Política,
Visita ao epicentro da guerra
Um ano depois do 7/10: um ano de quê? A um ano do quê?
04out2024 • Atualizado em: 07out2024De Nir Oz até a Faixa de Gaza são vinte minutos a pé. Das varandas do kibutz, pode-se ver a silhueta dos prédios que, há um ano, estão sendo bombardeados sem trégua pelas forças israelenses, do lado palestino da fronteira.
No 7 de outubro de 2023, o kibutz de Nir Oz foi um dos primeiros locais invadidos pelos homens do Hamas. Eles chegaram ao raiar do dia, em motos e caminhonetes, seguidos por grupos de civis que vieram de bicicleta e até mesmo a pé. Passaram algumas horas no vilarejo, vasculhando casas e arrombando portas, uma a uma, para matar 52 moradores e levar 77 deles. No fim daquela manhã, Nir Oz tinha se convertido em um novíssimo marco zero de uma guerra que teve início em 1948, com a criação do Estado de Israel. O capítulo atual não para de se expandir, na direção de Gaza, do Líbano, da Síria, do Iraque, do Iêmen e do Irã, alastrando-se como rastilho de pólvora por boa parte do Oriente Médio.
Oásis de sombra
Fundado nos anos 50, esse kibutz aparece na paisagem como um pequeno oásis de sombra e vegetação no meio de uma extensa área de terra seca e pedregosa. Suas casinhas térreas são todas simples, sem muros ou portões, umas voltadas para as outras, como para ressaltar a intenção de convívio comunitário entre as 416 pessoas que viviam no lugar no momento da invasão.
Bicicletas, bolas de futebol e outros brinquedos ainda estão espalhados nos quintais por onde hoje passeiam a esmo gatos abandonados que se esgueiram por paredes chamuscadas por explosões, passando por cozinhas cujos pisos seguem cobertos pelo sangue seco do massacre ocorrido um ano atrás. Numa das casas há uma biografia de Fidel Castro e um busto de Lênin na estante.
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Muitos dos moradores de Nir Oz trabalhavam obtendo autorizações para que portadores de doenças crônicas do lado palestino pudessem receber tratamentos médicos do lado israelense. Iam até a fronteira busca-los, intercediam e os faziam passar pelo controle militar. Por seus gestos humanitários, os progressistas do kibutz se achavam credores morais e, por isso, imunes ao ódio — ao ódio dos palestinos contra si, e ao ódio que eles mesmos poderiam sentir contra os palestinos. À sombra dos arvoredos, nutriam uma consciência tranquila no plano individual e comunitário, andavam de bicicleta e vestiam sandálias, enquanto o governo do país ao qual pertencem mantinha seus coturnos amarrados e seus tanques e aviões em ponto de bala.
Cheguei a Nir Oz 239 dias depois do massacre do 7/10, mas poderia ter sido o dia seguinte
Cheguei a Nir Oz 239 dias depois do massacre do 7/10, mas poderia ter sido o dia seguinte: todos os objetos ainda no mesmo lugar, como se alguém ainda pudesse voltar e pegar a faca de cozinha deixada na cama crivada de bala. A cada passo em direção ao interior da intimidade silenciosa das casas vazias, pensava ainda poder dar de cara com algum morador deixado para trás.
No 7/10, os invasores dispararam contra as portas do kibutz e jogaram fumaça para dentro dos quartos fortificados. Pretendiam sufocar as famílias escondidas lá, até que elas preferissem enfrentar os disparos a morrerem queimadas ou asfixiadas. Cada uma das casas tinha um quarto-forte. Esses cômodos de sobrevivência foram construídos para oferecer proteção contra foguetes lançados de Gaza, mas não possuíam trancas, porque os moradores nunca imaginaram que seus agressores viriam bater à porta, como aconteceu naquele dia.
A tentativa de invasão teve luta corporal — assassinos e assassinados ficaram separados apenas pela folha de metal das portas, puxando e empurrando, mexendo nas mesmas maçanetas, se olhando nos olhos pelas frestas. Sentiam o cheiro uns dos outros, ouviam o choro, as orações e as vozes, incluindo as das crianças.
Passado e presente andam entranhados nesse lugar deixado intacto pelas autoridades. Da mesma maneira que o Yad Vashem, o Museu do Holocausto, em Jerusalém, exibe paralelepípedos de uma das ruas do gueto de Varsóvia e peças de roupa, óculos e outros pertences dos prisioneiros dos campos de concentração de Auschwitz, Nir Oz também acabou ganhando esse aspecto museológico. Para os israelenses, é mais uma chaga a dizer, um ano depois: “Eles estão aí, eles vêm nos buscar em nossas casas, eles nos arrancam de nossas famílias e nos levam embora pelos cabelos, arrastados pelas ruas. Sempre fizeram isso e sempre farão, porque somos judeus.” Mais um trauma é passado de geração em geração.
Da varanda de uma das casinhas, apertando os olhos para filtrar a luz chapada do sol, consegui ver o contorno das construções de Khan Yunis, na Faixa de Gaza. Dependendo da direção do vento, pensava poder ouvir algum murmúrio do lado palestino, mas o som chegava entrecortado pelo farfalhar dos arbustos movidos pela brisa, pelo zumbido de grandes moscas trazidas pela primavera e pelo estampido esporádico do fogo de artilharia posicionada nos arredores. Em intervalos esparsos, canhões e tanques disparavam na direção de Khan Yunis e de Rafah. Quando silenciavam, nos permitiam perceber os drones que passavam voando sobre o kibutz em direção à Faixa de Gaza. Pequenos robôs buscando observar e direcionar as bocas de fogo.
Giro em falso
A questão israelo-palestina tornou-se um parafuso que gira em falso, e o que eu testemunhava ali era só mais uma volta nessa peça espanada, que, a cada giro, tritura milhares de corpos. Ignorando os aspectos místicos e religiosos que adornam as bordas mais extremas desse assunto, é possível dizer que os problemas políticos centrais começaram para valer em 1948, quando a ONU criou o Estado israelense, mas não criou um Estado palestino. A equação de uma terra e dois povos foi resolvida com o deslocamento forçado de milhares de palestinos que vivam em localidades que, a partir de então, tornaram-se parte de Israel.
Ainda em 1948, os vizinhos árabes tentaram matar esse projeto no berço, mas foram derrotados militarmente pela primeira vez. Em 1967, em novo entrevero, chamado de Guerra dos Seis Dias, Israel não só bateu Egito, Jordânia e Síria como tomou para si porções de territórios palestinos que iam além do que a ONU havia preconizado 25 anos antes. Na sequência, Síria e Egito voltaram à carga em 1973, para colher nova derrota, na chamada Guerra do Yom Kippur.
No fundo, você pode escolher qualquer uma dessas voltas do parafuso para narrar a questão. Pode pôr ênfase na qualidade da madeira, no material do parafuso ou na mão de quem opera, mas o resultado é o mesmo: civis esmagados dos dois lados. Escolha um ponto de partida aleatório nessa história, e chegará sempre no mesmo lugar, porque a dinâmica da violência nesse contexto é circular; ela é cíclica, gira indefinidamente, movida por traumas legítimos e paranoias justificáveis ao longo dos anos, sobrepostas em camadas de argumentos compreensíveis, mas ao mesmo tempo sem sentido. A resultante de tudo o que se diz e se faz tem sido a morte de todos os lados.
A região do sul de Israel em que eu estava tem o nome de “Gaza Envelope”. É uma área de 7 km de extensão. Um ano depois, a artilharia israelense ainda alcança dali o lado palestino sem dificuldade. A curta distância é a mesma que favoreceu o Hamas no 7/10, quando seus homens lançaram 5.300 foguetes para dar cobertura à invasão de 3 mil combatentes que estouraram em trinta pontos diferentes a cerca que separa a Faixa de Gaza de Israel. Os assassinos tinham pisado exatamente nas terras em que eu estava naquele momento, para matar com as próprias mãos 1 096 israelenses — 812 civis e 284 militares —, alguns deles decapitados a golpes de enxada ou com facas; outros, explodidos vivos com granadas na frente dos próprios filhos pequenos que sobreviveram sem um olho, sem um pé, enquanto suas mães, irmãs ou vizinhas eram queimadas vivas dentro de casa ou em seus carros.
A violência é circular, gira indefinidamente, movida por traumas legítimos e paranoias justificáveis
O 7/10 foi, de acordo com o CSIS (Center for Strategic and International Studies), o terceiro maior ataque terrorista da história em número de vítimas, desde o início da compilação desses dados pelo think tank americano, em 1970. O pior ataque foi o da Al-Qaeda contra as Torres Gêmeas e o Pentágono em 11 de setembro de 2001, com 2 996 mortos. Só que os Estados Unidos tinham mais de 280 milhões de habitantes, enquanto Israel tem 9,5 milhões. Dá para imaginar a escala de um atentado como o de 7/10 num país cuja população é quase trinta vezes menor — a sensação entre a população israelense era a de que qualquer um, a qualquer momento, estava ao alcance de uma ação semelhante do Hamas.
A paranoia era agravada pelo trauma repassado entre gerações de judeus que tinham construído aquele país para fugir, justamente, de atrocidades semelhantes, sofridas na Europa, durante a Segunda Guerra Mundial. Só que a resposta de Israel — dada em alguma medida por tanques e canhões à minha frente — era classificada como uma reprodução às avessas do horror do qual os próprios judeus foram vítimas no passado, contra um número de vítimas palestinas que, no momento em que estive lá, já passava dos 37 mil mortos (atualmente, passam dos 40 mil), num território 62 vezes menor que o de Israel, onde vivem confinadas 2 milhões de pessoas.
Olhos nos olhos
Eu fui a Israel a convite de uma organização sionista chamada StandWithUs, que queria dar a conhecer aos jornalistas seu ponto de vista sobre o conflito. Estou escrevendo meu segundo livro, pela editora Zahar, do grupo Companhia das Letras. Ele trata justamente das regras da guerra. Logo, a oportunidade de estar em terreno e conversar com vítimas e algozes dessa história não podia ser desprezada.
É claro que toda escolha implica uma perda, e a minha consistia em ver a guerra apenas pelo lado israelense. Era isso ou nada. Não havia condições de entrar nos territórios palestinos, onde aconteciam as operações. As fronteiras estavam fechadas. Lá dentro, 113 jornalistas tinham perdido suas vidas entre outubro de 2023 e junho de 2024, mês da minha visita. Pelos jornais, TVs, sites e agências de notícias, eu tinha acesso aos registros de civis mortos, hospitais destruídos, crianças mutiladas e prédios implodidos no lado palestino, mas não podia ver com os meus próprios olhos o que se desenrolava a menos de 2 km de distância.
Eu olhava a silhueta dos prédios no horizonte e tentava imaginar como todas essas bombas estariam caindo do lado de lá, quando uma das sobreviventes do massacre do kibutz de Nir Oz, que havia sido convidada a revisitar o lugar, nos foi trazida para dar um testemunho. Irit Lahav começou a contar que tinha ficado trancada dentro de um desses quartos-fortes junto com a filha, de 22 anos. As duas correram para dentro quando viram os homens do Hamas chegando. Falando baixo, escondidas no escuro, trocaram mensagens de celular com parentes e com outros moradores — primeiro, para entender o que estava acontecendo ao redor, onde os tiros e rajadas espocavam sem parar; depois, para descobrir se alguém sabia um jeito de travar a fechadura do quarto por dentro usando qualquer coisa como um cabo de vassoura ou um rodo, de forma improvisada.
O desespero fez com que Lahav empilhasse alguns livros na frente da porta. Ela pensou que as folhas pudessem de alguma maneira reduzir a velocidade das balas de fuzil, antes que atingissem o corpo dela e da filha. “Eu tive certeza de que iria morrer. Minha filha pegou a minha mão e disse: ‘Mãe, eu te amo’. Eu agradeci pelos 22 anos que vivemos juntas e, naquele momento, só falamos coisas de amor porque sabíamos que poderiam ser nossos últimos minutos”, ela contou. A gente se impressiona com muita coisa brutal, mas, de um jeito estranho, o que mais me impressionou na visita a esse kibutz talvez tenha sido essa fala: “Só falamos coisas de amor”. O jeito como essa mãe disse isso, de modo meio infantil, tornou evidente a impotência e a fragilidade diante de uma circunstância tenebrosa e inevitável. Quando não havia mais nada, “só falamos coisas de amor”.
Mas os invasores acabaram seguindo adiante, sem entrar no quarto onde estavam Lahav e a filha. As duas tiveram melhor sorte que os demais 52 moradores massacrados nas casas seguintes. Dali, os homens do Hamas avançaram em carros, motocicletas e caminhonetes que tinham sido adaptadas para receber na caçamba metralhadoras acopladas. Eles seguiram, doze meses atrás, pelos mesmos caminhos e campos nos quais, agora, os canhões, obuses e tanques israelenses rugem fogo contra a Faixa de Gaza.
Estrada da morte
Eu havia chegado até Nir Oz pela estrada rural 232. Ao longo do caminho, vi as marcas de pneus que contavam a história de freadas bruscas, cavalos de pau, batidas de carro. Eram desenhos negros feitos no asfalto pelo atrito da borracha. Aquelas marcas ficaram como relatos silenciosos e involuntários dos eventos de 7/10, quando homens do Hamas se posicionaram ao longo da 232 para emboscar com calma qualquer um que passasse. Percebendo a movimentação incomum naquele trecho normalmente ermo e pacato, alguns motoristas israelenses reduziam a velocidade, e então eram alvejados seguidas vezes por disparos de AK-47. Os que, ao contrário, aceleravam para escapar, também eram varados por rajadas e acabavam colidindo ou saindo da pista, quando então eram executados com tiros à queima-roupa. Tudo sem pressa. Olhos nos olhos.
Só naquele dia, o Hamas atacou e destruiu 1 650 carros de civis israelenses ao longo da rota que agora é apelidada “estrada da morte”. As carcaças dos veículos cravados de bala, batidos e incinerados foram levadas para uma pequena estrada vicinal. Ali, durante dias, profissionais forenses tiveram de raspar e recolher restos de corpos humanos que tinham ficado espalhados ou entranhados no estofado dos carros. O fogo derreteu os corpos.
O governo não podia simplesmente descartar em ferros-velhos automóveis que tinham restos humanos encrustados em seus assentos. O impasse inusitado teve como solução a criação de um cemitério de automóveis que estão ainda hoje empilhados e enfileirados em campo aberto, no meio do nada. Foram ficando. Mais tarde, puseram uma cerca e uma guarita no local. Mais um macabro museu.
Logo na entrada, a primeira carcaça é de uma ambulância. O fato de uma ambulância estar ali era significativo. Desde 1864, é proibido pelo Direito Internacional Humanitário — vulgarmente chamado de “lei de guerra” — atacar instalações, veículos e pessoal sanitário. Escrevo muito sobre esse assunto e, sete meses antes, tinha publicado na Folha de S.Paulo uma análise sobre ataques de Israel contra ambulâncias palestinas na Faixa de Gaza.
Na época, eu não fazia ideia de que houve mais de um ataque, cometidos pelos dois lados envolvidos no conflito. No 7/10, um vídeo gravado pelo circuito interno de um dos kibutz invadidos mostra homens do Hamas disparando rajadas de fuzil nos pneus de uma ambulância do lugar. Foi uma das primeiras coisas que fizeram, para evitar qualquer possibilidade de socorro ou evacuação.
Já a ambulância carbonizada que estava no cemitério de carros de tzomet Tkuma tinha sido trazida de onde, no 7/10, ocorria o Nova Music Festival, um festival de música eletrônica no qual 346 pessoas foram mortas e quarenta levadas como reféns. O veículo era parte do apoio médico do evento. Os restos de dezesseis pessoas foram encontrados dentro daquela carcaça de ferro. O grupo foi morto e carbonizado quando provavelmente se espremeu na ambulância como um último recurso, desesperado e inútil, para se proteger.
Céu e terra
Nos ataques israelenses, a destruição vem do céu. Mísseis lançados pela aviação ou por tanques e peças de artilharia que pulverizam hospitais e ambulâncias em Gaza. No ataque do Hamas em 7/10, a destruição foi marcada pela proximidade física -— os combatentes viam como suas vítimas rastejavam sem pernas ou sem pele, como mostram imagens e testemunhos daquele dia. A morte a sangue frio, olho no olho, é uma coisa perturbadora, embora tenha um dano menos extensivo que o dos bombardeios.
Com base em imagens gravadas pelos próprios membros do Hamas e testemunhos dos que sobreviveram é fácil recompor as cenas. Mas até hoje não se sabe ao certo se todas essas vítimas israelenses foram derretidas apenas por fogo do Hamas. O jornal israelense Haaretz vem publicando informações baseadas em relatos de membros das IDFs (Forças de Defesa de Israel, na sigla em inglês) de que a própria resposta militar ao ataque de 7/10 pode ter aumentado o número de vítimas israelenses.
Nos ataques israelenses, a destruição vem do céu. No do Hamas, foi marcada pela proximidade física
Em algumas localidades, essa resposta das IDFs teria sido ao mesmo tempo caótica e fulminante, com disparos de foguetes efetuados por tripulações de helicópteros incapazes de distinguir sequestrados e sequestradores no solo. A hipótese é plausível. E o risco de que essa história se confirme é um dos fatos que fazem o governo do primeiro-ministro Binyamin Netanyahu relutar em criar uma comissão abrangente e transparente para investigar o 7/10.
“Como as peças de artilharia israelenses posicionadas a mais de um quilômetro de distância dos alvos são capazes de distinguir entre uma criança e um membro do Hamas, em vielas apertadas como aquelas de Gaza?”, perguntei a um membro das IDFs. “As coordenadas são precisas. Elas têm 12 dígitos para cada lado, latitude e longitude”, garantiu um porta-voz. “Não são tiros a esmo.”
A afirmação faz pensar que as mortes de civis palestinos não se dão, então, por acidente, mas por opção de quem opera a artilharia. E de fato é assim: Israel diz que sabe exatamente a posição de cada alvo que pretende atingir e os danos que serão causados por cada disparo feito contra a Faixa de Gaza, o que inclui saber necessariamente que haverá mortes de mulheres e crianças que estejam no caminho ou ao redor do alvo. A justificativa para seguir adiante com ações que matam inocentes é a de que o Hamas usa essas pessoas como escudos humanos, ao posicionar seus homens deliberadamente dentro de escolas e hospitais. Mas para que outro lugar poderiam ir?
No dia em que eu andava pelos escombros dos ataques de 7/10, Netanyahu e o ministro da Defesa dele, Yoav Gallant, eram alvo de um pedido de prisão feito pelo procurador do Tribunal Penal Internacional, Karim Khan, com base na acusação de que o governo israelense usava a fome como arma de guerra contra os palestinos de Gaza. Em outra frente, a Corte Internacional de Justiça analisava a acusação, feita pela África do Sul, de que Israel cometia o crime de genocídio contra os palestinos. Ou seja, a afirmação de que as mortes na Faixa de Gaza são legais e derivam apenas de danos colaterais tolerados pelas brechas das leis da guerra não ecoa de maneira muito convincente em nenhuma dessas duas instâncias internacionais — a primeira responsável por julgar pessoas e a segunda por julgar Estados.
Vizinhos
Dois dias depois de visitar Nir Oz, atravessei o país para chegar ao extremo norte, na fronteira com o Líbano, onde uma chuva de foguetes disparados por outro grupo armado rival de Israel, o Hezbollah, vinha obrigando o governo a evacuar cidades inteiras.
A ideia era alcançar um outro kibutz, Elion, que fica a apenas 2 km da fronteira com o Líbano. Porém, na noite anterior, uma salva de foguetes lançados pelo Hezbollah havia provocado um incêndio que consumira 15 quilômetros quadrados e levara 48 horas para ser controlado. Naquela véspera, o governo de Israel tinha evacuado 70 mil moradores da região e nós fomos impedidos de seguir adiante.
Em junho, as forças israelenses já vinham escalando a troca de fogo com o Hezbollah. Despachei naquela semana uma reportagem para a Folha cujo título era algo profético: “Em tensão com o Líbano, Israel se diz preparado para abrir nova frente de guerra”. Netanyahu havia convocado 350 mil reservistas e advertia sobre os preparativos para uma “ação muito poderosa”.
Quando estive nessa região, um desses bombardeios israelenses havia destruído, em 1º de junho de 2024, uma casa na cidade de Saddikine, a 5 km da fronteira, onde vivia uma mãe com seus quatro filhos. Fatima Boustani, de trinta anos, e uma das filhas, Zahraa, de apenas dez anos, foram gravemente feridas. O filho de nove anos, Ali, também ficou machucado.
Fatima passou três dias na UTI do Hospital Ítalo-Libanês em Tiro, respirando por aparelhos. Teve de esperar uma semana até ser estabilizada e transferida para uma unidade de maior complexidade em Beirute. O rosto dela nunca mais será o mesmo. A filha passou por três cirurgias na perna. Não sobrou nada da casa. O ataque reduziu a construção a uma montanha de escombros, onde havia grandes marcas de sangue sobre pedaços de cimento e no encosto de um sofá. É impossível calcular a gravidade das sequelas psicológicas de uma família cuja casa foi atingida por um míssil.
Um detalhe inesperado é que a família tem dupla nacionalidade: libanesa e brasileira. No momento do ataque, o marido de Fatima, Ahmad Aidibi, estava na cidade de Itapevi, na Grande São Paulo. A ideia de Aidibi era encontrar trabalho e conseguir tirar a família da região de conflito. “A situação da guerra está ficando mais grave. Não é um lugar seguro”, ele já dizia.
Agora em setembro, de volta a São Paulo, vi pela televisão a inacreditável explosão simultânea de milhares de pagers no Líbano, numa ação de inteligência e sabotagem atribuída a Israel para acertar os membros do grupo rival, que sabidamente usam esses aparelhos antiquados para se comunicar. Na sequência, um bombardeio israelense mataria o líder do Hezbollah, Hassan Nasrallah, em 28 de setembro, no subúrbio de Beirute. Finalmente, as IDFs entrariam com cavalaria mecanizada e infantaria no Líbano.
Desde então, os bombardeios israelenses se tornaram mais intensos e mais frequentes sobretudo no Vale do Bekaa, onde vivem muitos brasileiros, além de Fatima. Ali, morreram, em setembro, Ali Kamal Abdallah, um adolescente brasileiro de quinze anos, e o pai dele, que tem cidadania libanesa e paraguaia. Dias depois, outra bomba, lançada por Israel, matou a brasileira Mirna Raef Nasser, de dezesseis anos.
Xixi na cama
Posso imaginar o leitor tentando adivinhar minha simpatia ou antipatia por um ou por outro lado dessa guerra — dessas guerras, pois são várias guerras simultâneas, entre atores diferentes —, a partir das linhas e entrelinhas do que escrevo. Eu mesmo me preocupei com isso durante um tempo, mas abri mão dessa preocupação porque não consigo me sentir atraído por nenhum dos lados que não seja o lado das pessoas comuns que estão sendo massacradas todos os dias. É óbvio que existem atores certos e errados, mas eles não são estáticos; se movem, trocando de endereço moral a cada novo capítulo dessa desgraça.
Nos dias seguintes à viagem, eu ainda estava impressionado com o relato da diretora do serviço de psiquiatria do Hadassah Ein Kerem, o gigantesco complexo hospitalar situado em Jerusalém, para onde as vítimas do 7/10 foram levadas em diversos voos de helicópteros, num influxo repentino de centenas de pacientes, um ano atrás.
Como jornalista, a gente se expõe voluntariamente a ver e ouvir um bocado de coisa horrível, e nunca sabe ao certo que efeito isso pode ter. Aguentei bem os horrores mais gráficos da viagem, mas me quebrei por dentro quando a psiquiatra contou uma coisa simples e aparentemente pequena: o grande número de casos de crianças que, em todo país, tinham voltado a mijar na cama. Era um detalhe de rodapé no meio de tanta desgraça. Era algo que as pacientes — sobretudo as mães — estavam relatando sobre seus filhos. Provavelmente, é uma bobagem, mas deu materialidade humana demais para os sofrimentos que, no geral, eram sempre muito maiores do que eu podia conceber.
Bastaria que carregassem uma única criança mijada para concluir que o uso da força não vale a pena
Bastaria que os líderes políticos e os comandantes militares envolvidos nisso tomassem no colo uma única criança mijada para concluir que a opção pelo uso da força não vale a pena. Mas eles não abrem a guarda à sensibilidade. Normalmente, combatentes não se aproximam demais de suas vítimas; não querem ver. Preferem lançar foguetes e mísseis de grandes altitudes. Por isso a proximidade física entre os assassinos e os assassinados do 7/10 foi tão desconcertante para todos, e cenas daquele dia geram todo esse combustível de medo, paranoia, ódio e ressentimento que agora abastecem uma espiral de violência sem fim.
Enquanto isso, o filho da chefe do serviço de psiquiatria um dia subiu na cama e decidiu que não voltaria a descer. O que isso significa? O que significa a opção de focar o relato de uma guerra na história de um menino israelense que sobe em sua cama, se agarra a ela, passa dias nessa situação e decide que nunca mais vai descer? O que isso significa na comparação com as 11 mil crianças e as 6 mil mulheres mortas em Gaza?
Eu mesmo me faço essas perguntas enquanto escrevo, porque sei o quanto meu leitor espera conclusões lúcidas de uma reportagem como essa. Mas, no fim, você só pode tirar grandes conclusões de uma guerra quando se distancia dela. Vendo de perto, a guerra é só isso mesmo: uma coisa sem lógica e sem lucidez.
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