
Onde Queremos Viver,
Lamúria
Continue a dizer coisas mas deixe-nos ignorá-lo à vontade — é a voz interior dos meus alunos
01jul2025 • Atualizado em: 30jun2025 | Edição #95Sete em cada dez estudantes arregalam os olhos se lhes faço perguntas directas, ou rodam-nos na direcção do tecto, ou fitam o maldito écran com uma expressão pensativa, até que se instala o silêncio. Uma menina sai para fumar e só voltará a dois minutos do fim. Repito a pergunta, parafraseio, esquartejo, escamo a pergunta bem escamada e tiro-lhe as tripas e lavo-lhe o sangue e a transformo num bonito filete: não, numa peça de sashimi; então, entrego-a de bandeja à consideração da turma.
No fim de contas, a palavra “aluno”, que o Houaiss data de 1572, não vem, apesar de todas as evidências e boatos, de “ausência de luz” (a-lumni?), mas do latim alumnus (criança de peito, lactente, menino), derivado de alere (fazer aumentar, crescer, nutrir, fortalecer etc.). Então, sashimi. Sashimi do bom. Prêt-à-manger ma non troppo. Mas nem assim, querida. Sei que não é estrela Michelin, mas, caramba: é filete; é sashimi; é peixe pescado à linha. Nada. Olham para a pergunta com ar perplexo, enfastiado. Traduzo para latim vulgar, para macarrónico, para mastigado; procuro a opção vegan: nem assim. Nada, nadinha, lhes desperta interesse na minha carta.
O Sr. Miyagi defendia que não há maus alunos, só maus professores, e eu costumava acreditar nisso piamente e ainda creio. Orgulhoso do meu sashimi, coloco a possibilidade da incompetência, da perda de olfacto. Talvez seja falta de apetite. Sete em cada dez estudantes chegam à minha aula sem fome, apenas isso. Aposto que se empanturraram de guloseimas na aula de X.
A vida imita um delírio do GPT e dá pena. Nada assombra, ninguém se deixa assombrar
Arqueando as sobrancelhas, a minha presença é um aturável detalhe em troca de wi-fi gratuito. São finalistas. Não querem ser importunados com… complexidades. Vá, criatura, faça de conta que não existimos e continue lá. Porque são inteligentes, já sabem que a teoria não tem vantagens práticas e sociais. Porque são práticos e sociais, teorizam: se houver wi-fi, há ai; havendo ai, respuestas no hay, dúvidas no hay, no hay motivos para eu mesmo estar ali, ou hay?
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Resmungo que qualquer dia no hay estudantes, no hay propinas, no hay universidades, nem estudos literários, nem linguagem — e os miúdos afectam um entendimento grave, estupefactos, olhando-me com ar de erro de javascript. A sua aura, se existisse, teria a forma de um círculo girando. Wax on, wax off… — é este o som da minha voz, em chinês, aos seus ouvidos. Vá, criatura, continue a dizer coisas mas deixe-nos ignorá-lo à vontade — é a voz interior de dez em cada sete dos meus alunos em 2025. Esta mensagem serve para informar que a internet mudou os termos do contrato.
Por estas e por outras, o inglês gerou o verbo to ghost e o derivado ghosting (terminar um relacionamento de repente e sem explicação retirando-se de toda a comunicação; cerca de 2007, segundo o oed). Mas o uso de ghost (fantasma, espectro) como verbo tem uma longa história. Remonta a Shakespeare (1623), ao fantasma transitivo de Júlio César assombrando Bruto em Filipos e ao intransitivo: “ter um efeito desagradável em, ou causar problemas a (alguém ou alguma coisa) contínua ou repetidamente; ser uma presença persistente na mente ou nos pensamentos de”. Eis os termos do contrato, querida. Eu fantasmo, tu fantasmas, eles fantasmam-nos. A vida imita um delírio do GPT e dá pena. Mas não hay problema. Nada, ninguém, assombra; ninguém se deixa assombrar.
Matéria publicada na edição impressa #95 em julho de 2025. Com o título “Lamúria”
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