Coluna

Humberto Brito

Onde queremos viver

Ler mal

Achando-se tratado como verme, o personagem acorda transformado na sua autoimagem recalcada

13jul2023 | Edição #71

Passa quase despercebido na Metamorfose de Kafka. Os únicos horrorizados com o revés de Gregor Samsa são aqueles que já o conheciam. Pai, mãe, irmã, o gerente (que some esbaforido assim que o vê), a jovem criada (implorando por se trancar na cozinha para não o ver), todos, à sua maneira, tentam afastar Gregor do campo visual e mental. Todos excepto a mulher-a-dias contratada depois e os três cretinos de barba que por razões puramente económicas a família Samsa se vê forçada a hospedar. Aquela não perde uma oportunidade para admirar Gregor. E estes, ao vê-lo aparecer coberto de sujidade no chão imaculado da sala, ficam, de início, “quase divertidos” com a atracção zoológica (trad. de Isabel Castro Silva).

O primeiro grupo de personagens tenta portanto afastá-lo da consciência a todo o custo. O segundo, não. (É verdade que, como bons cretinos, se precipitam a exigir explicações, mas o objecto não é tanto a visibilidade do animal Samsa e sim as condições sanitárias da casa.) Aquele ou aquilo que uns vêem como Gregor outros vêem como objecto de circo de aberrações. O “devir-insecto” (Deleuze e Guattari) é no fim de contas “um escaravelho do tamanho de um cão” (Nabokov). Teria sido fácil cobrar bilhetes de peep show com vista para o seu quarto. Viveriam, coerentemente, às suas custas. Em vez disso, fazem todos os possíveis por escondê-lo e este tenta esconder-se para proteger os pais. Protegê-los de quê?

Aquele ou aquilo que uns vêem como Gregor outros vêem como objecto de circo

O instinto dos primeiros personagens ironiza o tema da repressão, que atravessa a história (publicada por coincidência no mesmo ano e cidade em que sai o estudo de Freud sobre repressão: Leipzig, 1915). Achando-se tratado como um verme na firma, incapaz de admitir que é parasitado pela família, apetece dizer que Gregor acorda desde logo transformado na sua autoimagem recalcada. Ainda que Kafka sabote a leitura psicanalítica a que convida, quem sabe se essa autoimagem inconsciente, misturada com horários de combóio e senhoras cobertas de peles, inquieta os sonhos que precedem a transformação. Algo que também nunca se saberá é o que vêem família e conhecidos que o segundo grupo não vê.

A dada altura, o filho imagina-se facilmente transportável “num caixote apropriado com um ou dois buracos para respirar”, o que vê como uma “consideração da família em relação a si”. Tal consideração faz sentido apenas no mundo em que o insecto preserva semelhanças com o velho Gregor. Esta sugestão perturbadora encontra uma correspondência, ainda que ténue, na reacção da mãe à primeira visão da metamorfose. Fica com “a cabeça de lado, como se quisesse ver Gregor melhor”. Esta cabeça de lado é uma expressão animal de reconhecimento, que rima, de resto, com a relutância de Kafka em incluir qualquer representação visual de Gregor-escaravelho, e com o modo negativo ou omisso, ou em aberto, da sua fisionomia híbrida.

Talvez esta preserve uma vaga semelhança com velho Gregor, que só eles enxergam, mas temem pública e notória; talvez o corpo do filho releve uma insuportável parecença consigo mesmos que os envergonha. É a situação de quaisquer progenitores diante da versão medonha dos filhos, o duro confronto com a sua escrita. O cruel conselho de Grete ao pai — “Tens simplesmente de livrar-te da ideia de que aquilo é o Gregor” — torna-se então útil e piedoso. A única forma de ler bem é ler mal.

Quem escreveu esse texto

Humberto Brito

É escritor, ensaísta e fotógrafo

Matéria publicada na edição impressa #71 em maio de 2023.