Coluna

Djaimilia Pereira de Almeida

Onde queremos viver

Cinema íntimo

Mudar de país é parecido com perder os pais e ter de encontrar uma forma de ser filho

01out2024 • Atualizado em: 30set2024 | Edição #86 out

Talvez uma lista das razões por que é difícil ser emigrante lembrasse um tratado breve da despersonalização. A corrida a novas nacionalidades assinala porventura que mudar de país também acarreta perder a nacionalidade original. Mas mudar de país leva também a perder a cara e a reconhecer que algumas das nossas particularidades são a prazo. Longe daquilo que nos é familiar, num lugar onde não sabem pronunciar o nosso nome, é natural que, ao espelho, o emigrante duvide se ainda é a mesma pessoa. Que pessoa conta, nesse reflexo? A que partiu, ou a que vai aprendendo uma nova língua, ganhando novos costumes? 

Os telefonemas tornam-se repetitivos e, se calhar, já não somos bem os mesmos. O Zoom, o WhatsApp e o mês de agosto nunca bastaram para termos a certeza de continuarmos vivos. Que fazer antes de nos habituarmos à nova cara? Como habitar o intervalo entre uma cara e outra? Não é sequer certo que uma das caras saia vencida do desbotar paulatino do espírito, que não se nota logo. A indústria amorosa da saudade, a ansiedade pela chegada das férias, são pessoas a correr atrás desse prejuízo irreparável.

Páro no fio telefónico, imaterial, fotográfico, dilatado: a fita das chamadas-vídeo, interrompidas, desfocadas, gaguejantes, quando o som da voz não acompanha os movimentos da boca, o discurso, de súbito, congelado. É um cinema íntimo do nosso tempo.

Emigrar também é morrer. Espanta como as coisas mudam quando se está fora, mesmo que apenas de agosto a agosto. São pormenores cruciais, às vezes, insignificantes. As mudanças no trânsito, no preço das cebolas. As obras no prédio. A morte do tio. Os primeiros passos da filha. A doença do pai. As famílias brindam aos ausentes, de que se vão esquecendo.

Quem está fora vê ao longe, vai-se dando um desfasamento primeiro do horário e dos hábitos, depois do alinhamento da atenção. Sem tempo a perder, as coisas novas impõem uma ordem que se vai sobrepondo ao quotidiano deixado em casa.

O Zoom, o WhatsApp e agosto nunca bastaram para termos a certeza de continuarmos vivos

Alguns fazem pouco das casas que os emigrantes constroem nas suas vilas e aldeias de origem. Mais valia notar como a sua excentricidade esconde a alegria saudosa de serem sonhadas à distância, ao longo do ano, enquanto os emigrantes estão na terra longínqua onde vivem. A sua arquitectura é a dos sonhos, nos quais as coisas nos parecem sempre mais grandiosas e mais bonitas. Lembra a forma como os soldados imaginam as noivas, quando estão na guerra. Ou a forma como os apaixonados se imaginam uns aos outros, no vazio excitante entre primeiros encontros.

Mudar de país é parecido com perder os pais e ter de encontrar uma forma de ser filho que desafia a memória: esquecer tudo aquilo que amamos — para não esquecer nada. Um país de emigrantes não tem de ser triste, mas é um país de amores arquivados. O famigerado “Volta para a tua terra!” escamoteia este elenco de dificuldades, assumindo que existe uma terra onde regressar, à qual quem partiu ainda pertence. Mas talvez faça parte da definição de emigrar (e de imigrar) a impossibilidade do regresso. Quem partiu já não existe, mudado e condicionado pela nova vida e pela nova língua, afectado pela paisagem diferente. E também quem nos aguarda muda assim que dizemos adeus, e viramos as costas. 

Quem escreveu esse texto

Djaimilia Pereira de Almeida

Escritora angolana, publicou Esse cabelo (LeYa).

Matéria publicada na edição impressa #86 out em outubro de 2024. Com o título “Cinema íntimo”

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