Capa,

Imagens da pandemia

Conheça o trabalho do fotógrafo Victor Moriyama, autor da nossa capa de maio e de um ensaio sobre São Paulo em tempos de isolamento

01maio2020 | Edição #33 mai.2020

A capa da Quatro Cinco Um de maio traz um especial sobre a cidade de São Paulo em tempos de isolamento, com um ensaio fotográfico assinado por Victor Moriyama, um artigo sobre por que a Justiça brasileira insiste em encarcerar ilegalmente mães, gestantes e até crianças em penitenciárias e outro que reflete sobre como as prisões brasileiras são representadas em documentários.

Além disso, Walter Salles divide suas lembranças de Rubem Fonseca, Jason Stanley reflete sobre o Brasil de Bolsonaro e o coletivo Projeto Sonhos Confinados pesquisa o que sonham os brasileiros em confinamento. Quadrinhos, terraplanismo, a mística feminina e a mentira como ethos político também estão na pauta, além de um listão com 106 indicações de lançamentos de livros.

Quem assina a fotografia da capa é Victor Moriyama (@victormoryiama), fotógrafo que colabora para veículos como The New York Times, Bloomberg, Le Monde e National Geographic Brasil. Ele assina o retrato da ex-detenta Natalia Domingos e o ensaio da cidade de São Paulo durante o isolamento decorrente do novo coronavírus. Abaixo, ele faz um relato sobre como foi o processo e divida suas impressões a respeito dos tempos atuais.

Na minha vida, geralmente, as notícias mais importantes, que alterarão radicalmente a dinâmica dos próximos meses, chegam, ainda, pela televisão. Estávamos quase na metade de março, na ventilada cidade de Mar del Plata, na Argentina, finalizando uma reportagem, quando o cubo iluminado nos informava sobre os possíveis fechamentos dos aeroportos na América do Sul. “Será que conseguiremos voltar ao Brasil?”, eu me indagava, perdido e preocupado no hall do hotel. Sim, conseguimos, mas, dias depois, a Argentina decretaria lockdown, antecipando-se ao Brasil. No Uber do aeroporto para minha casa na Pompéia, lia o e-mail do meu chefe com os detalhes da cobertura da primeira semana de auto-quarentena em São Paulo que supostamente teve início no dia 16 de março. 

As ruas respiravam no ritmo dos sábados. Era segunda-feira, dia 16, quando corri para meu cinema de estimação na rua Augusta para fotografar sua última sessão antes de fecharam as portas e as bilheterias por conta do coronavírus. Na sala ocupada por cinco pessoas, um silêncio assustador pairava no ar antevendo a dificuldade dos dias a seguir. Na avenida Paulista, ambulantes vendiam máscaras de rosto descartáveis a cinco reais a unidade. Optei por andar de moto. A ideia de entrar em locais fechados com pouco espaço físico me agoniava.

Peguei a estrada e fui direto para Campinas, onde aconteceria, com portões fechados, um dos mais tradicionais clássicos do futebol brasileiro: Guarani x Ponte Preta. Era o último jogo do campeonato paulista antes da pausa forçada pelo vírus. Do lado de fora do estádio, ignorando as recomendações da OMS, centenas de torcedores do Guarani incentivavam o clube e hostilizavam o adversário. Um deles tentou me abraçar e disse: “Já era, pegou o coronga”.

Além de mim, uma dúzia de pessoas portava máscaras; luvas e óculos, como eu, ninguém. Pensava na capacidade ilusória do brasileiro de se achar invencível. “Isso aqui é Brasil, você acha que o vírus pegou alguém no carnaval?”, me indagava um fanático bugrino. As lembranças do carnaval me causavam um maravilhamento nostálgico e preocupante sobre a edição 2021.

Nos dias subsequentes, a cidade foi murchando. Os principais parques foram fechados ao público e os carros nas ruas circulavam com menor intensidade do que aos sábados. Se a metrópole parceria desacelerar forçosamente, os edifícios e as janelas ganhavam vida. Músicos tocavam instrumentos em suas sacadas, poemas, cestas de comida e gentilezas eram compartilhados entre os vizinhos. Eu estava otimista sobre a revolução pessoal, e logo coletiva, que o vírus parecia despertar nas pessoas. Estava dada a largada na temporada “lide com seus dragões e saia dessa quarentena uma pessoa melhor”.

Na política nacional, o presidente Jair Bolsonaro se referia à Covid-19 como uma “gripezinha” enquanto cumprimentava seus apoiadores com apertos de mão em manifestações a seu favor. Em diversos bairros paulistanos, as noites eram agitadas: milhares de pessoas, em diversas cidades brasileiras, faziam panelaços estrondosos contra Bolsonaro. Eu estava fotografando a Nana trabalhando em home office e pensando em fotografar os panelaços quando ela me disse: meu amigo mora no edifício Louvre com vista para o bloco das quitinetes do Copan. Liguei para o amigo na mesma hora e fui para o centro.

Naquela noite, o Copan estava inteiro aceso e o barulho das panelas era sinfonia aos ouvidos. As fotos ficaram, boas mas poderiam ter sido feitas em qualquer contexto; porém, a simbologia da quarentena nas quitinetes traduzia precisamente a vida das pessoas no mundo todo durante a pandemia: todos em casa em isolamento social. 

A semana seguinte e as próximas seriam imersas numa atmosfera assustadoramente calma. E eu gostava disso. Nos últimos anos, tenho passado boa parte do meu tempo em deslocamento entre aeroportos, hotéis, estradas, selva amazônica e rodoviárias. A chance de poder ficar em casa me parecia algo culposamente mágico. Na pandemia, os fotojornalistas são considerados, na Europa e nos Estados Unidos, integrantes do grupo de profissões listadas como “serviços essenciais”. Como diz a professora Simonetta [Persichetti]: “É o fotojornalista que estará na linha de frente trazendo ao mundo as novidades do mundo lá fora”.

Eu me orgulho da ocupação que escolhi uma década atrás enquanto lido aflitivamente com o dilema de sair para trabalhar e documentar o momento histórico ou seguir as recomendações sanitárias e permanecer em casa. O compromisso com o jornalismo é uma missão, e o conflito logo se dissolve entre algumas taças de vinho. Acordo cedo para trabalhar e a sensação que tenho é de que a vida se tornou um eterno domingo. Os pássaros estão mais animados e se acostumaram a mim. Enquanto atravesso a marginal Tietê rumo ao cemitério da Vila Formosa, sorrio imaginando as onças e os tucanos povoando novamente o Vale do Anhangabau. A natureza grita um pedido de socorro, e é preciso urgentemente escutarmos o seu chamado. 

Matéria publicada na edição impressa #33 mai.2020 em abril de 2020.