Humberto Brito
Onde queremos viver
Fort Wayne
Joel Sternfeld e a aposta em algo ininteligível para a maioria: perceber como é que se vê a cores
01nov2024 • Atualizado em: 04nov2024 | Edição #87 novHá gente que fotografa a cores; há gente, menos gente, que fotografa a preto e branco; e há gente, ainda menos, que fotografa a esquemas de cores. A inferioridade numérica sugere uma doença rara, uma espécie de febre dos olhos que nunca vi diagnosticada, até hoje, por Joel Sternfeld.
A explicação de Sternfeld surge no posfácio de Nags Head (Steidl, 2024), livro cuja questão da cor o torna uma prequela do monumental American Prospects (1987). “Sempre que via na paisagem um fenómeno cromático de alguma forma coincidente com um exercício tipo [Josef] Albers sobre as propriedades perceptuais da cor, fazia uma fotografia.”
Este é já um relato da fase exuberante do contágio a qual se segue não do uso da cor em si, mas da cor enquanto tema. É uma doença bela e inofensiva, excepto para o paciente, que dá consigo a interrogar-se “quais são os princípios estéticos da fotografia a cor? Com o tempo”, admite Sterfeld, “cheguei a uma formulação: numa fotografia a cores bem sucedida, o significado da imagem emerge, de algum modo, do uso da cor”. Mas esta formulação “não resolvia a questão da estrutura cromática global da imagem”, então, a gente põe-se a estudar teoria da cor. É quando se perde contacto com o fluxo do presente: a paisagem torna-se mental, perde-se a exterioridade para os esquemas de cor, e a cegueira da cor produz imagens.
Folheando Nags Head, constata-se uma inteligência das imagens relativamente ao texto, isto é, o tema da cor não tem talvez o peso que se lhe atribui. As imagens superam-no e não se esgotam nele. Mas isso ser tema é justamente o punctum do livro: uma forma discreta de coragem, a de apostar a vida em fazer uma coisa ininteligível para a maioria, por exemplo, perceber como é que se vê a cores.
Alguns anos mais tarde, este género de coragem viria a ser testado pelos próprios constrangimentos do processo e da indústria, quando, vivendo numa Volkswagen enquanto fazia as imagens de American Prospects, Sternfeld buscou por “cenários com significado para a minha ideia da América e propriedades cromáticas que permitissem unir forma e contexto”. Percorrer um continente na suposição da existência de tais cenários; o risco de desperdiçar a vida em nome de uma quimera. “Só muito de vez em quando podia enviar a película por FedEx para ser revelada em Nova Iorque, havia intervalos de dois ou três meses.”
Gostamos de pensar em quem progride às cegas, indiferente à saciedade e à sociedade
Gostamos de pensar em quem assim progride, às cegas e sem validação, seja fotógrafo, poeta ou romancista, como figuras heróicas, indiferentes à saciedade e à sociedade. “Dava comigo muitas vezes a pensar que era um fracasso.” E projectava-se falhado, fantasiando-se a terminar cozinheiro de café em Fort Wayne, Indiana. “E por que Fort Wayne? Soava-me bem: nunca lá tinha estado. Seria um desconhecido de parte incerta, a autêntica anomia.”
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Acordo em 2024 e ninguém se projecta já desconhecido, de parte incerta. A autodefinição é o género literário do presente e cabe em 140 caracteres. Pergunto-me onde foi parar a autoindefinição, a aventura inerente, a anomia de si: onde foram parar os cães vadios? Onde foi parar a estirpe de Sternfeld, apostando a vida em ser anónimo e obscuro no presente, ou para sempre, virando hambúrguer em Fort Wayne. “Hoje”, nas palavras do mestre Moriyama, “todos os cães são de estimação”.
Matéria publicada na edição impressa #87 nov em novembro de 2024. Com o título “Fort Wayne”
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