
Onde Queremos Viver,
Torre do Tombo
As frases escritas pelo punho do meu avô levaram-me ao homem que ele foi e eu não conheci
01jul2025 • Atualizado em: 30jun2025 | Edição #95Um domingo destes, ao fim do serão, ensonada, por tédio quase, pesquisei pelo nome do meu avô paterno no arquivo digital da Torre do Tombo. O resultado da pesquisa indicava que existia correspondência numa pasta, datada da década de 70 e que era confidencial. Preenchi o formulário on-line solicitando acesso à pasta. Foi-me dito que aguardasse. Essa noite custou-me adormecer.
Que documentos guardaria a Torre do Tombo sobre o meu avô? Teria testemunhado contra alguém? Traído um companheiro? A minha incapacidade de responder a estas perguntas pôs-me diante do mistério que é, para mim, a minha vida: não sabia sequer o nome do pai do meu avô nem tinha certeza do nome da minha bisavó, Maria de Lourdes L. R.?
Passámos o serão seguinte em buscas, em páginas de genealogia. Dei com uma fotografia dos meus bisavós e os seus filhos, na página genealógica de um primo afastado. Posavam numa sala, numa casa aparentemente burguesa, bem-vestidos. A minha bisavó está um pouco afastada do marido e dos filhos. Identifiquei uma das minhas tias-avós, ali rapariga. E o meu avô, ainda não calvo, com cerca de dezasseis anos, só se via a cabeça, atrás do grupo, e os olhos ainda jovens e cheios de vitalidade.
É estranho recordar com saudade um homem que aparentava não ter saudades
Não houve na minha família pessoa mais privada do que o meu avô. Jamais o ouvi falar de um sentimento seu ou emoção. Não nos contava histórias da sua infância, excepto recordações do Colégio Militar, de que se servia para nos incutir disciplina. Mas, mesmo essas, apresentava-as limpas de qualquer nostalgia ou sentimentalismo. Era a encarnação daquilo que me dizia ser o “homem científico”, e um espírito futurista, odiava o passado, as coisas velhas, os velhos. Adorava a tecnologia de ponta, a segunda-feira, a juventude, o amanhã. Nunca me abraçou e apenas recebi do meu avô beijos na testa. É estranho recordar com saudade um homem que aparentava não ter saudades. Nem sequer ouvi jamais ao meu avô lembranças caducas de África quando se mudou para a Europa, já depois do 25 de Abril. Que segredo sabia a Torre do Tombo sobre L., que eu desconhecia?
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É porque não sabemos que imaginamos. A 11 de Setembro de 1973, L. endereçava ao ministro do ultramar um pedido para levar os alunos finalistas do curso de Engenharia Electrotécnica da Universidade de Luanda, onde era assistente, a uma viagem de estudo à Europa — Inglaterra e Holanda — e solicitava um apoio financeiro para as passagens. O pedido foi deferido. Depois dava prova de ter realizado a viagem e tratava do reembolso do valor dos bilhetes.
Apenas um procedimento corriqueiro na vida de um professor daquele tempo. Nenhum segredo. Nenhum mistério. Detive-me a olhar a caligrafia de L., que só tinha na memória de duas ou três dedicatórias deixadas em livros. Mas o confronto com as frases escritas pelo seu punho, quotidianas que fossem, levou-me não ao meu avô, mas ao homem que ele foi e eu não conheci. Não o avô reformado, mas o avô quase da idade que tenho hoje. Quando tudo se foi e nunca mais veremos aqueles que amámos, fica este fetichismo delicodoce a impedir-nos o caminho. Tanta papelada espalhava o meu avô pela mesa da sala, tudo foi. Olho a carta ao ministro e é o nada que resta, agora que só tenho de L. a memória da memória da memória de um cheiro.
Matéria publicada na edição impressa #95 em julho de 2025. Com o título “Torre do Tombo”
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