A Feira do Livro, Ciências Sociais,

Fragmentos do luto amoroso

O filósofo e escritor Renato Noguera reúne narrativas de diferentes culturas para entender a dor da perda

27maio2022 | Edição #58

Doutor em filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professor na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenador do Grupo de Pesquisa Afroperspectivas, Saberes e Infâncias, Renato Noguera é, por formação familiar, um griot — aquele que conta as histórias e os acontecimentos de um povo, transmitindo seus valores e sua identidade. No caso de Noguera, histórias e narrativas de vários povos e culturas.

O autor de Mulheres e deusas: como as divindades e os mitos femininos formaram a mulher atual (2018) e Por que amamos: o que os mitos e a filosofia têm a dizer sobre o amor (2020), ambos publicados pela Harper Collins, lança agora um ensaio sobre o luto. Como em seu livro anterior, Noguera usa narrativas de diferentes tradições (africanas, indígenas, ocidentais) para entender nossas emoções diante das perdas e propor uma ética para o luto. Nesta entrevista para a Quatro Cinco Um, ele fala sobre o novo ensaio e como o entendimento do amor nos ajuda a lidar com a morte.


O que é luto: como os mitos e as filosofias entendem a morte e a dor da perda, de Renato Noguera

Depois de falar tanto do amor, por que um livro sobre luto?
Eu iria publicar um outro livro sobre o amor, mas deixei para lançar em 2023. Eu me interesso muito por esse universo dos sentimentos, das emoções e, conversando com minha editora, achei ser um momento oportuno para falar de luto, por causa da pandemia, dos mais de 600 mil mortos no Brasil até agora. E porque todo mundo já passou ou vai passar por uma experiência de perda na vida.

A pegada do livro é a mesma do Por que amamos, essa perspectiva de pegar culturas diferentes, os mitos, o que eles nos falam sobre o luto e a morte. Há textos de culturas da África global, dos povos originários das Américas, dos vikings, do judaísmo, do islã, mitos dos astecas. Falo dessas tradições para entender um pouco o processo do luto, como algumas culturas conseguem lidar com a morte sem pudor e sem vergonha, digamos assim. Na cultura ocidental contemporânea há um certo tabu em falar disso, da finitude, do limite. Apesar de a morte ser o carro-chefe do livro, o luto também acontece quando a gente deixa de ser criança, perde o emprego, rompe um relacionamento.

‘Numa sociedade marcada pelo desempenho, não temos tempo para reconhecer a fraqueza’

Então o tema do luto se encontra com o do amor?
O amor cria a disponibilidade de cuidar e ser cuidado. No luto, as pessoas envolvidas vão ter de fazer esse balanço. E o amor também traz consigo a experiência da perda, não só pela morte, mas essas perdas cotidianas: as separações momentâneas, rupturas unilaterais, rompimento de contratos de vinte, trinta anos… São lutos para os quais às vezes não damos muita atenção e não temos talvez um ritual para poder virar a página. No último capítulo falo do mundo contemporâneo, da nossa dificuldade de lidar com o limite, a perda, a insatisfação — às vezes a gente só descobre que está insatisfeito quando perde alguém de quem a gente gosta.

Por que tanta dificuldade em lidar com a perda?
Vivemos em uma cultura que só fala dos vitoriosos, das coisas boas, das vitórias pessoais, e isso se relaciona a não reconhecer limites. Numa sociedade marcada pelo desempenho e pelo cansaço, não temos tempo para reconhecer a fraqueza, no sentido do limite. Não queremos falar de derrota e há uma fantasia de eternidade. Com a ciência, a medicina, poderemos viver, sei lá, 150 anos? Podemos especular, mas o corpo tem um limite, a consciência humana tem um limite, e isso nos deixa tristes. Nossa relação com a tristeza é querer fugir dela, não aprender que ela também nos constitui e pode ser compartilhada com pessoas que podem nos ajudar.

Como outras culturas lidam com essas emoções?
Muitas culturas têm rituais que mudam essa perspectiva sobre a morte. Em Gana, por exemplo, há um tipo de enterro no qual a família contrata profissionais para cantar e dançar com o caixão da pessoa morta. É um momento de despedida reconhecendo as coisas boas da vida daquela pessoa, um ritual celebratório: tem a tristeza, mas ela não é paralisante. Alguns povos do Alto Xingu fazem um exercício quase crematório e as pessoas comem um mingau com um pouco das cinzas dos mortos. São rituais para fechar uma etapa, para a pessoa não ficar voltando para a perda de modo compulsivo.

Como aprender com esses rituais?
No final do livro proponho uma ética para lidar com o luto. Procuro construir isso ao longo dos capítulos e no final faço alguns enunciados para apontar caminhos. Uma reflexão filosófica não é uma receita de bolo, um roteiro pronto; são as perguntas que podemos fazer a respeito de nossa própria vida e daquilo que a gente perdeu para poder lidar com esse sofrimento de outra maneira, sem fingir que ele não existe.

A literatura também ajuda a compreender o luto?
Eu uso [no livro] um texto de Sófocles. Antígona é incontornável para falar de luto. Também uso narrativas da Torá, do Corão, do Bhagavad Gita. Tenho interesse pela literatura. O cinema também me interessa muito, dos clássicos às comédias românticas.

E voltamos ao tema do amor…
Tenho um caso de amor com o amor. Está em todas as coisas que adoro, como as canções da música popular brasileira, os mitos, a filosofia, a arte. Os conflitos amorosos estão no cerne da minha formação, e na da maioria das pessoas, acho. Comecei a estudar o tema aos 23 anos, quando deparei com a A metafísca do amor, do Schopenhauer, e nunca mais larguei. 

Quem escreveu esse texto

Iara Biderman

Jornalista, , editora da Quatro Cinco Um, está lançando Tantra e a arte de cortar cebolas (34)

Matéria publicada na edição impressa #58 em fevereiro de 2022.