Coluna

Humberto Brito

Onde queremos viver

Os acontecimentos

Já pensei que, se eu parar de escrever, talvez a devastação desacelere. Mas morreria

23nov2023 | Edição #76

Às vezes, logo a seguir a enviar uma destas colunas, vêm os acontecimentos. Então, as minhas frases coram, arreliam-se, perdem o sono, sentem-se humilhadas, protestam comigo. “Para que nos enviaste assim para a esfera pública, idiota, não tens olhos na cara, não vês o que se passa no mundo?”. Escrevo sobre isto e aparece um escândalo, escrevo sobre aquilo e vem o terror, a vileza, a fome, a guerra, o lixo, o crime. “E nós para aqui a falar de beleza e arte, estúpido. O fluxo do presente… que importa o fluxo do presente em mera face dos acontecimentos? Baudelaire: bardamerda.” Não sei francamente que lhes responda e de facto sofro com elas e não tanto por elas, mas sobretudo pelos acontecimentos. A verdade é que, quanto mais escrevo, pior o estado do mundo. Já pensei que, se eu parar de escrever, talvez a devastação desacelere. Mas morreria. De mais a mais, se o fizesse, se me remetesse ao silêncio, aí as minhas frases e aqueles que as lêem (se é que alguém me lê) julgariam que não sofro, que não me comovo, que não me revolto tanto como você, que não me sinto tantas vezes furioso e implicado. “Então, p’lamordedeus dá-nos uma chance de expressar essa fúria, Humberto, essa comoção, essa responsabilidade.”

Não sou especialista em coisa alguma, sou apenas um gajo de meia-idade embevecido pela superfície da vida

Sei que têm razão. Você concorda? Sim, calculei que concordasse. Entenderá portanto o impasse de morte que se instalou entre mim e as minhas frases. Já lhes expliquei por a+b que para mal dos meus pecados não sou um especialista em acontecimentos, de facto, não sou especialista em coisa alguma, sou apenas um gajo de meia-idade embevecido pela superfície da vida, um distraído, provavelmente, um caduco, quem me dera ter nascido talhado para os acontecimentos, no entanto, não me calhou o gene da prontidão — e, de resto, serei eu a pessoa mais qualificada para falar sobre os acontecimentos, serei eu suficientemente lúcido e informado para melhorar a qualidade da conversa, nesta abundância de especialistas? “Deixa connosco”, respondem, ávidas, motivadas, no entanto, aqui entre nós, eu, que já vi com os meus próprios olhos do que são capazes as minhas frases quando se aventuram fora da sua capacidade natural, confesso que não confio nelas para falar sobre os acontecimentos. Não é que lhes faltem boas intenções e um coração no lugar certo; não é que não tenham intuições capazes e partidos definidos; apenas a César o que é de César.

Em face dos acontecimentos, tem crescido nelas um ressentimento a meu respeito. Perderam toda a paciência para o que o embevece. Sindicalizaram-se e não as censuro. Semanas inteiras de greve e quando vêm, escarnecem, sabotam descaradamente os meus trabalhos. Coço a cabeça, vou até à varanda, respiro fundo. É quando avisto lá em baixo os acontecimentos. Estudantes pró-Palestina arrancam os cartazes colados na noite anterior por um grupo sionista. No parque, as manifestações são seguidas de contra-manifestações. Misturamo-nos na tensão electrizante, um ódio espesso, latente e recíproco; as ruas de Nova Iorque enchem-se de polícia; e agora este grupo arranca os cartazes da véspera colados com igual fervor, minhas frases vibram, e assisto a tudo com uma carga de nervos, medindo já as palavras para lhes fazer ver que a sucessão daqueles cartazes é exactamente o problema dos acontecimentos.

Quem escreveu esse texto

Humberto Brito

É escritor, ensaísta e fotógrafo

Matéria publicada na edição impressa #76 em novembro de 2023.