Djaimilia Pereira de Almeida
Onde queremos viver
Arranjar flores às cegas
Pertencer é o que vem depois de agarrarmos a certeza de que não pertencemos a lado nenhum
01jul2024 | Edição #83Regresso a Portugal depois de quase um ano em Nova Iorque. No Alentejo, ou já não me conheço ou o mar é o mesmo e eu nunca o tinha visto. É como um baptismo de voo só que vou pela primeira vez com os pés assentes na terra.
Costumava passar aqui a infância, já não me lembro se fui feliz ou não. Mas sei que agora é que sou criança, vejo, sinto, ouço, estremeço pela primeira vez. Fui morrer à outra margem e acordei na praia.
Toda a literatura que conheço me cruza os ouvidos. Estou naquela encruzilhada de que falava a Beyoncé na canção ao som da qual escrevi o meu primeiro livro, só que apenas hoje a entendi.
Fui a Nova Iorque entender que não nos bastamos. Nunca se está só nem completamente acompanhado. Chamem-lhe Deus, o tempo, vento, música ou sentido. Fumo à janela e vejo-me ao volante de um carro pela estrada de Sintra, onde não vou desde há não sei quantas primaveras. O vento leva o fumo do cigarro a outras paragens, vai até a menina que fui e saltitava a ver as montras.
E eu que acreditava que os livros eram bicicletas e escrever, subir montanhas, quando tudo o que é preciso é voltar a pisar na areia, cair na tentação de atravessar o corredor sombrio, procurar se do outro lado está alguém a ser feliz.
Fui entender que não nos bastamos. Nunca se está só nem completamente acompanhado
Pertencer é o que vem depois de agarrarmos a certeza de que não pertencemos a ninguém nem a lado nenhum. Mas não é nada como eu pensava. É reconhecer que estamos enlaçados num arbusto podado por uma jardineira malvada como uma menina travessa, que era eu sem o saber.
Se a liberdade é o jardim de um cego, a casa é o lugar que se reconhece depois de o coração partir. E então aí é que se é finalmente jardineiro, alguém que morreu para contar o que viu e agora arranja as flores às cegas.
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Djaimilia Pereira de Almeida
Há uma primeira vez para tudo, até para reparar que os girassóis, afinal de contas, são amarelos.
Matéria publicada na edição impressa #83 em julho de 2024. Com o título “Arranjar flores às cegas”
Peraí. Esquecemos de perguntar o seu nome.
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DEZEMBRO, 2024