para trabalhar e vê alguém morto. Um motoboy igual a você. Podia ser você. Então você já trabalha com isso na cabeça. Qualquer dia sou eu’

Foi isso que aconteceu na pandemia, fazendo surgir os Entregadores Antifascistas?
Antes da pandemia, eu tinha um espaço no Jornalistas Livres, fazendo o Diário de um Motoboy. Aquele espaço me ajudou a expor as situações que os entregadores viviam. Só que parecia mentira, porque só eu falava que o bagulho estava difícil. E quando eu tentava acessar um entregador para ele falar junto na câmera, ele não ia. Tinha medo de ser bloqueado. Aí comecei a entrar em crise. Eu falava também com os motoboys, porque eu sou motoboy desde 2012, então achava que ainda era. Quando ia conversar, falar de se organizar, eles me rejeitavam, mano, de um jeito absurdo. Eles diziam: “Eu vi lá o que você falou, que carrega a comida nas costas de barriga vazia. Você não acha que está humilhando a gente?”. Eu falei: “Humilhando vocês?”. E diziam: “Está tirando nós de passa-fome, irmão. A gente não quer que o aplicativo dê comida, quer ganhar melhor para comprar nossa própria comida”.

Pensei: não sou mais motoboy, sou entregador. Até o mano de bike faz o trabalho, e ele está se fodendo mais que nós. Falei: vou trocar ideia com entregador. Aí fui atrás das bikes. E na bike o discurso pega. Na bike não dá para parecer, parça. Você está suando, irmão. Está pedalando. Sai uma corrida para levar uma encomenda de um bairro baixo para um alto. O que é? Dois sacos de lenha. Aí tem que subir a ladeira pedalando com aquela lenha. E quando é gelo? O cara chega e o gelo está derretido. O cliente fala: “Ah, mas eu não pedi água, eu pedi gelo”. O entregador quer tacar a bicicleta na cara do cliente, parça. Quando eu fui fazer o discurso lá, o bagulho pegou. Tanto que o logo dos Entregadores Antifascistas é uma bike.

Você conta que foi procurado por partidos políticos, inclusive da direita. O que eles tinham a propor?
Isso foi antes. O meu discurso no primeiro vídeo diz assim: “Você sabe como é difícil carregar comida nas costas de barriga vazia?”. Tem um tom assistencialista. Aí vem a direita, vem o Luciano Huck, vem o PTB. Quando falo que a gente não é empreendedor, é força de trabalho, aí a esquerda se liga. “Acho que esse mano é dos nossos.” Mas eles vieram com mais força depois da greve. Aí os entregadores começam a me ver como um político. “Ih, mano, ó o Galo lá, numa live com o [Guilherme] Boulos, a Jandira Feghali, a Sâmia [Bomfim]. Ó o Galo na esquerda, ele é político”. Aí fechou uma linha de diálogo com os entregadores. Os caras diziam: “Esse cara é um ator”.

Um texto no zap falava que eu era um ator contratado pelo The Intercept para introduzir ideias comunistas entre motoboys. Hoje, os entregadores pararam com as teorias da conspiração e de quem começou foi a esquerda. Tem setores que falam que sou financiado pelo George Soros. Tem até uns bagulhos meio racistas: “Como é que esses jovens pretos da periferia conseguem dinheiro para comprar pneu?”. A esquerda veio, o político veio e os entregadores ficam daquele jeito: “Ah, o Galo é político e vai passar a perna em nós. Quer montar sindicato”. Aí o Galo não montou sindicato. “Ah, o Galo vai sair para vereador”; o Galo não saiu para vereador. Os entregadores devem estar achando que vou sair candidato a deputado. Não tem nada disso.

‘Eu tenho medo de achar que estou organizando o trabalho e na verdade entregar uma organização para o aplicativo’

Há muito tempo se diz que os sindicatos estão engessados e ultrapassados. Vocês têm conversa com o sindicalismo tradicional?
Fui a reuniões com a cut, com a Conlutas [Coordenação Nacional de Lutas], sou amigo do Gil [Gilberto Almeida dos Santos], presidente do sindicato dos motoboys [de São Paulo]. Mas o entregador está fazendo greve contra o sindicato, parça. Vou fazer o quê? Vou ficar lá, com medo? Não, mano. Preciso dar um jeito de hackear a coisa, entender qual é a situação. Falo pros entregadores: “Vocês podem ter problema com político, é direito de vocês. E tá certo. Mas vocês não podem ter problema com a política”. É essa a ideia. A política é uma ferramenta nossa. A mesma coisa eu falo do sindicato. Vocês têm problema com o sindicato, e têm todo o direito. Mas o sindicalismo é um bagulho de vocês, mano. Mas já passei por essa fase. Agora penso que precisamos criar uma outra forma de sindicalismo.

Que cara ele tem?
Precisa ser uma cooperativa, mas não pode ser só cooperativa, porque isso é uma armadilha. Ela capta a demanda, entrega na mão dos trabalhadores, mas não organiza o trabalho. Precisa fundir a ideia sindical com a ideia de cooperativa e tirar uma coisa nova daí.

Você cita o MST como modelo.
O MST foi o movimento na esquerda que lidou melhor com a gente, que mais entendeu a lógica do barato. Fui a reuniões, mano, com gente truta [importante], que eram absurdas. Fui a uma reunião com presidente de central sindical que parecia reunião com patrão, cara. O cara colocou uísque na mesa e disse: “Do que você precisa de nós?”. Esse bagulho me incomodava de um jeito, mano! O MST não. Falaram assim: “Galo, e aí, mano, o que você está pensando? A gente quer saber, a gente não entende nada disso daí”. Falei: “Ah, mano, estou pensando numa cooperativa”. E disseram: “Pô, de cooperativa a gente entende. Do que vocês precisam?”. Precisa de restaurante. Aí eles arrumaram dezoito restaurantes em São Paulo. Até hoje é assim. O MST é muita treta [sabe tudo]. Passou uma visão mil grau. Disseram: “Galo, não legaliza os Entregadores Antifascistas, não cria  CNPJ. Cria o CNPJ no entorno, como cooperativa. O movimento é um movimento social de luta. Cooperativa é cooperativa, movimento é movimento”.

Já tem a cooperativa com  CNPJ?
Está indo. Tenho medo, mano, de achar que estou organizando o trabalho e na verdade estar entregando uma organização para o aplicativo. É só a situação ficar difícil na cooperativa daqui a cinco anos, aí a empresa oferece: “Ah, eu compro a cooperativa de vocês e vocês começam a prestar serviço”. Aí a gente vira uma cooperativa da Parmalat. Lembra da Parmalat? [tradicionais cooperativas leiteiras do Brasil tornaram-se dependentes da multinacional e ficaram sem receber quando a empresa quebrou.] A gente está estudando muito o cooperativismo. Conhecemos a cooperativa [de entregadores] Mensakas, na Espanha. Teve cooperativa que quebrou o aplicativo, tá ligado? Só que se você não tomar cuidado, monta uma cooperativa, o entregador começa a ganhar bem. Daqui a três anos, a cooperativa começa a ter dificuldades. O cara vai culpar quem? A cooperativa.

Não adianta só captar demanda, tem que organizar o trabalho. O cooperativismo pode ser uma das maiores armadilhas dos entregadores. Pode ser o caminho que vai fazer florescer a luta, vai fazer acontecer, criar toda uma primavera de lutas. Aí chega o inverno e fode tudo, mano. Entendeu? Tem que ir no caminho de criar a primavera, mas já se preparar pro inverno.

Matéria publicada na edição impressa #54 em outubro de 2021.